Escritos póstumos

Por Juliano Pedro Siqueira


Carl Spitzweg. O poeta pobre, 1839.


Parece existir certo augúrio contra as mentes geniais e aqueles que denotam grandes habilidades culturais, criaturas que se destacaram notavelmente, deixando suas contribuições no tempo em que existiram. O esforço despendido por um homem para chegar ao cume da montanha pode significar somente o prelúdio da sua inevitável queda. Assim costuma ser a relação do artista com a arte. Após terminada a obra, ao invés do esperado acolhimento do público, logo lhe sobrevém terríveis frustrações. O mundo costuma conspirar contra os espíritos excepcionais, que mesmo depois de sangrarem até a última gota para legarem a humanidade seus trunfos, são condenados ao ostracismo, senão, à maldição. Quantos talentos foram sentenciados à morte mesmo antes de descerem à sepultura? Muitos foram os prodígios que saborearam o fel da rejeição, sendo esmagados por não se enquadrarem em determinados padrões morais ou movimentos intelectuais. O crivo social do mérito é geralmente injusto; por vezes, norteado pela simpatia, favorecimentos e bajulações, raramente se fundamenta pela excelência. Além de não existir garantia da felicidade, a vida não costuma ser generosa aos astutos de espírito, ao reivindicarem o reconhecimento perante o mundo, quando está em jogo a própria genialidade.
 
Por mais talentoso que seja um homem e se esforce diante do seu trabalho dedicando-se exclusivamente o tempo, os recursos e a esperança do sucesso , é muito provável que tal força despendida não resulte em reconhecimento. Somente alguns escassos talentos após se abdicarem dos prazeres desta vida em prol da vocação artística, intelectual ou científica , gozaram, ainda em vida, da ínfima fama. Normalmente, na sua esmagadora maioria, não passam de vultos errantes sobre a terra, sobrevindo-lhes, somente postumamente, algum tipo de tributo ou honrarias. Muitos autores não contemplaram o sucesso do próprio trabalho. Ficaram de fora da terra prometida, mesmo depois de terem devotado suas vidas ao sacerdócio da reflexão, da arte e da escrita. Homens movidos e tocados por uma paixão que transcendem as honras, as premiações e os aplausos. Não foram poucos dentre eles que se furtaram dos holofotes da fama, optando pela reclusão e fazendo do silêncio fonte de criação.
 
A história da filosofia e a da literatura consagrou pensadores, romancistas, poetas e contistas. O mundo um dia já fora aristotélico, cuja verdade e sabedoria limitava-se à sua cosmovisão. Assim como os franceses foram um dia balzaquianos; os alemães, goethianos e os brasileiros, machadianos. Tendências que influenciaram pensamento, sistemas filosóficos e movimentos intelectuais, determinando toda uma perspectiva da verdade a partir dessas referências epistemológicas. Mas, a mesma fonte do conhecimento que um dia elegeu Hegel como arauto da dialética moderna e Dickens como o mais prolífico e famoso romancista da Era Vitoriana, foi a que renegou e amaldiçoou tantos outros, mantendo-os à margem da tradição dos panteões da intelectualidade.
 
A filosofia, que durante séculos não fora possível ser pensada fora de sistemas rigorosamente acadêmicos sob a égide de intelectuais cingidos por uma casta intocável , ditava o que era ou não válido como obra filosófica. Até que um dia esbarraram em mentes que nadavam contra as correntezas de modelos preestabelecidos, renegando justamente as tradições vigentes. Não seria possível, por exemplo, preferir o pensamento antirracionalista de Schopenhauer, quando Hegel era a vitrine das cátedras alemãs; de reverenciar o martelo devastador de Nietzsche que sequer escrevia com o rigor do alemão gótico , contrariando toda uma geração habituada à densidade do pensamento kantiano; ou ainda, encaixar a rigidez do racionalismo de um judeu, que se atreveu a negar os milagres e a existência transcendental de Deus, como o fez, Baruch de Espinosa.
 
