O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Por Renildo Rene

Micheliny Verunschk. Foto: Renato Parada


 
Aqui está um experimento diferente para você imaginar porque, em certo momento, a onça figura a história deste romance: tente visualizar um encontro face a face com esse animal. Ele te encara assustadoramente e de maneira misteriosa. Sem saber o que ocorrerá, você espera ser acertado como presa/ alvo. Feito o encontro, a onça na verdade está pronta para usar um modo contemporâneo e implacável de fala que percorra um conjunto de conhecimentos, mitos e experiências. Os vários capítulos que estruturam O som do rugido da onça capturam tal dinâmica a partir de perspectivas e visões indígenas, com uma voz narrativa — entre tantas outras — explorando as relações do brasileiro com a sua mitologia originária, e os crimes que se interpõem nesse percurso histórico. Esse é o rugido da onça. Exceto que o animal aqui não caça, mas narra o passado.
 
A premissa do romance é simples: recontar a história do rapto de duas crianças de tribos indígenas diferentes, no século XIX, por dois cientistas alemães. A menina Izabella Miranha e o menino Juri se tornaram vítimas de uma expedição científica conduzida pelos cientistas Spix e Martius para Munique, e aprisionados, mais tarde expostos como objetos de um museu zoológico. Para dar conta da experiência dolorosa ao qual eles são reféns, acompanhamos a viagem trágica e a reprodução dos costumes e histórias da cultura miranha e nheegatu.
 
O fato da primeira parte ter introduzido a trama principal e a segunda os desdobramentos dos eventos dois séculos depois, pela inclusão da personagem Josefa (que descobre o caso), encerraria a habitual representação dos conflitos existentes entre o europeu e o nativo no país. Mas O som do rugido da onça reconstrói também o peso que as conexões ancestrais entre a natureza e o homem tem para essa população. Na terceira parte do livro existe a escolha de colocar uma onça como narradora dos eventos que encerram as páginas finais. O relacionamento da entidade felina com a da entidade romanesca avança o ponto de vista da autora, realocando as fronteiras da forma de narrar com a voz daquela cultura.
 
A razão dessa presença na narração pode ser justificada na obra porque vai além da mitologia representada: há o entrelace e norteamento de outro acontecimento para a personagem feminina principal. Para termos acesso à jornada fantástica de Iñe-e (a identificação original da menina) ao passo de sua futura simbiose com a Onça Grande (entidade ancestral), a palavra do bicho é quem intermedia esse encontro na história utilizando o vocabulário miranha e seus valores simbólicos.
 
“Começo a devolver a sua linguagem e a recuperar a minha. Arre! Precisei dos seus laços de fita, dos seus perfumes, da vidraria que se tem por preciosa pra poder chegar na sua boca. Precisei de mascar o seu cuspo junto do meu, com tabaco e coca, pra mó de contar essa história. O cuspo grosso da minha linguagem misturado no cuspo seu, fino, mas por demais adocicado. Cuspo da minha língua amarga de verde. Gosto assim. Prefiro. Mas tive de me obrigar em propósito de amansamento. (...)”
 
Contada no romance, a transformação existencial e espiritual da protagonista em Uaara-Iñe segue a (re)abertura de seu mundo e de seu imaginário — que outrora haviam sidos interrompidos através de sua vivência nefasta em prol do cientificismo alemão —, e são abraçados pela onça-narradora. Tarefa ficcional incumbida na figura que conhece os dois lados do mundo, o natural e o fantástico.
 
Também O som do rugido da onça está estilizando essa voz narrativa em favor de uma sincronia com os objetivos propostos por sua autora. Partindo da representação histórica, a obra vai ganhando ares do que poderia se perceber de uma adesão a uma perspectiva estética diferente, em face de defender o ponto de vista centrado naqueles sujeitos.
 
Então, o animal como narrador soma-se a uma alternativa para reestruturar a cosmovisão indígena a nível do texto. Assim, o entendimento de que os atos facínoras dos caçadores-cientistas estão ligados a uma sociedade brasileira à serviço dos interesses europeus só é finalizado quando considerado o folclore miranha (muitas vezes, imbuído de neologismos da própria autora) trazido intencionalmente; e que se encontra ali porque existe a onça para compartilhá-lo.
 
