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Rafael. Averróis, detalhe de A Escola de Atenas. |
Não sei onde li, mas a linguagem é erro. A literatura, no
ínterim, transfere esse erro para a ponta de um determinado discurso. Ela
consiste em dizer, não falar, montar, deslocar, não transmitir. É o que se
apresenta como discurso total. No ângulo pretendido ou sugerido por ela (a
estrangeira nas palavras de Foucault), há a passagem da letra ao literário. Mas
onde exatamente? Como é possível a determinação ou, melhor, a exclusão? O que
faz as palavras
tragédia e
comédia serem o que são e
representarem do jeito que são representadas? Certamente, na interpretação de
Borges da vida — vida mais que obra, mas vida também como obra — de Averróis,
ele se condicionou a investigar a barreira entre a
res e a
res ficta.
Barreira que significa, é evidente, o percurso instrumental da natureza e da
cultura (se há uma separação), que preconiza os sentidos, as intuições e as
inferências. Averróis mesmo teve várias traduções: Benraist, Avenryz,
Aben-Rassad, Filius Rosadis… todos alinhados? É provável que não se pensarmos
nas arbitrariedades. Mas também é provável que sim se alongarmos um pouco e
tentássemos traduzir a homogeneidade do programa da língua. A língua — não a
moldada pela técnica e ciência — é o núcleo do conto que integra o
Aleph.
A língua pura, aquela que, retirada sua roupagem cotidiana, sobraria, na nossa
frente, apenas na pureza. E ela é residual, palpável na maioria das vezes,
obstinada a nomear. É pré-significante, é metafísica. Ela sente vontade de
nome.
Ao redor do conto, a maioria dos leitores indicaria a
supressão das outras vozes. O texto aponta, já no título, a centralidade do
filósofo andaluz no corpo. Mas é realmente sobre ele? Com certeza. Não impede,
no entanto, que Averróis se desligue e se mova a outros. Eu diria até que a sua
figura se molda pela expansão de outros lugares, como no caso do diálogo que
sustenta o enredo do
tradutor não saber traduzir. Mais abaixo explico.
Ponte: eis o termo correto para retratar a atitude de
Borges. A ponte consegue, por certas razões, vincular opostos. A língua é
vinculante no
espaço, mas o espaço não pode existir positivamente.
Arrisco a citar que ele necessita sempre de um
feedback externo. É o
enigma a ser descoberto (ou não). Derrida dizia que somente a
ausência revela
o fato, o valor literário. Esse momento é aparentemente hegeliano, mas esconde
outra arqueologia. O produto final declara a horizontalização de pontos, não a
verticalidade dialética da
Aufhebung. Os pontos, traçados numa
metafísica do ausente, suspendem a literatura, de modo que seja obliterado o
seu senso de totalidade.
O universal é neutralizado. Qual o resultado? A complicação
debanda. Todo e qualquer motivo para
preencher o signo é inútil.
Lembremos: a linguagem e a literatura, língua feita arte, são
hiantes.
Por serem assim, precisam da constância do
nada, isto é, elogiam o vazio
entre a intenção e o gesto. As formalidades são úteis no que concerne ao
aparecimento (
exempli gratia: as figuras retóricas), garantindo o
desempenho quantitativo. Sim, a figura possibilita o ato contínuo e o manejo da
produção sistêmica de um caos. Mas cita Derrida em
Força e significação:
“Não opomos aqui, num simples movimento de balanço, de
equilíbrio ou de destruição, a duração e o espaço, a qualidade e a quantidade,
a força e a forma, a profundidade do sentido ou do valor e a superfície das
figuras. [...] Esta economia não seria uma energética da força pura e informe.”
A citação nos proporciona manter moderado posicionamento. Em
relação ao conto
A busca de Averróis, é já no começo do conto que há
acúmulos demonstrativos. Borges fala do distanciamento temporal de mais de dez
séculos no que traduz e no que é traduzido. A investigação corresponderia,
assim, a delimitar a
festa da tradução. Traduzir Aristóteles, mesmo não
tendo contato com as aptidões poético-filosóficas atenienses, ainda salvaguarda
a abertura pela
duração.
