Sodomita, de Alexandre Vidal Porto

Por Pedro Fernandes

Alexandre Vidal Porto. Foto: Alexia Fidalgo.


O livro de Alexandre Vidal Porto publicado em 2023 integra a vasta linhagem dos romances interessados por algum aspecto do período colonial brasileiro, sem dúvidas, um dos mais fascinantes e também desafiadores para o imaginário de um escritor, porque exige dele, não apenas a necessária criatividade do fabulador, mas também uma pesquisa histórica abrangente a fim de não incorrer em generalizações, incongruências ou anacronismos, sobretudo agora em que se predomina entre os nossos romancistas uma leitura da história a contrapelo.
 
Sabemos que nos primeiros séculos de presença portuguesa essas terras que se queriam de Santa Cruz serviram de cativeiro para muitos dos condenados pela Coroa ou pela Igreja e entre essa leva estiveram homens acusados do crime de sodomia. Luiz Mott — talvez o nosso mais importante pesquisador nesse assunto, autor, dentre outros de um dicionário fruto de um levantamento em documentos oficiais desses nomes e das descrições de suas acusações a partir das quais se pode entrever qualquer coisa das suas biografias —, deu contas da existência do português Luiz Delgado extraditado pelo Santo Ofício sob a acusação do crime.¹
 
O caso deste sodomita — e consequentemente as informações ao seu respeito — aparece nos registros documentais como um dos mais completos tendo em vista sua reiterada presença nas garras do Santo Ofício e sua importância para os primeiros desenvolvimentos comerciais na colônia: de um boêmio, Delgado se converte por aqui num dos mais importantes negociantes de tabaco. Ainda assim, e isso acontece com qualquer figura ou acontecimento histórico, mesmo os mais visíveis nos registros, sobram lacunas, esse espaço entre o acontecido e o possível sempre fértil e ideal para a imaginação do ficcionista.
 
E é nesse ínterim que Alexandre Vidal Porto se aloja: refazer por meio do aparelho da ficção uma parte da biografia de Luiz Delgado. Evidentemente que esse não é o resultado alcançado com O sodomita; o autor, embora recorra à técnica e mesmo às práticas do chamado romance histórico não faz um livro que se fixa confortavelmente nessa categoria. Não faz, sequer, um romance, se formos exigir aquelas qualidades sagradas da forma, como o entrecho narrativo, ou noutras palavras, a narratividade, de um todo escassa no livro em questão.
 
Aliás, esse entendimento serve para uma parte das obras literárias que na literatura brasileira são contemporâneas de O sodomita e que dividem o mesmo interesse, uma condição que poderíamos atribuir à pressa do nosso tempo, mas fruto de uma crise da narrativa e da imaginação instalada entre nós desde o advento de outras alternativas de contar o acontecido e acelerada com a agora onipresença da imagem que dia após dia sequestra mesmo até nossa capacidade de distinção das coisas. Apenas para ciência do leitor, poderíamos referir outros dois romances situados no entorno, nesse caso, também contextual, do livro de Vidal Porto: O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk e Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito.2
 
De maneira que os primeiros acontecimentos da biografia de Luiz Delgado capazes de render algumas centenas de saborosas páginas de situações e aventuras são aplainados, reduzidos por vezes a uma frase de corte informativo, gestos que se não são completamente alheios à narração não constituem a sua forma. O que parece prevalecer é uma pressa por fazer com que a história logo se mostre de pé sem o cuidado de investir nos desenvolvimentos. Por exemplo, sabemos que a viagem do sodomita para o degredo se passa em seis meses, que é uma viagem marcada por ataque de doença, um ataque de navegantes inimigos, uma mudança de convívio entre os presos e o restante da tripulação, mas isso e outros detalhes não merecem o investimento da narrativa.
 
Isso acontece em menores proporções com o romance de Ronaldo Correia de Brito; e a saída de Micheliny Verunschk é pelo uso do recurso poético, o que nos parece, um drible valioso contra esse esvaziamento da imaginação, gesto que, sabemos, se integra ao sombrio apagamento da própria condição humana implicada no ferrenho modelo dominante, que primeiro nos seduziu com a ideia da necessidade da informação e agora nos mantém reféns de simulacros cada vez mais rasos de uma realidade repetidos incansavelmente pelas telas portáteis sempre como epígono da urgência e do em primeira mão.  
 