Quando dá conta dessas duas dimensões — a da trama propriamente dita e da escritura dos símbolos indígenas —, o leitor pode perceber a mescla de vozes, tempos e lugares que dão corpo ao romance.
 
É certo que dessa mistura, muitos elementos se vagueiam por não serem construídos de maneira a empenhar uma trama mais sólida. E aí há de se estranhar a inclusão da personagem Josefa na segunda parte do enredo. Vivendo no século XXI, a pesquisadora, surpresa com os atos narrados anteriormente, funciona como um acessório da trama principal, e as reverberações sentidas por aquele crime dois séculos depois. Sua presença aparece muito mais para dimensionar o protagonismo da garota indígena, perdendo a continuidade que lhe garantiria mais profundidade no resultado final.



Alguns momentos da fragilidade temporal do enredo e da planificação de personagens parecem falhar e a narração da última parte se torna o eixo de sustentação encontrado. Funcionando em conjunto com as outras vozes narrativas, a onça vai abarcando a visão infantil de Iñe-e e sua palavra-voz sustenta o momento histórico da fusão da menina com a outra onça e consolida a vertente fabular e fantástica do romance.
 
Nesse sentido, podem até existir obstáculos para fortalecer coesão na trama se o leitor encarar a existência de fragilidades na composição desses outros elementos. A subjetividade do menino Juri, por exemplo, é pouco a pouco apagada no andamento. E isso é sinalizador da pretensão de costurar uma coerência com a realidade fora da ficção.
 
Não sendo uma reinvenção total dos estilos narrativos que se apropria, claro, Micheliny Verunschk mescla imagens nacionais já conhecidas — e outras não —  em diversos sentidos. O romance se passa no mesmo cenário colonial de tantos outros autores, traz novamente os indígenas que constantemente foram massacrados e violentados e reforça a necessidade de revisitar o sistema colonial.
 
Isso se torna orientador na leitura, enquanto outra intencionalidade decorre da própria caracterização de mitos e estórias orais. Partindo da onça, se encontra o animal que remete ao ataque à ancestralidade indígena e à natureza dos povos originários, e seus resquícios culturais nos dias de hoje.
 
De alguma maneira, o dilema que o leitor pode encontrar é entender como essa voz da onça irá funcionar enquanto instância narrativa.  Ela surge como a escolha estilística de representar certa cosmovisão, e nisso morde a isca de efetivar um discurso atraído pela necessidade de formar além da oposição ao comportamento europeu, uma espécie de tecido sobre a conexão espiritual entre homem e natureza. E muito justificado naquelas páginas. Como resultado, o rugido dessa obra esbarra em falhas técnicas visíveis, sem deixar de alcançar sua potencialidade enquanto ficção que esturra conflitos e estranhamentos sempre bem-vindos nas discussões literárias.
 
A imagem evocada da onça que narra para rugir movimenta um gosto interessante para o cenário dos últimos anos. O tom histórico alçado pode ser uma zona de transfiguração das referências mais canônicas da autora (como Guimarães Rosa) trazido para um interesse discursivo do século XXI. Entendido esse rugido que percorre as mais de 100 páginas do romance, o mundo que começa para a adulta Uaara-Iñe é o mesmo de uma escrita que precisa se desafiar na forma como pretende acompanhar a tragédia — ainda em andamento — dos povos originários, utilizando suas devidas imagens culturais.
 
Esse tecido duplo exemplifica totalmente a síntese de Verunschk na escolha estética com a escolha discursiva do elemento animal que se sobressai, enquanto outros parecem menos conversados no interior do livro. A falta de força narrativa em outros momentos não esvazia a trama e deixa como questionamento um apelo sobre a circularidade da história das crianças narradas: o que irá sobrar de onça se não tivermos mais onça?


Ligações a esta post:

______
O som do rugido da onça
Micheliny Verunschk
Companhia das Letras, 221
168 p.

 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #613

Boletim Letras 360º #612

Boletim Letras 360º #602

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Cinco obras fundamentais ao leitor de Gustave Flaubert