Sylvio Floreal de trás para a frente — uma nota imprevista da alma
Por Lucas Paolillo
Nesse saco de gatos que é a
filosofia, Nietzsche foi o gato que mais miou, arranhou, revolucionou e depois
saiu airosamente com uma porção de unhas desses felinos cravadas no crânio, o
que lhe proporcionou a maior apoteose que um espírito como o seu poderia
ambicionar — a loucura!
— Sylvio Floreal.
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Sylvio Floreal. Foto: A Cigarra, 1927. |
Sylvio Floreal é um personagem de
difícil enquadramento. Acertar na medida para apreciar os seus escritos é tão
desafiador quanto compreender a sua figura. Conforme veremos, ambas não são muito
dissociáveis. No entanto, se essa dificuldade se faz visível, é apenas porque a
invenção que ele fez de si mesmo cumpriu, de um modo ou de outro, seus propósitos.
Observação, é bom que se diga, devida à jornada de Floreal ser movida por muita
invencionice e imaginação caudalosa. De início, suas intervenções na vida
literária se fizeram sobretudo pela via da performance verbal, teatral, disseminadora
de ornamentos e paradoxos (a começar pelo seu pseudônimo, pelo qual o chamamos
até hoje), tendo desaguado, ao fim e ao cabo, numa série de escritos. Dentre eles,
cinco livros: Attitudes (1922), A coragem de amar (1924), O
rei dos caça-dotes (1924), Ronda da meia-noite (1925) e O Brasil
trágico (1928). Todavia, para que esse caminho pudesse existir, Floreal se amparou
num acúmulo de lutas e contou com alguma ajuda (de amigos, como Paulo Gonçalves
e outros) contra a precariedade ao seu redor. Mas não só. Também se ancorou na própria
teimosia, tomada, em geral, como decisiva e arbitrária. Seja como for, entre
uma ponta e outra, Floreal rabiscou sua presença como escritor de seu tempo num
daqueles casos que saltam aos olhos por dizerem em alto e bom som que são
exceção à regra, ponto fora da curva.
Passados tantos anos, a questão que
fica é o que fazer com esse traçado. Em “Estouro e libertação” (1945), por
exemplo, Antonio Candido sugere maior aproveitamento ao dissociar as diatribes
oswaldianas da produção escrita do seu autor. Cotejando as sugestões desse
caminho, não parece justo fazer o mesmo com Floreal por razões de forma e
condição. Submerso no pântano onde se escancara a tendência nacional por
subtração, não espanta que, ao morrer, Floreal também tenha sido enterrado como
indigente. Desde ali, o desafio de situá-lo de corpo e alma continua. Para enfrentá-lo,
as entradas são inúmeras. Se nos permitirmos brincar com o título de um livro
que ele anunciou, mas não escreveu, podemos dizer que questionar esse
soterramento e suas possíveis heranças evoca ambivalências: ao menos uma
“glória” — a experiência de vida singular de um escritor de origem popular em
contexto oligarquizado, cercado de homens sem profissão e primos pobres, conforme
tabulação de Sergio Miceli — e uma “tortura” —a difícil elaboração daquilo que constituiu
a partir das referências de seu repertório literário, junto a suas aplicações
práticas. Entre ambas, um curto-circuito de formação e teratologia que
evidencia desafios a quem ousar projetar nele algo de inteiriço. Temos assim,
de saída, uma condição marcada por desproporções graves, o que complica iniciativas
que o tomam como assunto: a facilidade de errar na mão e calcar na tinta ao priorizar
uma característica daqui ou dali fica sempre à espreita.
