Sobre Manual de estoicismo: a visão estoica do mundo

Por Afonso Junior



Sempre que leio Epicteto (filósofo nascido em torno ao ano 50 na Frígia) eu tenho a sensação de ser pego de surpresa com alguma percepção muito impactante sobre a vida cotidiana. Também Marco Aurélio parece nos sacudir com sua filosofia crua; quando, por exemplo, fala (a nós, mergulhados no caos do carbono) da “respiração conjunta” de todos os seres e da “unidade da substância” (Meditações, 6.38). Eu os leio com espanto, e não apenas com curiosidade.  

Eu me lembro de um professor do mestrado que nos orientava a “não escrever para a massa” (também havia quem não achasse que todos tinham de ter faculdade, já que seriam sempre necessários “bons padeiros”). “As pessoas que lerão o seu trabalho”, dizia, “são especialistas, e não convém ser muito didático”. 

Lembro de que sentimos um certo incômodo com o fato de que tanto esforço era para ser “consumido” por um grupo tão seleto. É natural que, numa sociedade capitalista, que cria desigualdades, diversos níveis de complexidade se apresentem. Por outro lado, se os impostos financiam a infinita sofisticação de uma pesquisa que não retorna ao público, vivemos um paradoxo. (Nossos órgãos financiadores não parecem valorizar nem mesmo a tradução, quanto mais a divulgação). É um grande desafio buscar um rigor científico que, ao mesmo tempo, possa ampliar o círculo dos beneficiados — o nome disso é República. Porque a burrice é uma categoria política, como tem ficado provado. 

Outra discussão era se a filosofia poderia ser útil ao tempo presente ou apenas erudição com os conceitos do passado. Por um lado, atrelar toda ciência a um resultado imediato é uma conhecida fórmula nazista. Conhecer o passado e a realidade mais ampla, por si só, são coisas que ressignificam o que é ser humano, e muitas descobertas se provam úteis de forma inesperada. Por outro, a erudição que não resulta em nenhum aprimoramento mais palpável da sociedade (a não ser algum livro caro em alguma estante oculta) gera desconforto diante de desafios cada dia maiores (por exemplo, o aquecimento dos oceanos, resultado de nossos modos de transporte e produção, e até mesmo a animalização crescente do ser humano, já que o que vende é a carne e o agora, e novos vícios surgem de novos desejos comerciais). 

A meu ver é necessário esforço para reconstruir a trama de conceitos dos pensadores antigos, como nos exige a mecânica universitária, e ao mesmo tempo, quando possível, buscar neles algo de vivo e instigante, que nos ajude avaliar e moldar nossa atitude e nosso mundo (aceitando que o contexto nunca nos permitirá repetir suas convicções). Já o fundador do estoicismo, Zenão, o fenício, nascido em 334 a.C., conta o historiador Diógenes Laércio, foi recomendado por um oráculo a “ficar da cor dos mortos” — quer signifique ler os antigos, quer passar pela iniciação filosófica, assim como os iniciados nos Mistérios representavam o além. 

Hoje, vemos as universidades serem alvo de ataques e, ao mesmo tempo, uma pressão interna cada vez maior por produção; ainda assim, caberia aos pesquisadores, em meio a infinitas cobranças, fazer uma ponte com os não-especialistas (e, à sociedade, exigir o necessário para essa aproximação). Esse é o esforço do professor Aldo Dinucci, meu orientador, que há mais de 20 anos estuda e traduz o estoicismo desenvolvido por autores como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. 

Nesse Manual de Estoicismo (Auster, 2023), ele nos apresenta a teoria (ou teorias) desses pensadores e nos instiga a usá-la para ampliar nossa descoberta do mundo e definir nossa ação. O livro consegue, em menos de 150 páginas, sintetizar diversas camadas de conceitos e diversas temporalidades (já que, se tomarmos Marco Aurélio como um símbolo do “último estoicismo”, temos aí pelo menos 500 anos de uma produção polêmica e complexa). Apresenta-nos, na parte inicial, uma “breve biografia” dos principais pensadores e uma “história da filosofia estoica”. 

Os estoicos têm como material pelo menos três grandes sistemas herdados da antiguidade: o modelo socrático (que vê as virtudes da alma como o verdadeiro bem), a física de Heráclito (com sua ênfase no processo e na onipresença da Inteligência — Logos,) e o cinismo, com sua recusa do senso comum e a ideia de independência (Crates de Tebas, o cínico, foi professor de Zenão), além da rigorosa investigação conceitual dos platônicos e aristotélicos, de quem transpõem alguns conceitos. Um deles, o de phantasia (representação ou “aparição” na mente, composta de imagem e juízo), tem origem platônica. A capacidade de escolha (prohairesis), que é o “bem” do ser humano, por meio da qual se decide não se submeter às coisas exteriores e manter sua liberdade, vem de Aristóteles. 

Por muito tempo se viu o estoico como alguém que apenas desejava abster-se das paixões. A paixão é o oposto da tranquilidade, uma meta do amigo da sabedoria. A paixão seria um movimento excessivo da alma (Marco Aurélio fala da expansão e contração da alma no prazer irracional e no sofrimento — Meditações, 4.4), correspondendo ao assentimento a uma proposição falsa — busco o que é bom, fujo do que é ruim. “As paixões más são resultado da ignorância” (p. 106). 

Quando pensamos que coisas externas, que não são bens nem males, são, por exemplo, bens presentes e se deve desfrutá-los, esses falsos juízos geram a paixão chamada hedone (prazer). Assim, “colocando seu bem” em coisas exteriores, geramos agitação na mente, pathos (“paixão no sentido de sofrimento mental e moral” como afirma Dinucci (As diatribes, de Epicteto, 2020, nota 237). Para observar-se é preciso conhecer as principais emoções más e suas espécies: sofrimento (por exemplo, inveja), medo (por exemplo, angústia), prazer (por exemplo, o deleite perverso), desejo irracional (por exemplo, cólera).
 