Seria possível aos críticos literários, na época de Kafka, acolherem com grande ardor seu estilo literário de narrar, ao ponto de indicá-lo ao Nobel de Literatura? E quem se lembraria ainda de Lima Barreto, o escritor boêmio, que por conta do seu desajuste social e das ácidas críticas tecidas contra a casta elitizada de sua controversa república, cujas obras foram submetidas à fúria dos moralistas que tentaram ocultá-la por anos, depreciando seu talento literário? Paradoxo oriundo de um mesmo mundo, que ora lança luz e mérito a determinados nomes, imortalizando-os; ora mantém tantos outros sob o silêncio e as densas trevas do esquecimento. Ofuscando-lhes o brilho do talento, a genialidade, amaldiçoando, propositadamente, como loucura e lepra. Não faltam exemplos de homens e mulheres cujos talentos caíram em desgraça por conta da implacável rejeição crítica, por suas vidas conturbadas e polêmicas ou simplesmente por discordarem das verdades impostas. Os nomes que seguirão, experimentaram em vida essas mesmas trevas, ostracismo e marginalização por desafiarem padrões, sistemas e convenções. Homens que estavam além dos seus tempos, rompendo impetuosamente contra verdades erigidas em nome de ideias questionáveis. Derrubaram ídolos e submeteram aos ditames da razão, crenças até então, inquestionáveis.
 
O anátema Baruch, Benedicto ou, simplesmente, Bento de Espinosa, até hoje, não encabeça o nome dos mais conhecidos filósofos do Período Moderno. Mas suas ideais reverberaram numa potência inimaginável e despertaram interesse póstumo entre acadêmicos e leitores. Para quem um dia fora (juntamente com sua obra) amaldiçoado pela cólera de uma comunidade judaica que classificou seus pensamentos como blasfemos, esconjurando-o permanentemente das sinagogas , foi quase um “milagre” suas obras terem chegado integralmente em nossas mãos. Seu mundo era o século XVII, que apesar da ruptura com o medievalismo, carregava ainda, no seio europeu, resquícios de uma religiosidade fervorosa e radical. Espinosa era filho de uma época em que as novidades científicas e os debates sobre elas, predominavam nos ciclos intelectuais. Era o mundo iluminado pelo cogito de Descartes, a “teoria do melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, o Leviatã de Hobbes e a “tábula rasa de Locke.” Racionalismo e empirismo eram dois senhores que disputavam a maestria da verdade, visando esclarecer como se dava o conhecimento humano.
 
Dentro dessa celeuma intelectual, Espinosa, um fiel racionalista, deparou-se com questões espinhosas, como a existência de Deus. E ao contrário do que esperavam seus conterrâneos religiosos e demais pensadores, o filósofo lançou-se em um projeto audacioso, criando um complexo sistema ético, cujos pensamentos alçaram voos longínquos. Influenciado pela matemática, Espinosa teceu, com sua pena afiada, axiomas que defendiam um Deus impessoal e imanente, e uma vida sem apego às crenças ou superstições, fundamentando-se puramente na razão. Esse anátema talvez não imaginasse as consequências que estariam por atingi-lo  simplesmente declarou guerra contra toda uma tradição milenar, do modo em que a filosofia clássica encarava o tema Deus. O choque entre os intelectuais foi imediato, causando espanto e grande alvoroço entre eles, tendo Johannes Bouwmeester, aconselhado seu amigo mais próximo a desistir de prosseguir com tais posicionamentos.
 
Dedicado e convicto das próprias reflexões, Espinosa procurava sempre distância das regiões agitadas, destinando suas estadias a isolar-se em áreas silenciosas, que contribuíssem para seu trabalho, que era intenso. Revezando com o ofício como polidor de lentes, ele escrevia sistematicamente, e se debruçava com ávido interesse nas questões ligadas às ciências que Newton um dia abrira às portas, lançando luz ao mundo que estava mergulhado nas trevas teocêntricas. Longe da comunhão judaica, abandonado por muitos que se diziam amigos, sofrendo para defender seus solitários escritos, Espinosa relutava contra tabus que pareciam intransponíveis. Não mais devoto aos rituais que lhe era familiar, não podia mais trair os saberes que tão bem fundamentou, estabelecendo-os, agora, como critério de verdade. O Deus da tradição judaico-cristã, agora era o Deus de Espinosa, termo cunhado postumamente, referenciando a relação impessoal que Deus manifesta, não somente ao homem, mas unificando-o à natureza, sem exclusividade ou devoção espiritual. Pensamento este tão perigoso à época quanto foi a negativa de Galileu perante seus inquisidores, sobre sua magistral teoria geocêntrica.
 
Galileu derrubou as verdades que se sustentavam e adormeciam sob a sombra de Aristóteles; Espinosa arruinou as verdades que o cristianismo sustentava e que pairavam desde sua origem, sob o auspício da teologia paulina. Mesmo diante de seus algozes decretado morto mesmo vivo , Espinosa desenvolveu a filosofia dos afetos, dos sentidos, como pilares de psicologia moderna, e ainda, tratados políticos. Seu vigor intelectual foi assíduo, não recuando nem mesmo diante das ameaças que sua vida e imagem corriam, do silêncio que seus perseguidores queriam chancelar sobre seus escritos. Ainda que a vida lhe fosse breve, cumpriu sua missão honrosamente, fidedignamente a serviço da razão, renunciando à superstição como valor de verdade. 