Para termos uma noção disso,
retomo a impressão inicial que tive do personagem ao me deparar com uma
reedição de Ronda da meia-noite (1925), num desses acasos de livraria. Logo
no prefácio, fiquei surpreso. O ângulo de apresentação escolhido pelo
prefaciador dizia de Floreal mil e uma pompas muy guapas — digamos com um
pouco de bom humor — capazes de elevá-lo quase a uma condição de herói positivo:
teríamos em mãos uma espécie de Jules Vallès emergido diretamente do submundo das
dificuldades do terceiro mundo? Afinal, Floreal foi descrito ali como um pedreiro
tornado anarquista inveterado e que viria a se tornar cronista, uma espécie de intelectual
orgânico da Federação Operária de Santos sintonizado com os segredos a serem desvelados
bas fond afora. Por isso, candidato de honra a ser um dos nossos primeiros
escritores operários e, por algum motivo, ainda esquecido. A julgar por essa
entrada, um prato cheio. Ao mesmo tempo, o prefácio registrou uma pulga atrás
da orelha muito lúcida sobre o tal escritor, como quem observa um ligeiro desalinho
na visão proposta: apesar do percurso e das origens, a linguagem de Floreal
descambava para um tom moralista que nada tinha a ver com tudo aquilo, dado que
o seu dedo em riste apontava contra aqueles que, em teoria, também eram dos
seus, os de baixo. Registrada a verruga no quadro, o prefácio não pareceu se
incomodar muito com isso.
Depois de andar às voltas com essa
figura por alguns anos, descobri, ao escrever um artigo que foi publicado em
revista acadêmica, que esse passado de Floreal bom de se puxar sardinha (ao
qual se soma uma passagem pelo Grupo Zumbi de Afonso Schmidt), embora fosse a
seu modo verdadeiro, também foi deixado de lado pelo escritor com alguma ênfase
— e temos aí uma pista decisiva para compreender o quiprocó. No rastilho do gosto
por ornamentos, Floreal se encrespou com o seu passado, ansiado que estava por brilhar
literariamente. No lugar dos seus vínculos, pesou a ênfase de uma afetação
compensatória movida a fantasia instrumental. Diante disso, cada um sabe o que
faz, mas, de um modo ou de outro, fica claro que o prefácio referido há pouco viria
a ignorar uma certa noção, ainda que aproximada, de datação. Pois o Floreal escritor
de Ronda da meia-noite (1925) já havia rompido com as suas origens em
Santos há algum tempo. Como disse o mesmo Schmidt em crônica evocativa, o
convívio do escritor com os camaradas trabalhadores não prosperou frente ao
desejo de aristocracia um tanto quixotesco que perseguia (inspirado, o relato
nos diz, por um Nietzsche de segunda mão) — este um dos motores de seu
atirar-se de ponta-cabeça na literatura.
No entanto, de par com o tal
desejo de aristocracia, também caminhava junto a ele o seu oposto: uma
resistência considerável para encarar de frente as deficiências de sua formação,
alusão profunda porém um tanto abafada da sua condição social. No lugar de uma
disposição mais construtiva, para o bem e para o mal, mais fantasia vinha a
ornamentar suas desproporções. As quais, de certo modo, se azeitavam, na
prática, no estilo de vida inebriado do personagem: suas aspirações se apoiavam
tanto na boêmia déclassé quanto no ressentimento estratégico que fazia
saltar flechas da sua boca quando algum homem sem profissão ou primo pobre o incomodasse:
“burguês!”. A fim de ilustrarmos esse ponto, recordo um episódio narrado por
Ribeiro Couto. Certa feita, em tensão com uma oportunidade de emprego de
revisor numa redação de jornal, Floreal teria utilizado o bordão com rara
acuidade: “Eu não dou para isso! Isso é burguês! Isso é para esses indivíduos
que nascem com a canga no pescoço!”. A seu modo, ficaram ditas ali algumas
verdades sobre o meio literário no qual se metera.
