Salvatore Quasimodo: nômade da morte

Por Maria Teresa Meneses


Salvatore Quasimodo. Foto: Mario De Biasi.

 
O filho do ferroviário
 
Gaetano Quasimodo, chefe da estação Ferrovie dello Stato em Ragusa, cidade ao sul da Sicília, recebeu ordens de viajar a Messina para restaurar a rede ferroviária, que havia sido desativada após o devastador terremoto de 28 de dezembro de 1908. Por 37 segundos, o terreno do Estreito de Messina (que abrange as províncias de Messina e Reggio Calabria) tremeu com tanta força que ceifou a vida de aproximadamente cem mil pessoas que foram pegas pela catástrofe enquanto dormiam. Depois o violento despertar às 5h20 da manhã, muitos dos que haviam corrido aterrorizados, buscando o céu aberto da praia para escapar de serem esmagados pelos prédios da cidade, sucumbiriam minutos depois, afogados por grandes ondas que se elevavam a quase dez metros de altura em ambos os lados do Estreito. Toda a dor do mundo estava concentrada em Messina.
 
Nos versos de “Milão, agosto de 1943”, outras ruínas, outras violências, outros sobreviventes lutam para continuar vivendo sem alcançar a redenção: “Em vão procuras entre o pó,/ pobre mão, a cidade está morta.”1 Onde antes existia vida e esperança, tudo era vazio e desolação. Na noite anterior, um público generoso, vindo de várias partes da Itália a Messina, ovacionava calorosamente Giuseppe Verdi na estreia de Aida no Teatro Vittorio Emanuele II. Consideravelmente danificado na estrutura pelo terremoto, o maior teatro da Sicília passou por um longo processo de restauração só concluído setenta anos depois.
 
Assim que recebeu a ordem de mudança, Gaetano Quasimodo se deslocou para Messina aonde chegou três dias depois catástrofe, acompanhado de sua esposa Clotilde Ragusa e do pequeno Salvatore, nascido em 1901 em Modica. Totò tinha sete anos e, em Messina, vislumbrou uma paisagem carregada de tragédia e desolação. Sem condições de alugar um espaço para morar, visto que o terremoto havia encarecido qualquer coisa, especialmente as poucas casas restantes, a família Quasimodo foi forçada a viver por muito tempo em um vagão de carga estacionado numa linha férrea abandonada, uma via morta que não levava a lugar nenhum, e a casa improvisada uma metáfora para uma frágil Arca de Noé, esperando o dilúvio parar para que pudesse retornar à terra firme e reconstruir a vida como era antes.
 
Sem eletricidade, sem água encanada, silenciando os uivos da fome com maçãs secas penduradas em guirlandas, um alimento garantido em um ambiente propício a todo tipo de doença, cada dia foi, a partir dali, uma luta pela sobrevivência. E por longo tempo, os habitantes de Messina se acostumaram a conviver com o fedor da decomposição dos corpos que restaram presos entre os escombros da cidade devastada: “Não toquem nos mortos, tão vermelhos e inchados:/ deixem-nos na terra de suas casas;/ a cidade está morta, morta.”
 
Morte foi uma palavra que um menino aprendeu muito cedo. De sua casa-vagão, Totò testemunhou as execuções populares, sem direito a julgamento, daqueles pequenos ladrões flagrados saqueando casas abandonadas por seus donos. A violência da terra e a violência dos homens foram suas primeiras lições de vida. “Meu pai, aos sete anos de idade, entrou em contato diário com a morte. Suas memórias ligadas ao terremoto são de tristeza, privação e miséria”, disse o ator e diretor teatral Alessandro Quasimodo, filho que o poeta teve com a dançarina Maria Cumani, em um texto comovente.2
 
As cenas dantescas da vida após o terremoto são memórias inflamadas por uma desolação absoluta. Para Quasimodo, a vida fora uma grande vigarista que lhe roubou o Éden e o mergulhou nas trevas. Mas, embora essa circunstância o tenha deixado marcado de amargura perene, também é verdade que foi fundamental para o desenvolvimento de uma consciência social e um compromisso cívico muito fortes, que constituem um dos principais temas de sua produção poética.
 
