Ana Paula Tavares, veias finas na terra
Por Pedro Fernandes
as palavras são como os olhos das mulheres
fios de pérolas ligadas pelos nós da vida
— Ana Paula Tavares
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Ana Paula Tavares. Foto: Matilde Fieschi |
São poucos dos reconhecidos escritores de Angola que encontraram certa projeção entre os leitores brasileiros sem antes ocuparem lugares de premiações expressivas como um Prêmio Camões. É o caso de José Eduardo Agualusa, que ingressou em nosso território no ponto alto da chegada dos escritores luso-africanos, de Ondjaki, que morou mesmo certo tempo por aqui, e de Djaimilia Pereira de Almeida. Os demais, um José Luandino Vieira, um Pepetela, já ingressaram nas listas do mais importante galardão para as literaturas de língua portuguesa. Enquanto isso, as lacunas são ainda enormes: Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Uanhenga Xitu ou mesmo Ana Paula Tavares têm pouca ou nenhuma presença em um mercado editorial de fronteiras sempre alargadas, por exemplo, para o pop trash despejado pelos Estados Unidos.
Será que o Prêmio Camões servirá para corrigir a sentida ausência da obra poética de Ana Paula Tavares? Tudo é possível, afinal o bicho mercado possui comportamento imprevisível. Se formos acreditar no nosso velho ceticismo, apostamos que não: é uma mulher e ainda escreve poesia, essa coisa que todos praticam e muitas vezes nem esses leem. Um caso para tanto foi a premiação de João Barrento. Passados dois anos, absolutamente nada do ensaísta português conseguiu atravessar as muitas léguas do Atlântico, mesmo tendo publicado pelo menos um livro por ano desde então: Os infinitos modos da palavra (2024) e Escola do olhar (2025). O escritor pratica, como entrevemos, outro gênero dos que não aparecem nas vitrines ou em primeiro plano nas livrarias, às vezes, sequer nas estantes mais acessíveis. Mas, com Ana Paula Tavares, vai que as tantas linhas entre as quais ela se filia em um momento vigente que chamam promissor não joguem ao seu favor?
Em Portugal não é difícil encontrar os seus livros. A escritora, nesse caso, tem a seu favor, ser conhecida neste país onde se estabeleceu desde há muito: muito cedo foi viver com os padrinhos portugueses, refazendo uma prática comum em Angola quando os pais almejavam melhores alternativas de vida para os seus filhos. De trânsitos entre os dois países, em 1992 já se encontrava agora em Lisboa para concluir o curso de Letras, quatro anos depois o Mestrado em Literaturas Africanas e, mais adiante um Doutorado em Antropologia. Essa bagagem acadêmica de alguma maneira serviu de direcionamento para os desenvolvimentos das suas várias atividades e frentes de sua profissão, notadamente as da cultura, da história e, aquela que nos interessa nesse breve perfil, a da literatura. Quando estreia neste meio, ela ainda residia em Luanda — nasceu numa aldeia de Lubango, ao sul de Angola, em 1952, e depois de se casar viveu, antes de chegar à capital do seu país, em Huambo, Cuanza Sul e Benguela.
Seu convívio com a obra de outros escritores não difere do que chegou às mãos dos de sua geração, notadamente as obras de escritores portugueses e brasileiros, ocupando esses últimos um lugar de predileção; é o tempo dos muitos Best-Sellers de Jorge Amado. E Ana Paula Tavares lê além do romancista baiano, a poesia de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. É dessa formação, portanto, que nasce Ritos de passagem (1985) publicado pela União dos Escritores Angolanos, a associação fundada logo no virar da história de independência de Portugal que ajudou a projetar inúmeros nomes da literatura angolana. Da UEA, muitos desses escritores alcançaram Portugal através da Editorial Caminho e foi o caso da poeta: o livro de estreia chega em 2007, quando vários outros de seus títulos circulavam entre os leitores portugueses: O lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003) e Manual para amantes desesperados (2007). Nesse mesmo ínterim saíram as crônicas de Sangue da buganvília (1998), de A cabeça de Salomé (2004) e o romance escrito com Manuel Jorge Marmelo Os olhos do homem que chorava no rio (2005). Depois de 2007, saíram os poemas de Como veias finas na terra (2010) e Água selvagem (2023), com a poesia reunida.