Os vícios (como a imprudência, a intemperança, a injustiça e covardia) são ausência de conhecimento, que gera um desequilíbrio anímico. “Na verdade, o desejo irracional, o medo e o prazer conduzem, todos eles, mais cedo ou mais tarde, ao sofrimento e a virtude traz consigo a liberação de todo e qualquer sofrimento” (p. 108). Nossa escolha pela prudência, temperança, justiça e coragem (as quatro virtudes douradas) nos traz movimentos harmoniosos da alma: o desejo racional, o cuidado, o contentamento, que são as boas paixões. 

Melhor seria ver esse esforço como um desejo de adequar sua razão a Razão do Cosmos. Cícero nos dirá em “Sobre a Natureza dos Deuses” (Livro II, 22):

“Zenão, portanto, define a natureza de modo a afirmar que seja um fogo artificioso avançando com método para gerar. [...] Portanto, sendo tal a mente do mundo e por essa razão podendo com justeza chamar-se ou prudência ou providência (pois em grego se diz pronoia), provê essencialmente estas coisas e com elas sobretudo está ocupada: primeiro, que o mundo seja o mais apto possível para durar, depois, que não careça de nenhuma coisa e maximamente que nele haja uma rara beleza e todo tipo de adorno.” (trad. de Leandro Vendemiatti, Unicamp, 2003).

Observamos os ciclos dos astros e a forma como, na natureza, tudo parece ter uma função. Deus (o fogo artista — pyr technikon) contendo as “sementes” (logoi spermatikoi), molda o universo manifestando-se como Providência. O pneuma (mistura de ar e fogo) determina a ordem do cosmos, processo constituído de corpo (terra e água) e alma (fogo e ar) (p. 124). Podemos perceber essa ordenação no que nos foi dado para nosso suprimento, a que devemos ser gratos, assim como devemos exercitar a gratidão a todos os dons da fortuna. 

A inteligência do universo (logos), assim como a nossa, presentifica-se pelo “bom fluxo”, sendo uma espécie de beleza e proporção correta.  “Na acepção física, as emoções boas perfazem na alma um movimento ordenado e simétrico” (p. 102). A felicidade é a virtude, que é serenidade. Precisamos usar da melhor maneira aquilo que cabe a nós, e das demais coisas nos servir como Deus as quer: “Devo ser exilado. O que me impede de ser exilado rindo, com bom humor e sereno?” (As diatribes de Epicteto, 1.1). 

Mais adiante, o autor nos apresenta os três tópicos da filosofia de Epicteto. O primeiro, o Tópico do juízo (krisis): por ele, desconstruímos as falsas crenças e compreendemos que “nenhuma coisa externa é por si um bem ou um mal” (p. 56). Se somos vítimas de aflição e medo é porque damos valor a coisas sem valor ou ficamos irritados porque algo sai como não desejamos, ou pessoas agem contrariando nossa vontade (Manual, de Epicteto, 12). As coisas que nos têm como causa (juízo, impulso, desejo e repulsa), as operações mentais, são as que nos podem garantir liberdade e felicidade (Manual, 1). 

No Tópico da ação, devemos pensar sobre a ação conveniente (de acordo com o conhecimento do que é bom e mal e das relações sociais, por exemplo, o respeito devido aos pais) e sobre a ação comunitária. Sendo parte da Inteligência Divina e, como que Órgãos do Cosmos, temos nossa função comunitária e devemos aceitar os fatos que não podemos controlar como fatos que decorrem da rede de causalidade cósmica e do desejo divino. 

No Tópico da persuasão (do externo), refletimos sobre a representação e sua interpretação: por exemplo, ao ver uma pessoa atraente, como não ser escravizado pelo juízo de que esse movimento em direção a ela me será um bem, exercendo o autocontrole? “Não é o acontecimento que o oprime, mas sua opinião sobre ele” (Manual, 16). 

Esses são apenas alguns exemplos de importantes ideias sintetizadas no texto. Ao final, no capítulo “Como escrever seu próprio manual”, o autor nos convida a “encarnar os princípios filosóficos” por meio da “investigação introspectiva” e de alguns exercícios. No apêndice, um glossário e uma seleção de “ditos célebres” coroam esse esforço magnífico. Temos que celebrar que ainda possamos, no Brasil, gerar pesquisadores de tanto mérito. E, em especial, que o público tenha acesso a sua pesquisa, e possa até mesmo nutrir sua própria vida com os desafios que os antigos nos legaram. 


______
Manual de estoicismo: a visão estoica do mundo
Aldo Dinucci
Auster, 2023
144p.


Referências

Aurélio, Marco. Meditações: os escritos pessoais de Marco Aurélio. Trad. Aldo Dinucci. São Paulo: Penguin/ Companhia das Letras, 2023.
Epicteto. As diatribes de Epicteto — livro I. Trad. e notas Aldo Dinucci. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2020.
Epicteto. Manual de Epicteto. Trad. Aldo Dinucci e Alfredo Julien. São Paulo: Annablume; Coimbra: Editora Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. Disponível aqui.  
Vendemiatti, Leandro Abel. Sobre a natureza dos deuses de Cícero. 2003. Dissertação de mestrado (Programa de Pós-Gradução em Linguística/ Área de Línguas Clássicas). Universidade Estadual de  Campinas, 2003. Disponível aqui.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Fedra de Eurípides, Fedra de Racine

Seis poemas de Konstantinos Kaváfis

Com licença poética, a poeta (e a poesia de) Adélia Prado

Dez poemas e fragmentos de Safo

Boletim Letras 360º #669