Para o escritor, este adjetivo — “burguês!” —, distribuído a torto e a direito, servia para acusar tudo aquilo que fosse capaz de engrossar a sensibilidade, mas confessava, por outro lado, a sua sensibilidade engrossada. Se, olhando uma vez, o cacoete fica com jeito ingênuo de categoria mal posta, olhando pela segunda, e valorizando a licença poética como categoria nativa, o uso ganha um encaixe interessante quando tomado junto a uma série de fatores: a vivência de classe do escritor, sua aversão boêmia ao trabalho numa sociedade pós-escravocrata, a percepção de diferenças de formação condensadas, um dandismo art nouveau, o desejo de independência marginal e, bem, um modo que arrumou de colocar o dedo na ferida. Falava de classes, enfim, espremido por elas — tema abordado em sua literatura com mais frequência pelo viés moral, no afã dos escândalos, do que propriamente pela clareza das situações. Nisso, ficava como um quixote, sim, mas expressivo, numa condição que dá o que pensar. Se quisermos explorar esse sentido, Francisco Pati nos recorda de tais paradoxos de intelectual em “O ofício de escritor”, crônica de jornal escrita em 1951:
“Invoco frequentemente nestas crônicas
a figura e o nome de Silvio Floreal. Era um boêmio sem profissão definida. Não
tinha nem fazia questão de ter profissão, isto é, de trabalhar. ‘Um artista não
precisa trabalhar para viver’, dizia. Imbuído de Nietzsche através de Vargas
Vila, com umas tinturas também de Schopenhauer, perambulava pelos cafés de São
Paulo, onde surgiu em fins da Primeira Conflagração Universal. Sentava-se à
mesa e pedia média achocolatada e pão com manteiga. Ficava depois à espera de
um Mecenas. O Mecenas aparecia invariavelmente na hora oportuna. Pagava a
despesa. Sílvio Floreal agradecia recitando meia dúzia de paradoxos. Fazia isso
três, quatro vezes por dia. Vivia de paradoxos e médias”.
Frente ao exposto, em obediência à
ilusão aristocrática, não surpreende que a figura de Floreal fosse, digamos, pouco
afeita às questões de tato. Hostil à polidez e munido de ornamentações espalhafatosas
e paradoxos cabeludos — todo um pacote que o diferia de cima abaixo dos
escritores arranjados —, tornou-se um personagem atrapalhadamente anedótico. Porém,
conforme o trecho acima destaca, essa falta de tato particular não significou disposição
ao encasulamento. Estranho aos códigos, havia impolidez porque, muito à
brasileira, Floreal extrapolava: com fundo falso e tudo, o nem mais operário e
nem ainda aristocrata queria ser mais realista do que o rei num contexto em que
cenáculo paulistano das letras pré-1930, o chão no qual pretendia fincar os
pés, ainda claudicava. Se um dia chegou a mirar os salões, ficou mesmo entre os
cafés. Fantasia e marginalidade de mãos dadas. Nessa toada, não lhe restaria
alternativas: o teatro para o qual se talhou personagem teria de se dar tanto à
luz do dia quanto à noite, pois era dele que, em boa parte, se fiavam seus
meios de subsistência. Como bom déclassé, Floreal tinha de perambular
por aí. Não à toa, ganhou de Brito Broca o epíteto de literato ambulante devido
às suas turnês pelo interior (onde, longe das oligarquias letradas, arranjou a
solução de se destacar frente aos provincianos). Nesse sentido, outro dos
fatores responsáveis por não deixar a produção de Floreal completamente
esquecida foi a disposição dele em sondar, próximo ao modelo das reportagens
francesas, o submundo recalcado pelo liberalismo de mentirinha ao quadrado das oligarquias
pré-1930: a visão ampliada de quem tinha um pé aqui, outro pé ali e o bolso em
lugar nenhum.