Para Margarida Calafete Ribeiro, “O olhar feminino, que desde 1985, Ana Paula Tavares lança sobre o seu país através da sua poesia é de facto outro. Não se trata mais de um sujeito poético feminino que se posicionava na pele de alguém que está ao lado de quem masculinamente faz a guerra, a revolução, a nação; não se trata mais de um poema a rimar, como então, com revolução, alfabetização, povo ou nação. O tema é outro, a posição epistemológica do sujeito poético é outra, a fala é outra.” E qual é essa fala? “Pela sua poesia Ana Paula Tavares exige uma outra nomeação das coisas, dos corpos, das pessoas e da terra; fala da memória dos lugares, do amor, dos nascimentos, das outras falas e saberes de Angola. Mas fala sobretudo das mulheres e do silêncio gritante que as habita, num país feito pelas mulheres” — complementa Ribeiro.¹
A poesia foi para Ana Paula Tavares uma teoria da compreensão que desse conta de tudo quanto não sabia e não podia compreender. “O sentido primeiro das palavras tinha-me sido dado pelas mulheres dos pastores que com as suas vozes de cristal enchiam as manhãs de sons e ditados para organizar os dias. Ali, no reino do leite, permiti-me aceder à utopia do desconhecido: o fascínio por uma língua que não dominava onde o ato de contar se fazia presente a toda hora.”² Esses interesses se articulam na sua obra com o legado de outras fontes e tradições; trata-se de uma poética que, do local anseia o universal por compartilhar da ideia de que a condição humana está em toda parte. Quanto à forma, sua poesia herda de João Cabral, por exemplo, o interesse pela contenção, tomando um rumo distinto da poesia estruturada no verbalismo encontrado em maior parte da retórica dos poetas da tradição angolana; de Drummond, o exercício reflexivo. E o extenso diálogo que sua poesia desenvolve com vozes tão distintas: as da tradição oral e pastoril do sul de Angola, as dos gregos, Shakespeare, Camões, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Duarte de Carvalho e muitos outros.
Se na poesia, Ana Paula Tavares reaviva uma Angola transmutada, fora do heroísmo nobre, valendo-se, inclusive dos recursos particulares de sua cultura, tais como a oralidade e o imaginário pastoril, na prosa, ao mesmo tempo que nela incute a chama do poético, ensaia uma interpretação aguda desses valores e um exame do seu tempo, passado ou presente. Carmen Lucia Tindó Secco acrescenta ainda que na crônica a escritora se exerce politicamente; a cronista “se vale de metáforas que atravessam vários de seus textos, cujos multifacetados e sinuosos percursos as transformam em viagens por dentro do tempo e das palavras. Metáforas de dores, medos, opressões, silêncios, violências, mas também de utopias, tradições e sonhos que precisam ser, criticamente, repensados”.³ Nesse território textual em que o imperativo da liberdade criativa é um de seus determinantes, encontramos, assim, a narradora, a poeta, a historiadora e a figura civil, que sempre se posicionou olhando para o seu país natal. Em sentido amplo, se reconhece uma partidária da intersecção entre literatura e participação ativa na sociedade.
Nas primeiras declarações públicas, quando foi nomeada para o Prêmio Camões de 2025, afirmou que ainda carrega a esperança de “continuar a provar que a poesia tem um lugar nas nossas vidas, nos nossos compromissos, nas nossas lutas diárias”; e que quando se soube premiada, primeiro pensou nas mulheres de Angola, as “que continuam em silêncio, a lutar pela vida todos os dias, a inventar a vida, a reconstruir essa mesma vida. Não tenho pretensões de falar em nome das mulheres do meu país. Sou uma mulher angolana e essa é minha função, mas se a minha palavra de alguma maneira puder tocá-las e tocar as instâncias que podem — ou que devem — mudar as coisas é um objetivo que gostava de alcançar.”⁴
O comunicado do júri para o Camões destaca “a fecunda e coerente trajetória de criação estética e, em especial, o seu resgate de dignidade da poesia” — uma justificativa que reitera o valor da obra de Ana Paula Tavares para os rumos um tanto desconexos da poesia em nosso tempo, quase sempre comprometida com um vazio narcisismo ou com um esvaziado plano político, esquecendo-se que não existe poesia sem a segura tessitura com uma tradição, dentro e fora do seu tempo. É uma boa hora para conhecer a poesia de Ana Paula Tavares.
Notas:
1 Estas são passagens do texto “E outras vozes se alevantam — Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões” (Ex Aequo, n. 17, 2008, p.119-129).
2 Depoimento para o podcast do jornal Expresso, Especial Prêmio Camões 2025.
3 Em Viagens por dentro do tempo e das palavras: um balanço poético e crítico dos 40 anos da independência de Angola (Abril: Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, vol.8, n.16, jul.2016, p.213-224)
4 Declaração à Agência Lusa por ocasião da atribuição do Prêmio Camões 2025.
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