 |
Epiteto. Retrato imaginado. Oxford, 1715. |
Recentemente, a série
Adolescência
tornou-se um sucesso global por trazer à tona vários problemas relativos à nova
configuração entre crescimento, redes sociais e violência: por um lado, os pais
não têm tempo ou interesse nos filhos, por outro, a machosfera está pronta para
radicalizar os meninos, vulneráveis nessa época em que precisariam ainda de
apoio, mas estão sozinhos; outros pais se preocuparam em dar todo o conforto
material, mas não são capazes de ouvir seus problemas. A paranoia de que as
mulheres odeiam os homens acaba “exigindo” ação perversa — mais ou menos,
guardadas as proporções, como o povo judeu foi descrito pela ideologia dos anos
1930 como perigoso. Aquilo que os adultos teriam a ensinar foi substituído pelo
ensino das telas — com seu iminente fanatismo e preconceito. Os antigos tinham
até mesmo um deus, Janus, de duas faces, deus dos portais, para observar essa
transição — Carl Jung deu atenção ao mito do herói.
Por outro lado, tem se comentado
muito sobre o transtorno de personalidade borderline, assim nomeado pela
psiquiatria por parecer estar na fronteira entre a neurose e a psicose, no qual
o indivíduo vive instabilidade e impulsividade constantes, passa da sensação de
vazio à raiva descontrolada, à hostilidade, dificultando seus relacionamentos e
projetos. A prevalência populacional pode chegar a 20% em pacientes
psiquiátricos internados (cf.
Psychiatry DataBase). O capitalismo incentiva também
o impulso, que é o novo Supereu (um dever ser social introjetado na educação). O
recente julgamento do caso Sean Combs (P. Diddy) aponta também para os excessos
e descontrole do poder ligados a abusos sexuais, controle obsessivo e cultura
de ameaça — um vídeo mostra como o empresário chuta e arrasta a namorada Cassie
Ventura pelos corredores de um hotel.
Longe de nos propormos a debater
esses temas, que devem ser guiados por discussões informadas ou devidamente
tratados por terapias modernas, podemos chamar a atenção para o modo como a
antiguidade refletiu sobre temas similares e propôs a autopercepção num sentido
comunitário. A autoconsciência tem sido apontada como fator terapêutico central
mesmo para os pacientes borderline.
No Diálogo platônico
Mênon,
Sócrates afirmará que é apenas o autoconhecimento que pode nos trazer a
phrónesis
— sabedoria prática — traduzida
prudentia pelo romano Cicero — a
habilidade mais importante a ser aprendida. Michel Foucault discorrerá, no
século passado, a cultura do cuidado de si, que ele identificou nos dois
primeiros séculos da nossa era (
A hermenêutica do sujeito). Para
Alcebíades, jovem nobre e ambicioso, Sócrates mostrará que não tem a riqueza e
a educação para confrontar seus rivais no campo político — também não tem a
tékhne
(arte), um saber nascido da prudência que lhe capacitaria a competir com os
rivais e governar bem a cidade. Foucault pensa que esse autoconhecimento se dá também
pelo outro (no estoicismo — filosofia de origem grega adotada no mundo romano —
o cuidado de si se reflete no cuidado do outro, por exemplo).
Lúcio Flávio Arriano Xenofonte (ca. 86 -160),
cidadão romano aluno do filósofo estoico de origem frígia Epiteto, compilou as
aulas de seu professor em oito livros (as
Diatribes) e os sintetizou em
um “manual” para uso cotidiano, relacionado à tradição estoica de “meditação
diária” (Introdução ao
Encheirídion, Dinucci, 2021).
Logo no início desse manual ele
escreve: “Das coisas existentes, algumas são encargos nossos, outras não. São
encargos nossos o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa — em suma: tudo quanto
seja ação nossa” (
Encheirídion 1.1). Na Diatribe 48 lê-se: “Sinais de
quem progride: não recrimina ninguém, não elogia ninguém, não acusa ninguém,
não reclama de ninguém”. Quem se submete ao desejo por coisas externas ou às
pessoas que as podem oferecer torna-se “escravo” (
Encheiridion 1, 2).
Portanto, devemos nos concentrar
no que depende de nós, no que podemos de fato controlar, esses “encargos
nossos”: nesse contexto, juízo (
hypolepsis) — como avaliamos o que nos
aparece adicionando uma opinião que dirige nossa conduta;
impulso (
horme) — movimento ativo que
decorre de uma escolha; desejo (
orexis) — aproximação em direção de algo
que consideramos bom; repulsa (
ekklisis) — ação de afastar-se de algo,
evitar o que consideramos ruim (notas ao
Encheirídion, op. cit., p. 73-75).
A parte dos deuses no ser humano seria a capacidade para o impulso e o
refreamento (
Diatribe 1.1, 12). Nem mesmo Zeus poderia submeter a
capacidade de escolha do ser racional.