Custa responsabilizarmos a geometria e o pré-formismo? Como
dizíamos, a culpa da querela está em centralizar o contexto da estrutura em
dispositivos geradores de díades, o que indica a não simultaneidade que existe
nas virtualidades. Quando Borges, por exemplo, lá no meio do conto, identifica
a ironia de Abulcásim que visualiza a representação teatral no Cantão, estranha
à cultura árabe, dá o mote para a significação e a capacidade de
interpretar
fica ampliada. De modo que a letra se esparsa, ela vira valor. A duração é a
vacina para qual a mudança se projeta. E aí todas as nuances, de autoria à
leitura, são codificadas pela errância. Para falarmos dentro da restrição do
jargão filosófico, a errância é o modo pelo qual o ser-aí [heideggeriano] ganha
corpo. Nas letras, o seu cozimento é espontâneo na mobilidade. O fim que se
presta, então, é obter a sua verdade enquanto
ad infinitum.
“Singular benefício da poesia; palavras escritas por um rei
que desejava o Oriente serviram a mim, desterrado na África, para minha
nostalgia da Espanha”, diz Averróis com Borges. No autor argentino, a poesia –
aqui entendida como prosaica também — remete à expansão textual. O que é
bastante provável no empreendimento da antiga retórica, aquela que produziu
Dante e Cervantes, é que ela já tinha dito que as artes do
quadrivium —
o incluído modelo matemático — e o
trivium — o transporte da linguagem —
são aparelhadas. Em outros termos, nós sabemos que a literatura transfere, a
seu bel-prazer, a unidade da medida e da proporção, do número e da conta. A
única diferença talvez esteja no fato da modernidade estar diante dessa
consciência perturbadora. Não é à toa, partindo do pressuposto que dissemos,
que as artes tenham avançado tal qual a ciência ia evoluindo. No meio de
Flores
do mal e
Evolução das espécies, há poucos anos de
gap.
Onde quero pousar? Na narrativa contística borgiana, pelo
menos nas que os temas são elaborados em tempos assíncronos, a demarcação não
existe (mesma coisa que dizer
se dilata). Quando Averróis procura, nós
também procuramos. Possível que, pela extensão, a demanda da ficção seja
interpretada radicalmente. A ficção dá o retorno na sua própria órbita: Borges
sabe que a tensão entre o real e a literatura é divergida, mas tenta ao máximo
dar giros. Os giros são espiralados. O contato, se chega, é pela via da
dessemelhança. A busca de Averróis coincide com sua derrota. Citemos um trecho
que pode problematizar mais a condução do texto:
“Com menos eloquência — disse Averróis —, mas com argumentos
congêneres, defendi algumas vezes a proposição que Abdalmálik sustenta. Em
Alexandria, tem-se dito que só é incapaz de uma culpa quem já a cometeu e já se
arrependeu; para se estar livre de um erro, acrescentemos, convém havê-lo praticado.”
Nós podemos tirar daí a operância que o erro trafega. O erro
não põe os erros, assim no plural, como evidências últimas. Errar é produzir. A
essência do erro encontra a essência da verdade.
“Averróis, depois, falou dos primeiros poetas, daqueles que
no Tempo da Ignorância, antes do Islã, já disseram todas as coisas, na infinita
linguagem dos desertos. Alarmado, não sem razão, pelas futilidades de
Ibn-Sharaf, disse que nos antigos e no Quran estava cifrada toda poesia e
condenou por analfabeta e por vã a ambição de inovar. Os demais o escutaram com
prazer, pois ele defendia o antigo.”
A intenção de Borges é tirar a certeza obtusa do horizonte e
construir uma abertura que dê vazão a um senso com o mínimo de materiais
dispostos. Aliás, como ele próprio fala no fim do conto, o Averróis apreendido
pela escrita não é o Averróis consumado pela historicidade. Não há outro
pensamento a ser seguido que não seja o de corroborar para uma ideia
tautológica. A balança pende à autorreferência, ao consumo inevitavelmente
fincado à esfera do referente, próximo da figura mítica do oroboro. Blanchot citou
uma vez que Borges está nutrido por excesso de franqueza (os nomes dos seus
livros:
Ficções,
Artifícios,
Labirintos). É precisamente o
que advém ao conto sobre Averróis. A tutela da linguagem responde com o seu
adentrar diante da essência. No caso, a literatura é trapaceira. Ela não afirma
a não ser a si mesma.
Na Buenos Aires de 1951, o escritor argentino encontra o
mesmo princípio que foi plantado na história das cenas da Espanha islâmica.