Manter isso à vista nos dá oportunidade
de conversar sobre uma orientação de fundo: se forma é conteúdo social
sedimentado, nos deparamos, outra vez, com os mistérios de mostrar e esconder
em Floreal. Conforme meu escrito anterior, sabemos que esse ponto se destaca no
seu impressionismo vibrante.1 Contudo, tais mistérios também andam
de par com os seus passos e tropeços. Quer dizer, o que Floreal queria mesmo com
o seu moralismo encantado (“cheio de orgulho como um rei”, viria a dizer Couto)
era se salvar da ordem oligárquica, mas fiado apenas nos valores e condições da
alienação com a qual dançava: o julgamento supostamente acima dos interesses –
sua distinção de juízo. Dimensão que as sondagens de Cilza Carla Bignotto sobre
as posições de Floreal no mundo literário, ao modo dela, reiteram. De maneira
que, se estamos corretos, a certeza cultivada no íntimo por Floreal (um
sentimento ulcerado de superioridade desconhecida) pode ser tomado como
expressão do desalinho que nos interessa: de um lado, um desejo mal encaminhado
de cooptação da ordem que o frustrou repetidamente e, do outro, uma tentativa
de contraponto à regra da condição oligárquica da pessoa culta. Por isso, sem
tostão, não surpreende que o desejo de aristocracia enlaçado aos seus bloqueios
ressentidos fosse hostil ao trabalho — “burguês!” — e, na flutuação sem
vínculos de classe, sua mistificação encantadora culminasse na porta dos fundos
comezinha do favor. Disso para a escrita de livros como A coragem de amar
(1924) e O rei dos caça-dotes (1924) — de olho nos furos sujos do quase-estamento
para ascensão social — ou Ronda da meia-noite (1925) e O Brasil
trágico (1928) — ao fuçar em lugares estreitos para as oligarquias
paulistanas —, um pulo. Eis o lado mais interessante que o municiou: o acesso a
essas experiências desprezadas. Quem diria que, nestes termos, Floreal fosse um
dos precursores do Ne travaillez jamais, aos trancos e barrancos.
O dramático, neste caso, é que a
teratologia entrevista sob os passos e tropeços de Floreal ficou a se debater o
tempo todo com aquilo que Candido chegou a chamar de perversão da Aufklärung:
em resumo, certa redução da cultura — ressecada pela força nos continentes
latino-americanos — a instrumentos de dominação social, cujas raízes remetem às
relações coloniais. No fundo, a perversão do ideal ilustrado em Floreal, sua
busca sonâmbula pela beleza desdenhosa das relações materiais, dá um pouco o
tom da comédia de erros e do tamanho do recalque no qual se enredou. Ao mesmo
tempo, oferece uma chave por onde, no interior dessa comédia, é possível
encontrar elementos para compreendê-lo junto às suas peripécias férteis de déclassé.
Nesse sentido, uma frase de Couto tangencia dimensões sensíveis a esse processo,
muito embora com o nariz empinado: “O seu melhor livro [de Floreal] teria sido
aquele em que pusesse toda a miséria da sua existência até a adolescência: um
homem de gênio entre sopas de repolho e pão de quilo. Teve, entre tantas
ingenuidades, a ingenuidade máxima de esconder a sua origem”. Ingenuidade que o
afastou dos trilhos responsáveis por notabilizarem, noutro tempo, uma escritora
como Carolina Maria de Jesus. Eis o “trocadilo” (Estamira) que, de certo modo, embaralhou
as expectativas sobre sua figura. No entanto, essa dimensão guarda lá
explicações. Para tanto, acompanhemos Candido em “Literatura e
subdesenvolvimento” (1973). De início, vejamos um trecho no qual o crítico observa
os vícios do provincianismo cultural inconsciente das suas debilidades
estruturantes e necessidades incontornáveis. Ali, a passagem mira no que há de
pior e acerta em cheio, sem querer querendo, no repertório fin-de-siècle
de Floreal:
“Há outros casos francamente
desastrosos: os de provincianismo cultural, que leva a perder o senso das
medidas e aplicar a obras sem valor o tipo de reconhecimento e avaliação
utilizados na Europa para os livros de qualidade. Que leva, ainda, a fenômenos
de verdadeira degradação cultural, fazendo passar obras espúrias, no sentido de
que passa um contrabando, devido à fraqueza dos públicos e à falta de senso dos
valores, por parte deles e dos escritores. Veja-se a rotinização de influências
já de si duvidosas, como as de Oscar Wilde, D’Annunzio e mesmo Anatole France, nos
Elísio de Carvalho e nos Afrânio Peixoto do primeiro quartel deste século. Ou,
no limite do grotesco, a verdadeira profanação de Nietzsche por Vargas Villa,
cuja voga em toda a América Latina alcançou meios que em princípio deveriam ter
ficado imunes, numa escala que pasma e faz sorrir. A profundidade dos
semicultos cria estes e outros equívocos”.