Flávio Arriano coloca já no início
das
Diatribes uma reflexão sobre as coisas de que escolhemos cuidar e a
que escolhemos nos ligar (
Diatribe 1, 14). Se nos ocupamos demais das coisas
que de fato não podemos cuidar, como das propriedades, do corpo, dos parentes, somos
arrastados por elas. Dentre as capacidades ou artes (
dynamis), como a gramática
ou a música, todas se relacionam com objetos exteriores (“como deves” fazer),
apenas a capacidade racional avalia a si mesma e o uso das outras artes,
indicando o momento propício e “se deves ou não” realizar a ação. Porque a capacidade
racional é que lida com o que nos aparece (as representações —
phantasiai).
Um dos aspectos mais comoventes do
estoicismo é sua recomendação de como lidar com o sofrimento — “contentar-se
com o que foi dado” (
Diatribe 1.1, 27), manter o bom humor e serenidade
frente a sofrimentos (
Diatribe 1, 1.22) e a aceitação das consequências
das próprias ações quando vividas de acordo com os princípios “lógicos”
naturais (
Diatribe 1.1, 18-32). A adesão convicta ao que nos parece
racional — baseada em juízos corretos — não se submete ao autoritarismo das
paixões alheias.
Vemos com admiração de que modo os
antigos pensaram na
phrónesis, na arte da auto-observação, na educação
da escolha e na ação benéfica que nasce da atenção à reação ao que se
apresenta. Isso tudo pensando que a vaidade, a crítica, a ambição acabam por corromper
a sociedade — um líder serve o bem comum (como afirma Marco Aurélio nas
Meditações
– Livro 1, 17).
O universo da cidade-estado grega
ou do Império Romano evidentemente apresenta um cenário absolutamente distante
do nosso (o fundador do estoicismo, o fenício Zenão, está a 2.300 anos de
distância, por exemplo); mas não seria impossível pensar em como as formulações
éticas de seus pensadores dialogam com nossas próprias condutas e realidades. Podemos
ter mais controle sobre uma série de fatores (e até mesmo saber da necessidade
de cuidar do corpo por exemplo — coisa que os estoicos não negam, já que as
coisas que não são a virtude são “indiferentes” no sentido moral; o corpo
também era matéria divina, o Todo Ordenado; por exemplo, o segundo líder da
escola (
scholarchē), Cleantes [ca. 330 a.C. - 230 a.C.], era um boxeador
nascido onde hoje está a Turquia; Sêneca se exercitava com seu servo e
recomendava exercícios simples como “correr, levantar pesos e saltar” —
Epistulae
morales ad Lucilium, XV).
Entretanto,
ainda vivemos um mundo de instabilidade crônica. O desejo ávido por coisas
externas, a incapacidade de julgar o que recebemos, a agressividade baseada em erros
de julgamento são coisas bastante próximas — ainda mais se avaliamos um cenário
de militarização crescente, neoliberalismo irresponsável e planos de produção
de gado nas escolas.
A modernidade nos trouxe maior
respeito pela individualidade, pelos instintos e maior percepção da necessária
liberdade na criação das crianças, por exemplo. Quase nos libertamos das seitas
fundamentalistas e poderes ditatoriais que queriam domesticar mulheres,
comunidade LGBTQIA+ e os não brancos. Mas quando nossas conquistas podem se
tornar sombras, como obsessão e abandono? Os adolescentes levados por emoções
conflitantes, instintos agressivos e desejos poderosos precisariam da sabedoria
nascida de opiniões corretas de cuidadores para não transformar impulsos em
violência. Um senso de comunidade seria necessário quando tudo gira em torno de
aumentar as vendas e desejar comprar. Uma autoconsciência maior evitaria a
impulsividade que alimenta tantas relações vividas na crítica e na agressão.
Como bem viu Pepe Mujica (1935-2025), o
capitalismo é um fenômeno cultural, uma espécie de compulsão pelo dinheiro —
não é à toa que governos orientados à acumulação individual e criação de
hierarquias acabam com o Ministério da Cultura, por exemplo. Ganhar espaços de
liberdade interior nos permite pensar espaços de liberdade política — moldar a
estrutura social para nos permitir crescer em harmonia. Precisamos criar
espaços e tempos de reflexão para evitar a redução das massas ao fanatismo e à
exploração. Pensar sobre si mesmo é evitar que sejamos meros personagens nos
sonhos dos outros. Ou, como diria Marco Aurélio, tornar-nos nós mesmos “césares”
(o que é perigoso). Mantida a crítica prudente, não nos viria mal um pouco da “meditação
diária” da tradição estoica.
Referências
Borderline Personality Disorder (BPD).
Psychiatry DataBase. Disponível
aqui.
Dinucci, Aldo.
Viva Vox
Estoicismo (blog). Disponível
aqui.
Comentários