Sua visão já estava cansada, assim como seus pulmões. Ofegante e bem debilitado, o mestre polidor de lentes continuou com a revisão dos seus escritos, até que num domingo, em 21 de fevereiro, de 1677, aos 44 anos,  enfim, buscaria descanso na morte física, mesmo sob a maldição que seus abutres religiosos lhe lançaram. Sob o escárnio, proibiram e ameaçaram quem fosse pego visitando seu túmulo ou pronunciando seu nome; aconselhado que cuspissem e amaldiçoasse quantas vezes fosse possível o nome Bento de Espinosa. Seu túmulo não encontrou a merecida paz, seu corpo fora dissolvido junto à matéria em forma de Deus e suas ideias ultrapassaram séculos, recebendo, postumamente, seu verdadeiro apogeu, na tradição filosófica.
 
O pensador dinamite O nome de Nietzsche nunca foi tão popular ou citado em livros de autoajuda como presentemente  ato que ele abominaria. Mas nem sempre foi assim! De criação protestante junto às tias e a irmã, Friedrich Nietzsche foi, desde jovem, um talentoso e voraz leitor, destacando-se com brilhantismo em aulas e exames da época, despertando os olhares atentos dos seus tutores. Conhecedor profundo dos escritos gregos e latinos, especializou-se em línguas clássicas e posteriormente, formou-se em filologia. Aos 25 anos já era professor acadêmico, em Basiléia rompendo, neste período, sua relação com o protestantismo , contudo, não conseguiria consolidar sua carreira docente, devido as severas enfermidades.
 
O filósofo optou então por uma vida errante, solitária, mergulhando cada vez mais em suas reflexões. As poucas relações que construiu em vida, logo se romperam: destaque para o compositor alemão, Richard Wagner quem lhe dedicou uma obra refutativa e da única mulher a quem se declarou, a intelectual russa, Lou Andreas-Salomé. Adotando como estilo de escrita o aforismo incomum para a tradição filosófica Nietzsche foi um divisor de águas. Escreveu demasiadamente, mesmo em meio as inúmeras crises que sofria, as quais, na maioria das vezes, o deixava incapacitado de ler e escrever. Mas quando a aurora resolvia iluminar-lhe à vida, ele se lançava aos trabalhos com tamanha avidez de saber. Fruto da sua esmera e apaixonada dedicação ao pensamento que lhe vinha das entranhas, imiscuído em dores e sangue, nasceu obras como a Genealogia da moral, A gaia ciência e Assim falou Zaratustra. Com raras exceções, quase ninguém o leu em vida. Algumas obras, inicialmente, foram rejeitadas, despertando baixo interesse nos ciclos intelectuais. Ele chegou a publicar, por meio dos próprios recursos que já eram escassos , muitos dos seus livros, enviando, por vezes, a um ou dois amigos, que recebiam com certo ceticismo. Nietzsche não foi um solitário somente na forma de viver, mas em relação a sua própria arte de escrever, não restando, quase ninguém, a não ser ele mesmo, que acreditava em seu potencial filosófico.
 
Nietzsche foi um grande crítico e observador da cultura de sua época e com seu martelo impiedoso não poupou duros ataques à política, às artes, à música e, principalmente, à religião. Em sua obra autobiográfica, Ecce Homo (Eis o homem), tomado de certo torpor diante da própria inteligência e da certeza da potencialidade de sua escrita, declara que seu pensamento era uma espécie de dinamite ( não sou um homem, sou uma dinamite.). Tal pretensiosismo, em tom provocativo, significava, ao mesmo tempo, o poder de alcance que o filósofo esperava, um dia, alcançar.
 
Em Para além do bem e do mal, ele constata, num ato intuitivo, que os leitores mais aptos a entender sua filosofia, estariam numa era futura e não em seu tempo. Em outras obras, como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra, o pensador faz uma espécie de apontamento de um tempo em que seu pensamento desabrocharia. Diante dos presságios em relação a sua filosofia, as ideias e conceitos elaborados por Nietzsche, permaneceriam em gestação, prontas para serem lidas e compreendidas, somente em um nascer futuro. Ele era consciente do desprezo dos seus conterrâneos às suas obras; entretanto, mais ciente estava ainda que um dia seus textos e pensamentos seriam revistos e sua filosofia atravessaria séculos. O que não significa que Nietzsche desejasse popularidade, fama ou bajuladores. Definitivamente, não! Desejava, com sua filosofia, revolucionar o pensamento, de modo que as pessoas que o lessem, tivessem uma mudança de consciência diante de verdades que ele havia posto sob suspeita. Refletir, criticamente, a sociedade que estabelece a moral, como tabus intransponíveis. Este era o ideal de homem, ou, para além-homem, que ele tanto vaticinou em suas obras. 
 
