O Quixote vai ao cinema

Recorte de Dom Quixote de Orson Welles.



Em 2018, por ocasião da estreia de O homem que matou Dom Quixote, seu diretor, Terry Gilliam disse que a obra e a personagem criadas por Cervantes possuem a mesma atualidade de quando foram trazidas a público em 1615. É verdade. A história do engenhoso fidalgo é também tão universal e em todas as épocas serviu de prisma para observar o mundo. E o cinema, que desde sua origem se interessou por enfrentar poderosos gigantes, encontro nas aventuras de Quixote e Sancho uma referência valiosa para a grande tela.
 
Em 1898, a produtora Gaumont, a mesma que gravou seu nome na história da sétima arte transformando o invento dos Lumière em negócio comercial, filmou um curta em preto-e-branco intitulado Don Quixote. O cavaleiro, evidentemente, era mudo e os gigantes se movimentavam de forma acelerada. Essas imagens, como tantas outras dessa arte perecível, se perderam. Assim, o primeiro filme recontando o livro de Cervantes ficou sendo Les Aventures de Don Quixote de la Manche, dirigido por Ferdinand Zecca, em 1903.
 
Passaram-se apenas cinco anos para que outro filme buscasse seu roteiro nos périplos e errâncias do cavaleiro andante. E, na sua terra natal. Em 1908, o diretor Narciso Cuyás filmou El curioso impertinente e Don Quijote (com Arturo Buixens como o protagonista de Cervantes). Depois disso, numerosos cineastas espanhóis se aventuraram no ofício de adaptar para o cinema a história de seu compatriota.
 
O interesse — que a presença do cineasta estadunidense referido no início deste texto denota — não ficou restrita aos criadores espanhóis. Ao longo do século XX, grandes nomes da arte com imagem em movimento também se empenharam em recriar os moinhos da remota La Mancha como gigantes. De Georges Méliès a Orson Welles, todos ora seguiram os passos das histórias de Cervantes ou as adaptaram de maneira livre ou apenas pinçaram do romance referências para outros roteiros.
 
Nesse ínterim a imagem do fidalgo que se transforma depois do excesso de leituras de novela de cavalaria passou por diversas metamorfoses. Na primeira metade do século, era um fidalgo abobado e meio tolo, tão distante da épica das novelas de cavalaria como de sua Dulcinea. O velho Quixote precisou aguardar até 1955, quando Orson Welles decidiu se aprofundar criteriosamente pelo imaginário cervantino.
 
O Quixote de Welles, que chegava a duas horas de duração, foi protagonizado por Francisco Reiguera e Akim Tamiroff e se convertia em um mito moderno que viajava pela Espanha da época apontando sua lança para carros e altos edifícios. A interferência da morte findou por interromper o projeto; foi Jess Franco, amigo do diretor de Cidadão Kane, quem retomou o trabalho e realizou sua estreia durante a Expo de Sevilha em 1992 com o título Dom Quixote de Orson Welles.
 
Anos antes do início das filmagens do cineasta estadunidense, Sidney Lumet, diretor de destaques como 12 homens e uma sentença e Um dia de cão, recebeu a incumbência da CBS de produzir uma versão do Dom Quixote para a televisão. O diretor, ainda um jovem que não havia se destacado na sétima arte, atendeu ao convite e fez um filme plano que seguiu o esquema do livro e sem grande criatividade.  
 
Ora, o cavaleiro de La Mancha chegou a viajar — veja só — à União Soviética. Foi em 1957, quando os soviéticos enfrentando passo a passo os Estados Unidos e com sua ideia de criar um mundo em que sua sociedade era o modelo a ser seguido. Sim, imaginem um Quixote e um Sancho preocupados com a luta de classes e servindo de exemplo para os trabalhadores incitando-os a se rebelarem contra os poderes opressores. Dirigido por Grigori Kozintsev — que também filmou mais tarde obras de Shakespeare, como Hamlet e Rei Lear —, o filme só estreou cinco anos depois da morte de Stálin a fim de que esse Quixote libertário não fosse condenado a cavalgar pelo inferno de gelo siberiano.
 
Mas foi sempre em sua terra natal que milhares de quilômetros de celuloide serviu para reimaginar as andanças do engenhoso cavaleiro. Desde o primeiro filme de 1908 foram realizados ao em torno de 35 adaptações para o cinema ou para televisão. Na lista das mais destacadas está a realizada por Manuel Gutiérrez Aragón para RTVE e protagonizada por Fernando Rey e Alfredo Landa, com o roteiro do autor de A colmeia, Camilo José Cela. Esse sucesso levou o mesmo diretor a levar o Quixote para o cinema em 2002 com Juan Luís Galiardo e Carlos Iglesias nos papeis principais.
 
Nos últimos anos, o sempre destacado diretor catalão Albert Serra, diretor dentre outros do recente Tardes de solidão, também quis mergulhar nos meandros da loucura quixotesca. E fez isso com Honor de cavalleria — estreado no Festival de Cannes de 2006 —, uma boutade com orçamento baixíssimo e uma equipe minúscula que é, mesmo assim, tão indescritível como, no mínimo, interessante.
 
E para não dizer que falamos, vale acrescentar a presença da obra de Cervantes no cinema de animação, refazendo certo caminho que as andanças do cavaleiro da triste figura tem alcançado nas adaptações da literatura para a infância. Três títulos se destacam nessa vertente cinematográfica: Donkey Xote, dirigido por José Pozo; As aventuras de Dom Quixote, de Antonio Zurera — indicado ao Goya de Melhor Filme de Animação; e a série para a infância Don Quijote de La Mancha exibida entre 1979 e 1980 e criada por Cruz Delgado.
 
Bom, se depender do cinema, muito ainda poderá sair das páginas daquele tempo longínquo num lugar perdido de La Mancha um fidalgo de meia-idade atacado pela ideia de que era um cavaleiro lançou-se ao trabalho de socorrer os desvalidos num mundo em que a cavalaria há muito deixara de existir. Incluindo, coisas como a feita por Gilliam que, está claro, não é Cervantes.


 

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