Alexandre Vidal Porto, no entanto, é sagaz. Transforma o defeito em uma qualidade irrepetível. Primeiro, confirma o que desconfiávamos desde a pobreza dos desenvolvimentos narrativos dos capítulos iniciais: seu interesse não é especificamente pela figura de Luiz Delgado, mas por descobrir como conseguiu subverter sua condição de relegado moral e de certa maneira como sua postura se converte em comportamento afrontoso aos costumes, mesmo que isso não se revestisse de qualquer atitude política ou ideológica, inconcebível, claro, para o seu tempo; interessa-o como, em face disso, o sistema dominante atuou para o tratamento de docilização dos corpos através do uso desenfreado dos instrumentos simbólicos e dos materiais de controle.
 
Para isso, o romancista recorre ao relato. O sodomita se organiza como um conjunto de textos interessado nos impasses morais de um criminoso e as constantes reviravoltas que ora o colocam nas piores situações ora nas mais elevadas, repetindo certo movimento que remete ao desenvolvimento dos heróis do romance de ação do século XVII e à rota da fortunae, conceito da mitologia romana caro à Idade Média. A técnica de relatar encontra-se igualmente circunscrita ao principal modelo textual que serve de fonte ao romancista, os documentos do Tribunal dos Santo Ofício. De maneira que, apropriando-se de um pouco de cada expressão, Vidal Porto pratica um pastiche do romance histórico.
 
Observemos a natureza caprichosa do destino, representada na roda que gira entre a boa e a má sorte. Preso por roubo e depois condenado por sodomia a partir da delação dos colegas de cela, o destino terrível de Luiz Delgado é amainado desde a viagem para o degredo, quando a acentuada redução da tripulação por uma peste obriga o capitão da caravela a acatar os prisioneiros como ajudantes de bordo, esforço que o sodomita demonstra até às últimas consequências ao lutar bravamente contra um incêndio na embarcação causado pela tentativa de invasão inimiga quando já se aproximavam à costa da Bahia de Todos os Santos; em terra firme, os crimes são ignorados e o homem é recomendado aos préstimos de uma importante casa de comércio que faz fortuna com o cultivo de tabaco.
A noção de sorte do destino é registrada pelo próprio relator que assim expressa: “Bafejado pela sorte, no dia seguinte ao seu desembarque, Luiz Delgado conseguiu emprego. Foi por recomendação do próprio Alexandre Faustino que Adamastor Beirão, negociante de tabaco com loja estabelecida na cidade baixa, o recebeu como supervisor dos quatro escravos em uso no comércio que mantinha na Conceição da Praia, perto da zona portuária.”
 
Essa sorte acompanha o herói a passos largos enquanto se esforça para cumprir a pena religiosa e se afastar das tentações demoníacas que o colocam em constante desejo por outros homens. Mas, uma vez corrompida essa linha, os ventos sopram ao contrário. Amigado com Florência, a enteada do seu falecido senhor, cumprindo um desejo dele, e satisfeito com a frigidez sexual da mulher, afeita mais que tudo às tarefas de ler e escrever — atividades censuradas às mulheres pela Igreja — Delgado volta a se entregar aos desejos ferventados pelo calor dos trópicos. E o pleno desenvolvimento da vida homossexual finda por se confundir com uma peste de cólera que grassa a colônia e obriga a Inquisição a realizar uma devassa na vida dos seus habitantes a fim de corrigi-la moralmente e restabelecer os bons humores divinos para com o seu povo.
 
Sabedora do destino terrível posto no horizonte da casa, Florência abdica da vida comum, cede o patrimônio à Igreja e se devota à vida religiosa, onde pode continuar o livre acesso ao conhecimento, seu fiel companheiro, enquanto o sodomita é outra vez capturado pelas garras do tribunal católico reabilitando a má sorte que novamente cobrará o seu preço até se apresentar uma nova saída. Se a vida de abastado e os trânsitos de tribunal, ao que parece gerenciados pela astúcia de alguém que conhece os meandros da justiça católica, deram relevo à vida de Luiz Delgado na história da colônia, seu destino, no degredo para Angola é desconhecido, o que permite ao romancista fabular a vida que o sodomita não teve plenamente enquanto permaneceu sob a vista curta da moral religiosa. O que lemos é o fragmento de uma biografia dessa figura histórica e tocada pela natureza fabular da literatura é o signo de alguém mortalmente aferrado à vida, como refere a epígrafe do romance pinçada do Candido, de Voltaire: “quis cem vezes matar-me, mas ainda amava a vida.”
 