Sim! Ele também foi um homem póstumo! Ironicamente, aos 44 anos, como fora com Espinosa, em janeiro de 1889, em Turim, o filósofo errante sofreria um colapso mental, que o desceria à sepultura ainda vivo. Foi-se apagando, definitivamente, sua potência de vida; assim ocorreu o seu apagar das luzes, semelhante ao louco que procurava Deus com a lanterna durante o dia. Onze anos passaria inerte, com o olhar fixado no vazio, absorto no esquecimento das ideias que um dia tanto se apegou; lançado ao ostracismo e recluso na própria penumbra, num sábado, 25 de agosto de 1900, falecia o homem dinamite. Mas suas sementes, ou melhor, suas minas explosivas já tinham sido implantas no mundo do pensamento, de modo que suas ideias explodiriam a mente daqueles que ousassem ter contato com sua perigosa filosofia.
 
A criatura deslocada Se por um lado as biografias de Kafka desmistificam a ideia de um homem totalmente sombrio, taciturno ou até mesmo misantropo como se estivesse sob a influência do pessimismo de um Emil Cioran amigos próximos relatam que ele lia em voz alta suas histórias, dando risadas delas mesmas , por outro, encarnava uma genialidade assombrosa, ao descrever seu mundo ficcional permeado por criaturas deslocadas. O mundo claustrofóbico, descrito por Kafka em suas obras, era fruto de sua fértil imaginação, e que correspondia, de certo modo, aos conflitos internos, familiares e sociais, de seu tempo. Este homem apesar de respirar literatura, não viveu dela. Era seu grande escape e sua voz ao mesmo tempo. Uma espécie de protesto que não reivindicava plateia ou prêmios. Um brado contra o horror da existência, cuja condição de ser estava imbricada aos desígnios incertos do mundo. Sua saúde precária conduziu-o à reclusão melancólica, de modo que Kafka surgia para si, senhor absoluto sobre seu trabalho, gerenciando e perscrutando o submundo cingido pelo absurdo. Em vida, poucos foram os textos publicados, como O veredito, A metamorfose e Na colônia penal que não despertaram paixão ou acolhimento do público; talvez, suas risadas solitárias anteviram uma agonia tragicômica de quem estava prestes a ser esquecido. Vários outros trabalhos, inclusive O processo, ficou inacabado. Juntamente a tantos outros textos, a humanidade póstuma corria o risco de não conhecer seu talento, caso Max Brod, recusasse a atender seu último pedido que parecia mais um devaneio.
 
Não somente o homem Kafka, boa parte da sua arte foi designada à posteridade. O mundo em que viveu não conseguiu diagnosticar a profundidade de sua crítica. Distraídos por outros movimentos literários e rendidos a outros nomes ilustres da literatura de momento, seus leitores ainda estavam em gestação, num futuro breve, quando ele não mais estaria entre eles para rir a todos pulmões, que já lhe faltava. Sua morte configurou um novo patamar à literatura mundial. Seus textos, um tanto quanto enigmáticos, devido ao rigor estético de suas narrativas fantásticas, rendeu o devido lugar entre os maiores escritores do século XX. Suas obras foram lidas, citadas, estudadas. Até um termo específico (kafkiano) foi-lhe justamente atribuído. As obras inacabadas reunidas por seu amigo renderam edições especiais e comemorativas dos seus principais textos, além de colóquios. Sua cidade natal, Praga, ganhou monumentos representando seu realismo fantástico. Em Israel, devido sua descendência judia, está parte do seu acervo, localizada na Biblioteca Nacional em Jerusalém. Aqui no Brasil, Modesto Carone ficou tão fascinado ao lê-lo que resolveu estudar alemão, ler suas obras no original, tornando-se uma referência no autor tcheco, traduzindo toda sua obra. O mesmo Kafka que um dia impressionou o grande crítico Otto Maria Carpeaux, que não soube explicar em palavras, a grandiosidade espiritual de um homem fisicamente apagado, frágil e de voz embargada devido à tuberculose.
 
