“O diabo fuma” ou o mistério da imagem final

Por Carlos Rodríguez 




Existem filmes que, entre outras coisas, valem a pena simplesmente por sua imagem final; como se fosse som de um clique, a última imagem fecha o ciclo que o filme inicia. Não é uma imagem didática que explica a história, mas sim uma que a contém. Penso, por exemplo, no final de Longa jornada noite adentro (2018), de Bi Gan, onde um sinalizador, uma vez aceso, continua queimando — uma imagem do tempo relativo, da quietude, uma exploração da extensão da realidade para a fantasia do diretor chinês.

A imagem final O diabo fuma (e guarda as bitucas todas na mesma caixa) (México, 2025) também contém o que o diretor Ernesto Martínez Bucio mostrou na hora e meia de filme, que acompanha cinco irmãos entre sete e quatorze anos, confinados em casa.

Para chegar à imagem final, que também serve como coda fantástica para o diabólico título do filme — vencedor do prêmio de Melhor Primeiro Filme na seção Perspectivas do Festival de Berlim de 2025 — o diretor desenvolve uma abordagem visual na qual as imagens não apenas ilustram, mas participam da ambiguidade misteriosa e deliberada da história. Influenciadas pela avó esquizofrênica, as crianças vivem a desolação do inexplicável abandono dos pais. Parece que, antes mesmo do início do filme, a mãe, que trabalha como enfermeira, já deixou a dinâmica familiar; o pai, por sua vez, logo fará o mesmo para ir à procura dela. Seus motivos são desconhecidos.

Sem os pais, o lar familiar não se torna um cenário bizarro como nos filmes de Hollywood; ou seja, não há liberdades incomuns, brincadeiras extravagantes ou rotinas dispersas. No filme de Martínez Bucio, a casa se torna uma espécie de fortaleza que protege seus habitantes dos perigos silenciosos do mundo exterior, segundo a desconfiada avó, em um espaço que tanto contém quanto restringe sua existência.

Em seu isolamento, há ecos de O castelo da pureza (1973), de Ripstein, e até mesmo de sua versão contemporânea, Canino (2009), de Yorgos Lanthimos. No entanto, O diabo fuma se distingue destes pela nitidez e foco de suas imagens, que revelam um mundo fechado em si mesmo, um espaço estagnado onde as fronteiras tentam restringir o fluxo do tempo e do movimento. Como um desejo ou uma promessa lançada ao vento, uma das meninas desmonta as divisórias de uma parede e arranca um de seus dentes.

A profundidade de campo das imagens de Martínez Bucio e do diretor de fotografia Odei Zabaleta é muito rasa. Ao observar os personagens e acompanhar seus movimentos pela casa, o olhar do espectador é restringido porque consegue enxergar além, não consegue observar claramente o que está nas laterais ou atrás da figura em primeiro plano; apenas intuem o fundo. Os planos também são muito fechados, com zooms nos rostos das crianças e da avó. O trabalho de câmera dispensa explicações na narrativa; as cenas praticamente se contêm mutuamente. Os irmãos, que, por ordem da avó, cobrem as janelas com papel e barricam as portas, estão presos; não há distância, não há horizonte.

A sutil sensação de sufocamento do filme, com sua profusão de cores claras, funciona bem graças a essa sutileza ambivalente e indeterminada, que inclusive leva a uma pequena reflexão sobre a classificação do filme — seria um drama, um filme com elementos de terror, um suspense psicológico? — e também alude a uma época específica: a década de 1990. 

Apenas alguns detalhes, como as roupas (calças de moletom e camisetas, suéteres em combinações excêntricas) e a presença da televisão, indicam a recriação de um momento específico do México, quando a infância era estruturada em torno do entretenimento, em frente à televisão, com seu ruído de fundo como companhia. Tanto os programas de televisão quanto a publicidade e a propaganda exerciam uma influência notável e involuntária sobre aqueles que os consumiam, especialmente as crianças. A televisão era uma verdadeira influência na educação.

Em O diabo fuma, João Paulo II aparece na tela da televisão da sala de estar. O Papa visitou o México três vezes naquela década; as crianças imitavam seus gestos e palavras, proferidas em um espanhol lânguido. Uma das meninas do filme diz que, quando crescer, quer ser Papa, não professora. Para muitos, é uma forte lembrança ouvir novamente as campanhas do Ministério da Saúde contra a cólera em 1993, e até mesmo uma palavra-chave do governo Salinas que vagueia pela trama, “solidariedade”. Tudo isso serve a Martínez Bucio como um macguffin para fazer a história avançar e permitir a visita de algumas enfermeiras que, momentaneamente, quebram as barreiras do confinamento.

Esse clima de suspeita e incerteza, de medo social de doenças e outras ameaças fabricadas — alguém se lembra do Chupacabra? — e da chegada das mudanças que caracterizaram os anos noventa, é favorável à proposta de O diabo fuma, que captura o medo maiúsculo de qualquer criança, as terríveis fantasias infantis de abandono, como as de João e Maria, Cinderela e outros personagens de contos de fadas antigos, à mercê dos caprichos da caridade ou das garras do infortúnio.

Do ponto de vista de uma criança, em O diabo fuma, não há explicações ou sequer indícios que justifiquem a ausência dos pais, talvez apenas uma vaga instrução deixada pelo pai para o filho mais velho, que, naturalmente, quer ir com ele. “É a sua vez”, diz o pai indiretamente ao filho, que acredita entender que seu dever é cuidar da casa, dos irmãos e da avó, que está convencida das visitas noturnas do diabo.

Escrito em colaboração com Karen Plata, o roteiro do filme oferece diversas pistas sobre quem está narrando a história, que é intercalada com gravações da mãe ausente. Em seus filmes caseiros, a mãe filmava seus filhos e cantava com eles os antigos sucessos de Massiel, escritos por Napoleón, que também encapsulam a história: “Você é o que eu mais amo por quem você é / você é meu leme, minha vela, meu barco, meu mar, meu remo / você é o retorno que eu desejo cada vez mais / isso e mais, essas coisas que compartilhamos como um segredo / para que possamos dar um ao outro o que temos sem medo.”¹

Menos misteriosa do que a pessoa que cria a árvore genealógica com fotografias recortadas e desenhos, que tem o diabo como chefe de cada geração, é quem manipula e rebobina as fitas e gravações, feitas com uma estética semelhante à de Eterna adolescente (2024), outra obra sobre uma família que olha para o passado recente. No filme de Martínez Bucio, que também ganhou o prêmio de Melhor Roteiro de Longa-metragem no recente Festival de Cinema de Morelia, o passado retorna ao espectador como uma evocação familiar, conhecida e, ao mesmo tempo, misteriosa, reservada e enigmática, como uma oração à luz de velas. Uma imagem final, não revelada aqui, que não esclarece o mistério, mas o mantém cativo.


Notas da tradução
1 Versão livre de “eres por tu forma de ser lo que más quiero / eres mi timón, mi vela, mi barca, mi mar, mi remo / eres el regreso que cada vez más y más deseo / eso y más, esas cosas que compartimos como un secreto / para andar entregándonos sin temores lo que tenemos”. 

* Este texto é a tradução livre de “El diablo fuma, o el misterio de la imagen final”, publicado aqui, em Letras Libres.

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