Salvatore Quasimodo escreveu seus primeiros poemas ainda aos dez anos de idade. Um caderno contendo esses primeiros textos ficou preservado no arquivo pessoal do poeta, guardado pelo filho Alessandro. São vinte e três poemas nos quais o sentimento de vazio e desamparo na condição humana já se mostra evidente. A angústia existencial que permeará toda a sua obra e encontrará sua máxima expressão no poema “E de repente anoitece”, incluído na sua primeira antologia, Acque e Terre (1920-1929): “Cada um está sozinho no coração da terra/ trespassado por um raio de sol:/ e de repente anoitece”.
 
A cidade do Estreito também aparece como o lugar mitificado de sua infância perdida, como aquele Éden de onde foi arbitrariamente retirado. Por ocasião do nonagésimo aniversário de seu pai, Salvatore escreveu um poema que intitulou “Ao pai”, no qual evoca, com uma beleza comovente, a felicidade perdida naqueles dias distantes da infância e da juventude.
 
Como aluno do Instituto Técnico A.M. Jaci, onde se formou em 1909, teve a sorte de estudar com intelectuais como Francesco Satullo e Federico Rampullo, que o apresentaram à poesia de Santo Agostinho, aos poetas franceses e à literatura russa. Seus colegas de escola e entusiastas da literatura eram Giorgio La Pira (com quem manteria uma amizade que perduraria com o passar do tempo e as insídias do mundo literário italiano) e Salvatore Pugliatti.
 
Junto com Giorgio La Pira, aos dezessete anos, Salvatore fundou a revista mensal Nuovo Giornale Letterario, em cujas páginas publicou seus primeiros versos. La Pira seria a força motriz que o levaria a aprofundar-se no conhecimento do latim e do grego, um caminho que o levaria a se tornar um tradutor excepcional da poesia lírica nesses dois idiomas. Giorgio La Pira permanecerá, sem dúvida, ao longo de sua vida, como o leitor mais sincero da espiritualidade poética e humana de Salvatore Quasimodo.
 
No mesmo ano em que se formou no Instituto Técnico, seu pai foi transferido para Licata, e Salvatore decidiu tentar a sorte em Roma, onde enfrentou constantes dificuldades financeiras ao lado de Bice Donetti, que se tornaria sua primeira esposa. Em 1926, conseguiu um emprego no Ministério de Obras Públicas e foi transferido para o Genio Civile de Reggio, Calabria. O reencontro com seu antigo amigo de escola, Pugliatti, reacendeu o desejo de escrever, que ele havia negligenciado um pouco nos primeiros tempos de Roma. Durante esse período de retorno às suas raízes, escreveu os versos de “Vento em Tíndari”.
 
Em 1932, reafirmou com sucesso sua posição como poeta com a publicação de Oboe sumergido e se mudou definitivamente para Milão, onde assumiu a cátedra de Literatura Italiana, no Conservatório de Música Giuseppe Verdi.
 
A poesia de Quasimodo
 
A poesia de Salvatore Quasimodo apoia-se substancialmente em três temas: o sentimento de exílio, a religião e o compromisso civil. O profundo sentimento de solidão aparece desde os primeiros poemas até sua última obra. Para ele, o homem está “exilado de um bem perdido”, como observa Gaetano Munafó em Quasimodo: poeta del nostro tempo (Le Monier, 1973).
 
O tema do exílio se expresso e se encarna, sobretudo, na Sicília, a grande protagonista da poesia quasimodiana. A Sicília é precisamente o Éden feliz da tenra infância e adolescência. Um Paraíso ao qual o exilado retornará, sentindo cada vez mais nostalgia daquela terra perdida:
 
“Meu limite é a Sicília; um limite que confina antigas culturas e necrópoles e restos de pedreiras de mármore e atlantes espalhados nos campos e jazidas sal e enxofre, e mulheres chorando há séculos por seus filhos assassinados e pelas violências contidas ou desencadeadas, banidas por amor ou por justiça.” (Una poetica)
 
Dos antigos greco-sicilianos como Teócrito a Verga ou Pirandello ou mesmo Lampedusa, nenhum dos poetas e escritores da Sicília sentiu como Quasimodo seu destino de um “filho do sol”.
 
A inquietação e a espera, a sensação de não estar em harmonia com o mundo, a busca de consolo no amor, o desejo de anulação na morte — esses são temas que, em Quasimodo, alcançam um fundo de origem religiosa. Para o poeta, a religião é um problema pascaliano. E dessa dolorosa e convicta certeza do destino humano como dor e solidão, se abandona à crença e exalta o desejo de uma presença divina no cosmos.
 
