Por Afonso Jr
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Ana Rüsche. Foto: Arquivo pessoal da escritora (Reprodução) |
Cheguei bem cedo ao lançamento para comprar o livro sem
fila. Ana Rüsche, a autora, a quem eu já havia entrevistado antes, nos recebe com um
sorriso e diz: “Deixa eu assinar agora, porque depois...” Eu faço uma piada
meio descabida: “E se um milhão de pessoas aparecem?” (em minha defesa lembro
que se noticiou que a queda no número de leitores foi de mais de 11 milhões de
pessoas desde 2015). Ela estava certa. Quando deixei a livraria, a fila saía pela
porta...
Existe um motivo. (Meu eu crítico vai fingir que não me
sinto próximo da autora por uma espécie de sintonia telepática, e que não a
considero uma referência na investigação da vida, ou essa crônica seria apenas
um grande néctar de bajulação de vizinhos de geração).
No debate do lançamento, ouvi dos palestrantes que seria um
livro em que aparece o tema do HIV nos anos 1980, em que a autora homenageia o
crítico e dramaturgo Alberto Guzik (por acaso, na revista que leva seu nome,
uma peça minha, “O Clube”, foi publicada, quando estudei dramaturgia na praça
Roosevelt em 2013). Imaginei um relato realista, um panorama de época, e parte
de mim engoliu seco pensando: vamos nessa, apesar de saber que a autora
pesquisa literatura insólita e é autoridade nos universos estranhos, entre a ficção
especulativa e as bio-letras.
“
Que deprê começar 1985 assim!”. Cacá é um poeta e
advogado com uma tosse que só piora; seu companheiro Félix, decide ir com ele chutar
areia em uma casa nessa fronteira entre mar e montanha, entre Rio e São Paulo; Mark
é um alemão trabalhando num banco no Brasil que espera a eleição indireta de
Tancredo; no “futuro” presente, duas irmãs muito diferentes (a jornalista Maria
Inês, pesquisadora e grávida, e Maria Gilda, que vive na praça Roosevelt e come
terra). Como fungos, poemas crescem depois da morte.
Mas coisas estranhas pairam por aí: uma epígrafe no começo
do livro com um texto acadêmico apenas com
Op. Cit. e sem o ano; uma
mulher desgrenhada que olha o horizonte — “Será que ela via algo cintilar no
mar?” (é o cuidado da poeta Ana com as palavras); a falta de água, o “sonhar
alguém”, a “matéria prateada”.
Claro, é só uma história. E, no mundo concreto do especulativo,
no “jogo puro” do sonhar outros como nós, o surpreender da trama não deixa de
vibrar perguntas sobre o sistema-vida. Logo lembro-me de uma expressão de
Sêneca nas cartas sobre “versos úteis” (esse Sêneca que escreve sobre a
clemência num mundo que decidiu entregar a sua vida a tiranos). Quem entre nós
pensaria que há algo de útil no belo depois de um século de modernismo?
Já é distopia: chove agrotóxicos e a privatização nos
presenteou com 86 piscinas de esgoto sem tratamento no rio Tietê. Um presidente
que é um terrorista climático e elimina leis ambientais. Guerra fria, guerra
jurídica, guerra comercial. Vemos o colapso das instituições multilaterais, ataque
comercial neocolonial, a religião usada para ocupação de terras, a polícia sem
controle que vira máfia com negócios como extorsão, monopólio de serviços
essenciais, grilagem de terras... Um grupo armado disposto a colonizar a cidade
expulsando a favela para o mercado imobiliário, acabar com a reforma agrária concentrando
poder. E, com tsunami de mentiras de massa, milhões de tiozões do zap querem o “fim
da ditadura Lula”. Quem diria que o medo de perder o emprego para imigrantes e
de pessoas trans no banheiro seria a forma dos produtores de ditaduras acabarem
com a democracia (e a Revolução Francesa)? Nosso paradoxo é que aqueles que
ainda compram livros (não para decorar a casa) já sabem tudo isso: e agora?