Diante desse trecho, quem se
dispuser a compreender com maior proximidade as influências de Floreal não
tardará a constatar que Oscar Wilde, D’Annunzio e Vargas Villa — o autor da
“verdadeira profanação de Nietzsche” — são pilares sólidos que sustentam os
seus escritos. Todavia, tais equívocos da profundidade dos semicultos, vimos,
tem responsáveis: como dizia o velho bardo barbado, as ideias dominantes de uma
época sempre foram as ideias da classe dominante. Para que tais ideias
desaguassem nos ornamentos e paradoxos presentes nas palavras do nosso
escritor, muita água teve de rolar. No meu artigo anterior, argumentei que a
sedimentação desse repertório em Floreal falava mais sobre a rotinização das
formas do século dezenove, tardias em nossa Belle Époque dilatada, e a
desagregação daquela sociedade do que outra coisa. Afinal, para haver a exceção
à regra, é preciso haver brechas: quanto mais gastas as estruturas, maiores os
furos. Por isso, esperar do nosso pobre escritor o mesmo repertório avant la
lettre dos modernistas cultivados naquele decênio de vinte é, fora de
dúvida, tomar gato por lebre. É evidente que um personagem como Floreal está em
muito distante de um Mário de Andrade — eis, inclusive, um dos motivos pelos
quais me decidi por escrever sobre aquele no mitigado e descelebrativo ano de
2022. Assim, não é por acaso que o repertório de Floreal guarda mais
semelhanças com a produção literária escrita no Rio de Janeiro (os
decadentistas reunidos em torno da editora de Benjamim Costallat) do que a de
São Paulo (onde os poucos análogos ao nosso escritor se agregavam em torno de
Monteiro Lobato). Junto às diversas outras manifestações que demarcaram as
instabilidades da República Oligárquica naqueles anos vinte, as peripécias
miraculosas de Floreal, a partir da sua estatura, também passaram seu recado.
Cientes do movimento das placas
tectônicas, fica mais simples o passo adiante para situarmos também o modo como
a experiência do nosso escritor tomou vez nos livros que deixou. Sobre isso,
Couto nos oferece alguns atalhos quando fala na gênese de Ronda da
meia-noite (1925): a matéria com a qual Floreal trabalhou partia das “coisas
que ele conhecia bem por experiência própria: Albergue Noturno, ladeiras
soturnas, bairros sinistros, tavernas, zonas de mulherio cantarolante,
desgraça, miséria”. Somadas ao parco bazar de formas que lhe foi disponível,
temos, então, os recursos formais e a matéria da experiência. Alguns dos
contornos decisivos, portanto, para a compreensão do curto-circuito mencionado logo
no início.
Assim, se quisermos pensar o
sentido desse curto em plano aberto, podemos agregá-lo aos termos do seu tempo
ainda na esteira do Candido de “Vanguarda e subdesenvolvimento” (1973). Ao
retomar também, para fins didáticos, a comparação anteriormente pincelada com
Carolina de Jesus, veremos que entre ambos há uma diferença significativa: a
produção de Floreal se encontra no interior de uma época, seus últimos momentos,
marcada pelos paradigmas da consciência amena do atraso. Já Carolina, por sua
vez, é expressão da consciência catastrófica do subdesenvolvimento. Em
comparação ao segundo, o primeiro tempo é muito mais ideológico. Se, para
Candido, a consciência-limite nele, Manoel Bonfim, armou um panorama e tanto para
a compreensão da maneira geopolítica pela qual somos dominados e morreu na
praia da ilusão ilustrada, que dizer do pobre Floreal que tinha fome de
transcendência?