No pastiche estão visíveis todos os elementos dos textos emulados. Do romance de aventura do século XVII, encontramos o herói bafejado pela fortuna e sua desdita, o acúmulo contínuo de ação e contração que ora o salvam, ora o colocam em apuros; também dessa forma, o romancista se beneficia dos títulos de extensão descritiva com os quais os escritores da época designavam seus livros. Cada capítulo de O sodomita funciona como uma crônica permitindo-se a interferência de duas entradas escritas pelos próprios protagonistas. Assim, os capítulos IX e XV dos quinze textos que formam a obra, “Maquinações do espírito registradas pela mulher cronista sobre sua própria situação” e “Lisboa, Luanda, Paraíso” oferecem uma variante do registro retórico utilizado no restante do texto e a perspectiva acerca dos destinos desses dois indivíduos imorais aos olhos inquisitoriais da época.
 
Florência se encontra integralmente envolvida com o fazer da escrita e nele só ingressamos através do registrado no capítulo IX. Mas, essa sua crônica de maquinações seria a palavra de testemunho da autoria do restante dos papéis que organizam estruturalmente O sodomita? A possibilidade não é descabida. Sabemos que o baú de papéis sobrevive ao seu fim na cela religiosa e sabemos que ela própria se demonstra, primeiro suspeitosa da vida do amigo, depois perturbada com o enlace sexual exercido entre criaturas do mesmo sexo, mais interessada em compreender seus motivos visto que afetada pela situação vivida com Luiz Delgado e, por fim, transformando-se de compassiva a compreensiva com a naturalidade da sodomia. Assim, incapaz de produzir um tratado científico, pelas limitações das mais diversas, resta o registro descompromissado e imaginativo da vida íntima alheia, fruindo pela palavra, de alguma maneira, o gozo não-vivido e oferecendo ainda certo testamento de um modo de vida dos então encontrados na colônia.



Dos documentos do Santo Ofício, Alexandre Vidal Porto, emula a linguagem. E eis o segundo o segundo procedimento da sua astúcia criativa. O uso de um diverso vocabulário nele reiterando terminologias e expressões das utilizadas nos autos inquisitoriais — em grande parte para descrever variadamente os enlaces sexuais da prolífica vida de Luiz Delgado de maneira pudica mas não menos sugestiva, como é parte das traições da linguagem, em que o acobertado é o que se revela — é capturado da retórica judicial em voga. O romancista replica um exercício expressivo encontrado diversamente na chamada ficção historiográfica; na literatura brasileira mais recente podemos referir romances como Desmundo, de Ana Miranda. Vale pelo menos um recorte a título de ilustração do que acabamos de reparar e para entendermos como ao narrado o escritor pretere o relato. A passagem extensa mas necessária trata da confissão do sodomita ao padre depois de se abater primeiro pela perda do envolvimento e convívio sexual com o cobiçado soldado e aproveitador Miguel de Soures e depois pelo arrependimento de trair sua própria consciência (e a divina) da castidade exercida desde quando é condenado por possível prática sodomita:
 
“Confessou-lhe que, com o referido cadete Miguel de Soures, que trabalhara de ajudante em sua loja, em uma ocasião quando tiveram de deslindar uma carga de fumo nas cercanias de Itapicuru, ao pousarem para pernoite não longe do Engenho de Pirajá, nos rumos da citada localidade, deram-se muito à pinga e ao petum, e que, quando se achavam bem castigados, começaram ambos a folgar e a lutar, pegando um no outro, e que o militar agarrara sua natura dizendo que estava mole e mandara que pegasse na dele, que se encontrava muito dura, e o viu levantar as ceroulas na dianteira, e que  praticaram na ocasião muitas fanchonices, sem contudo manter ajuntamento carnal ou ter polução dentro do sesso.
 
E que, nesta cidade de Salvador, por não querer deixar um cristão-velho dormir entre os escravos, dividiram pelo tempo que na loja auxiliou a alcova mesma de Delgado, e que desatinados pelo pecado, cometeram um com o outro muitos e repetidos atos de sensualidade, despidos, ora na cama, ora fora dela, na referida alcova, bem como no bananal na margem norte do chamado ribeirão do peixe.
 