Sem perder a regra da narrativa, a mudança, esse texto é um
animal desconhecido, e levanta boas questões, e vitais. Por exemplo, o que
significam livro e ficção no mundo de Nero? Quando o panfleto é insuportável e
o coletivo é o que desperta? O estranho pode ser uma isca para nosso pensar que
se alimenta de verdade? O que os que ainda pensam podem fazer além de desistir?
Se todo o mundo vivo flui em conjunto, onde fica nossa
ilusão de poder? A volta ao tempo da morte, ao transitar desde a ditadura; percebemos
que estamos frente à questão de uma geração: que política ou ação sobrou depois
que um Congresso eleito decide retirar uma presidenta eleita? Foram dez anos
que foram do juiz político a 700 mil mortes (“Você tem acompanhado o lance do
vírus, Nenê?”).
Ou, para falar de outro modo, o que a literatura, sem deixar
de ser o que é, responde às questões “o que fazer?” e os ramos da mesma árvore
como “quem somos e onde estamos”?
Uma pergunta tão antiga quanto o século XVIII de Friedrich
Schiller, em que o poeta, dependendo de duques na Alemanha do Sacro Império
Romano-Germânico, nascido entre a Casa de Bourbon e a Casa de
Habsburgo, decide que a estética é um mundo em si mesmo, enquanto os franceses
cortavam cabeças de nobres despóticos. Demorou um tempo até que Thomas
Mann colocasse essa semente na terra quando o Partido Nazista fez 18% dos
votos no Parlamento. Logo, a ditadura veio pelo Congresso com uma maioria do Partido
Nazista, se governou a República entre 1930 e 1933 por meio de decreto de
exceção e Hitler virou chanceler pela sua popularidade devido à crise econômica.
(No livro também um pouco de Alemanha se infiltra num provável debate com suas
raízes).
Como fungos, cresce em mim o livro. É hora de Merlin
Sheldrake. Uma alegria se espalha como um fluxo de carbono na Wood
Wide Web; inspiro o sol e fotossinto a capacidade regenerativa do mundo.
O político analítico é o passado, mudar as palavras de lugar é política do
futuro. É preciso ter um bicho dentro da casca.
Enquanto leio no parque, um homem pobre delira apocalipse
pela calçada; no celular, um advogado envia memes delirantes. A mentira de
massa contamina como bolor — ninguém mais dá conta da complexidade do mundo, nosso
ganha-pão colapsa o tempo e alguma coisa que parece razoável é a brecha para
que a raiva traga uma agenda obscura.
Um ser de antenas rápidas cai no meu livro, caminha com seu
vermelho emoldurando o papel; penso na physis dos antigos filósofos como
conjunto de processos que ocorrem no universo. Quem sabe um dispositivo esperto
como o livro pode gerar a expansão do próprio espaço, pode abrir portas para
outros agoras, como os sonhos. Em casa, vejo na parede um outro ser com asas
verdes; retorno ao parque com meu vidro e, lá, ele voa na minha cara alegremente.
De repente somos devolvidos à ideia de que nem tudo está decidido, a natureza é
mais ampla do que o destino.
Percebo que tudo que conhecemos como cidade e progresso é um
organismo frágil envolto pelo animal-mundo, respirando, decidindo se somos um invasor
tóxico que deve ser combatido.
Essas páginas de Carga viva podem talvez “falar com”
e, dependendo de como cai em cada solo, no poder frágil de um poema, ressoar no
nosso coração de mamíferos e despertar para a respiração ao redor, os processos
irreversíveis de um idealismo capitalista de acumulação infinita; evitar a ideia
supremacista de que só os eleitos viverão no caos do carbono ou, pior, o
desânimo que aperta o f* e vira “rato da noite” na internet. Essa verdade comum
que sai do livro e me acorda para o organismo vivo da Terra diz: “Respire a
sombra/ e a brecha é”.
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Carga viva
Ana Rüsche
Editora Record, 2025
216p.
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