Nesse sentido, sem tirarmos do
caminho a esfera das debilidades íntimas ao perfil do seu discernimento do
nosso escritor, vemos no quixotismo dele uma bússola rumo aos limites
ideológicos de seu tempo. Talvez, a quem se interessar por explorar esses
limites, seria interessante cotejar rente ao texto de Floreal como esse sentido
aparece ao lado de personagens como Lima Barreto, João do Rio ou, como fez
Rafael Rodrigo Ferreira numa aproximação para outros fins em tese recente
(aliás, falamos em um pesquisador pioneiro no assunto, pois escreveu a primeira
dissertação dedicada exclusivamente a Floreal), com paulistas como José Agudo.
De qualquer modo, sabemos que o
estilo ornamental de Floreal não poderia estar mais distante do encontro ao
social que, por exemplo, o romance de 1930 prefigura. Ao mesmo tempo, se a sua
forma aponta ao passado, a sua presença de indiscutível importância social
aponta ao futuro (inversão que, de outra maneira, rendeu muito assunto à
tradição militante brasileira a partir da década de oitenta). Sendo assim, não
em vanguarda, mas de trás para frente, o nosso escritor indigente prova que a
ousadia dos seus passos rompia com alguma coisa. Ainda que, por outro lado, os
seus tropeços se esbarrassem nas dificuldades mais preementes que não quis
pegar pelos chifres. Isto não quer dizer que não tenha se divertido com tudo
isso. Afinal, não fez outra coisa senão virar de ponta-cabeça com as palavras
tudo aquilo que os seus olhos tocavam. Daí, por exemplo, o elogio ao cinismo, à
ironia e à calúnia que fez em Attitudes (1922), no texto, ou então, na
vida, todas as montanhas que moveu com a força do seu gogó, uma artilharia encantada
e bem carregada de ornamentos e paradoxos. Por tudo isso, em que pesem as suas
limitações evidentes, acreditamos que os passos e tropeços de Floreal merecem
ser observados com algum zelo na medida em que tais minúcias possam comunicar à
nossa procissão de fraturas expostas através da literatura. Floreal, como
figura menor porém excepcional das nossas letras, carregou nos seus bolsos
vazios os nossos impasses de formação e desconstrução muito cedo. Ou, como diz o
próprio num de seus trocadilhos, “quando uma ilusão fenece é que aprendemos a
ter ilusões”.
Notas:
Para o escritor, este adjetivo — “burguês!” —, distribuído a torto e a direito, servia para acusar tudo aquilo que fosse capaz de engrossar a sensibilidade, mas confessava, por outro lado, a sua sensibilidade engrossada. Se, olhando uma vez, o cacoete fica com jeito ingênuo de categoria mal posta, olhando pela segunda, e valorizando a licença poética como categoria nativa, o uso ganha um encaixe interessante quando tomado junto a uma série de fatores: a vivência de classe do escritor, sua aversão boêmia ao trabalho numa sociedade pós-escravocrata, a percepção de diferenças de formação condensadas, um dandismo art nouveau, o desejo de independência marginal e, bem, um modo que arrumou de colocar o dedo na ferida. Falava de classes, enfim, espremido por elas — tema abordado em sua literatura com mais frequência pelo viés moral, no afã dos escândalos, do que propriamente pela clareza das situações. Nisso, ficava como um quixote, sim, mas expressivo, numa condição que dá o que pensar. Se quisermos explorar esse sentido, Francisco Pati nos recorda de tais paradoxos de intelectual em “O ofício de escritor”, crônica de jornal escrita em 1951:
1 A quem por acaso se interessar,
“Mostrar, esconder: os enigmas no impressionismo vibrante de Sylvio Floreal”
(2022) pode ser acessado aqui.
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