E que, em uma única ocasião, embriagados de vinho do Reino, depois de várias palavras amorosas que entre si tiveram e também de outros afagos, que são os incentivos da luxúria, se pôs o dito militar sobre e que o penetrou, e que sentindo que o penetrara, depois de alguma fricção o tirou, desviando seu corpo para que dentro não derramasse semente de criação, como com efeito não derramou.”
 
A sintaxe e o vocabulário ressoam não apenas a retórica usual nos autos do processo contra Luiz Delgado mas a linguagem vigente de corte seiscentista. Não prevalece a expressão barroca, mas seu traço arcaizante. Vale outro recorte. Desta vez, uma passagem dos argumentos empregados pela defesa do sodomita, quando é preso pelo Santo Ofício pela segunda vez e levado de regresso ao Reino: “Não é totalmente inverossímil que penetrando o cúmplice no vaso traseiro de Doroteu, derramasse fora, pois poderia achar maior deleitação derramando entre as mãos, do que dentro do traseiro, assim como há homens que acham maior deleitação no ato venéreo com mulheres pelo vaso traseiro do que pelo dianteiro, pois o Direito supõem que também com elas se pode cometer semelhante pecado... E não havendo derramamento dentro do vaso traseiro, não há crime de sodomia, e pelo menos, não tem lugar a pena ordinária da fogueira.”3
 
Tudo isso serve para compreendermos por que O sodomita é o romance de alguém picado pela astúcia. Ao suplantar a narrativa pelo relato, o romancista recupera as matrizes retóricas que fundamentaram a existência e as ações do seu protagonista, coloca a literatura ao lado do documental e deste reaviva os protocolos do romanesco e a sua linguagem. Quer dizer, justifica-se o tratamento aplainado dos acontecimentos através da reforma das estruturas emuladas; o escritor se porta como um caruncho, se infiltra por entre as estruturas do documento histórico, percorre os rastros de sua personagem e oferece-lhe uma sobrevida por meio da renovação ficcional. Mesmo os indícios de inverossimilhança sobre os quais não falamos soçobram no desenvolvimento do relato; o leitor observe o diferente desfecho para Luiz Delgado e Florência.  
 
Alexandre Vidal Porto converte a favor do seu romance todos aqueles problemas que o colocariam na já lista extensa das obras duvidosas da nossa literatura em curso. Parece que isso só é possível uma vez. Quem se aventure novamente por essa premissa ao lidar com este ou outro assunto semelhante, e isso inclui o próprio escritor, precisará fazer diferente ou acabará traído por duplo motivo problemático a toda obra artística: a repetição ou a cópia malfadada. A repetição falsearia em parte o que agora se lê como qualidade criativa. Como nem todo romance obedece aos mesmos protocolos criativos, ou melhor, tais procedimentos sempre cobram um uso específico, é provável que os encontrados em O sodomita e lhe emprestam singularidade não sirvam a outros romances, como serviram (e ainda servem), por exemplo, os modelos de certas linhagens. Quer dizer, é sui generis a sua posição na literatura brasileira interessada nos assuntos e circunstâncias do nosso passado colonial. E isso não é nem produto e nem mérito do acaso.


______
Sodomita
Alexandre Vidal Porto
Companhia das Letras, 2023
160p.
Você pode comprar o livro aqui


Notas:
 
1 Trata-se do Homossexuais da Bahia: dicionário biográfico (séculos XVI-XIX) editado pelo Grupo Gay da Bahia (1999).
 
2 O primeiro romance remonta um episódio situado no século XIX: quando os naturalistas alemães Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix; levaram consigo duas crianças indígenas entre as inúmeras coletas de materiais ao longo das expedições que fizeram pelo Brasil. A narrativa do romance de Brito se desenvolve no entre-séculos XVII e XVIII, quando os portugueses avançam pelos sertões da colônia. Os dois romances foram resenhados aqui no Letras: o primeiro por Lucas Pinheiro e por Renildo Rene; e o segundo por mim
 
2 Recorro ao que é citado por Luiz Mott no artigo “Desventuras de um degredado sodomita na Bahia seiscentista”, capítulo do livro Bahia: inquisição e sociedade (EDUFBA, 2010). Este texto está disponível online e é uma síntese da errância de Luiz Delgado como sodomita na colônia brasileira.

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