Borges falará que o
“
Alcorão (também chamado O Livro,
Al Kitab)
não é mera obra de Deus, como a alma dos homens ou o universo; é um dos
atributos de Deus, como Sua eternidade ou Sua ira.”
Em resumo, o prisma do nome de Deus, na façanha muçulmana
(principalmente o dogma sunita que Averróis seguia), diz sobre os adjetivos
divinos colocados de maneira eterna.
Afirmando, nomeando o Livro, não há
outra saída: afirmação que se nega. E como? Se o Livro, totalmente erguido pela
sombra de Alá e decodificado pela hierarquia angélica, nos prescreve, o escape
é o número do infinito. A infinitude não é tátil, não possui o caráter de
vacilação empírica. O que é Deus para a literatura senão o indizível, o
inexprimível, o irretocável, o imutável? É aí que a apófase e a catáfase se
encontram. No laço, igual a um raio que surge, nome e número dão as mãos.
Pseudo-Dionísio, o Areopagita relê a imagem de Deus ao mesmo tempo velha e
jovem. Não é querendo aproximar o aristotélico racionalista Averróis ao
neoplatonismo cristão — Borges o fez por mim! —, mas a raiz fica sendo quase a
mesma se formos pensar
sui generis. A penetração que Averróis faz
(produzindo em cima da filosofia peripatética) é o que fazem os neoplatônicos
com Platão e os primeiros cristãos com as
Escrituras.
“Algo lhe revelara o sentido das duas palavras obscuras. Com
firme e cuidadosa caligrafia juntou estas linhas ao manuscrito: ‘
Aristu (Aristóteles)
denomina tragédia os panegíricos e comédias as sátiras e os anátemas.
Admiráveis tragédias e comédias são abundantes nas páginas do Corão e nos ‘mualacas’
do santuário.’”
Donde sai a perseverança do signo de se esconder na
caridade. Averróis não conhece o pântano da cultura; carrega o aspecto crucial
da língua, que é traduzir. A tradução possui um nome diferente:
estrangeiridade. Julia Kristeva denomina a
caritas, a presença de estar
no outro em virtude do nosso desaparecimento, na esteira da doação sem dívida.
A caridade se deixa estar em seu ambiente interno nesse apagamento da unidade.
A caridade do sentido, mesmo una no fim, é alteridade. Segundo o linguista persa
do século XI Jurjani, há duas espécies de tropos: a intelectiva, que é bem
determinada, e a imaginativa, que corresponde hoje ao que se refere ao âmbito
diaforético. Coincidência ou não, a noção de
imaginação de Kant cabe em
qualquer produto pós-romântico do qual Borges é solidário. É na clausura da
retórica persa e na
arte por excelência iluminista que precisaríamos
decidir o caso.
Acho que o
topos oupanion (última localização) deve
ser relido no suplemento da escrita. Para que ele seja conduzido à realidade de
fato, necessitaríamos de sua fragmentação. A verdade, na letra enquanto
estrangeira e igualmente divina, supõe o incidente e o acidente. Mesmo essencial,
a literatura suportaria no núcleo agências contingentes. Meillassoux, em
Após
a finitude, monta o argumento:
“Sabemos que os termos “azar” (do árabe:
az-zahr) e
“aleatório” (do latim:
alea) se referem a etimologias vizinhas: “dado”,
“lance de dados”, “jogo de dados”. Essas noções convocam então os temas
inseparavelmente ligados, e não opostos, do jogo e do cálculo — do cálculo de
chances inerente a todo jogo de dados.”
Não é tão visível assim, mas a concatenação da surata 13, na
explicação sobre a Mãe do Livro, corresponde à antinomia simulacro/ideia. Deus,
o necessário, é a contraposição ao adiamento do mundo. Em termos hermenêuticos,
a naturalidade da ordem constitui o acaso da interpretação. A volatilidade é o
recurso disponível a esse movimento. Nós rimos porque sabemos que ela consegue
propor a instituição e a profanação, alinhando o espectro a postergar sua
origem. A revolta contra o Nome do Pai não é inflamada e incentivada por
Borges. Daí pensamos o seu respeito pelas várias figuras da história que
passaram antes dele. É um verdadeiro garimpador, um arqueólogo do pensamento.
Até dos pequenos fantasmas que só existem na literatura, como o
seu Averróis.
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