A religiosidade um tanto vaga e dionisíaca, metafísica e abstrata, descompromissada, do primeiro Quasimodo torna-se uma âncora consciente de salvação e um objetivo concreto, uma participação piedosa no destino da humanidade, como se vê nos vinte poemas que compõem a Giorno dopo giorno (1947):
 
Dia após dia: palavras amaldiçoadas e o sangue
e o ouro. Eu vos conheço, meus semelhantes, ó monstros
da terra. Com a vossa mordida, a piedade caiu
e a cruz bondosa nos abandonou.
 
E não posso mais retornar ao meu Elísio.
 
Quasimodo recusa toda esquematização religiosa, assim como recusa a politização de todo o idealismo humano. Relutante em se submeter a um credo religioso codificado e sistematizado, mesmo que não consiga ou não queira, como poeta, renunciar à mitologia bíblico-cristã tradicional aprendida em sua educação familiar, porque reforça nele o sentimento de renúncia e a esperança edênica.
 
O amor é o outro componente da religião de Quasimodo e um motivo fundamental em toda a sua obra. Tudo ao redor do poeta e no poeta vive e é visto com o olhar ávido de uma descoberta ou manifestação de amor: na natureza vegetal e no homem, o amor por sua terra e o amor invocado na guerra violenta dos homens, o amor carnal pelas mulheres amadas e o amor sonhado e ansiado na juventude. Amor que arde e redime.
 
Maria Cumani, extraordinária dançarina e coreógrafa que nasceu precisamente no ano do terremoto de Messina, conheceu Quasimodo em 1936, em Milão. Os dois mantiveram uma longa história de amor e sacrifício que lançou luz sobre o grande mistério dos sentimentos. Em uma carta do verão daquele ano, ele lhe escreveu: “Eu sabia, quando comecei a amar a poesia, que por ela passaria fome, sofrimentos da carne e furacões do espírito. As mulheres foram como amparos para atalhar a tristeza.”
 
Na poesia de Quasimodo, refúgio e consolo nascem de uma solidariedade humana que supera os males do mundo, uma busca com a qual todos devemos sentir-nos comprometidos. Vários motivos convergem neste tema do compromisso cívico: o sentimento da poesia entendida como uma missão entre os homens, a reconquista de uma pátria, a descoberta da fraternidade entre os povos.
 
A medalha do Prêmio Nobel de Literatura em leilão
 
Em 1959, Salvatore Quasimodo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura “por seus poemas que, com ardor clássico, expressam o sentimento clássico da vida de nosso tempo”, como se lê no comunicado da Academia Sueca. Sua produção poética limitava-se a cinco livros: Ed è subito sera (1942), Giorno dopo giorno (1947), La vita non è sogno (1949), Il falso e vero verde (1953) e La terra impareggiabile (1958).
 
Contemporâneo de Eugenio Montale e Giuseppe Ungaretti, a escolha não foi bem recebida por muitos grupos literários, que acreditavam que o prêmio deveria ter sido concedido a um deles, e não ao poeta siciliano. A polêmica na mídia foi alimentada pelo Il Corriere della Sera, que se colocou ao lado de Montale. Outra amargura da qual Quasimodo jamais se recuperaria.
 
Talvez ele não tivesse se recuperado da dor de saber que, em 2015, seu filho Alessandro, por razões financeiras, colocou a medalha do Prêmio Nobel de Literatura em leilão público, e um colecionador florentino a comprou por cem mil euros.
 
Em 14 de junho de 1968, Salvatore Quasimodo sofreu um derrame em Amalfi, onde presidia o júri de um prêmio literário. Ao ser transferido para um hospital em Nápoles, o poeta faleceu. Seus restos mortais foram levados para Milão, e ele teve um funeral com a presença de muitos dos que o haviam defenestrado por ter ganhado o Prêmio Nobel de Literatura.


Notas da tradução:
1 A tradução destes e de outros versos ao longo do texto é livre a partir do original em italiano.
 
2 Trata-se do texto “Cosí mio padre imparò ó la muerte”, Il Sore 24ore, 14 de dezembro de 2008. 


* Este texto é a tradução livre de “Salvatore Quasimodo (1901-1968): nómada de la muerte”, publicado aqui, na revista Nexos.

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