Não se pode falar, em termos literários, em absurdo e estranheza no mundo, sem se referir a Kafka. Por mais que Camus tenha ganhado o título de existencialista do absurdo, Kafka o fazia de uma forma fantástica, sem perder a reflexão filosófica sutilmente presente em suas críticas, por meio de criaturas bizarras, cenários sombrios, destinos errantes e futuro imprevisíveis; estes são alguns dos elementos que compõem o universo dramático de sua produção literária. E assim se coroou, postumamente, o talento do escritor que descreveu seu mundo, sem se render aos caprichos modelar de movimentos culturais em voga no seu tempo. Justamente por não escrever para ninguém que não fosse ele mesmo, recusou expor todos seus escritos mais íntimos, em especial, cartas ao pai; uma espécie de devocional que tentava expulsar os demônios que o assombrava na figura onipresente do pai. Kafka seguiu sua vida como criatura errante, deslocada no mundo, esperando por algo que não se materializava, de portas que lhes fechavam o acesso a realidades oníricas, arrebatando-lhe a sensação de estranheza numa terra indiferente e pérfida. Precocemente, aos 40 anos, em 3 de junho de 1924, Kafka dera seu último suspiro agônico para ser lançado a posteridade literária.
 
O ébrio literato A literatura nacional também concebeu seus rebentos renegados. De talentos quase lançados ao abismo. Qual a chance de um negro, oriundo da periferia carioca, pobre, alcoólatra e depressivo, prosperar no universo literário, ainda que fosse dotado de um peculiar talento? Apesar dessas condições e remando contra forças que lhe foram opostas, Lima Barreto conseguiu dar vida a Triste fim de Policarpo Quaresma, que custearia a publicação do próprio bolso. Filho da República, o escritor se tornou um incansável delator das contradições políticas, sociais e raciais, que ele mesmo, sofria na carne. Um crítico mordaz aos costumes e tragédias do cotidiano que gradualmente, mas contundentemente , ia moldando seu caráter intangível como escritor. Mesmo dotado de um talento capaz de despertar calorosos elogios de Monteiro Lobato, Lima Barreto foi uma figura impiedosamente silenciada pela imprensa da época, justamente por atacar as farsas da elite dominante e da casta militar. Cada vez mais rendido ao alcoolismo, o escritor peregrinava em hospícios, tentando arrefecer sua compulsão como sua depressão que lhe abatia a alma.
 
Pressentindo o declínio que não tardaria a lhe abater, Lima Barreto escreveu muito, nunca perdendo seu foco em lançar sua crítica militante sob formas de contos, sátiras, panfletos, diários e romances. Sua obra ganharia vida postumamente na figura do divulgador de seu talento e biógrafo Francisco de Assis Barbosa. A vivacidade da escrita de Lima Barreto era uma denúncia visceral dos privilégios que blindavam políticos, militares e toda uma casta da elite brasileira que tentava se ocultar em valores morais altamente suspeitos. Esse desmascaramento social que tanto apostava em seus textos por exemplo, no conto, “O homem que sabia javanês” , rendeu-lhe a indiferença das principais editoras do Brasil, que tentou ofuscar seu talento inquestionável. Não restam dúvidas que os intelectuais da época se sentiram incomodados com a postura extremamente combativa da escrita de Lima Barreto, cometendo grande injustiça contra sua vocação literária. Talento este que viria, ironicamente, tardiamente. Uma posteridade que usaria seus textos como lunetas para analisar o quadro sociopolítico do Brasil; tendo em vista que seus textos são ressonâncias das mesmas mazelas que se agravaram no decurso da história que ainda assola nossa sociedade. Seus textos sintetizam um Brasil fragmentado pelo agigantamento das diferenças sociais, das quais, muitas delas, atreladas as questões de cunho racial. Como se o Brasil de Lima tivesse intrinsecamente no Brasil de hoje. Ou seja, para compreender o fenômeno social brasileiro claro, não somente as obras de Lima far-se-á necessidade de revisitar seus textos. 
 
Diante da persistência para ver seu talento reconhecido como alento à sua miserável existência   tentou, por três vezes (sendo a última desistida por ele mesmo), ingressar na Academia Brasileira de Letras, não tendo êxito em suas investidas. Suas obras abrigaram várias criaturas que, no seu mundo real, eram lançadas na sarjeta, por serem desajustadas socialmente. Personagens marginalizadas, dada aos excessos da vida urbana, era um contrassenso das elites e da família tradicionalmente estigmatizada como modelar. Ele encarnava de certo modo esses desatinados sociais, por não se enquadrar na versão elitizada que reivindicava para si, a guarda da cultural do Brasil. Toda uma espécie de produção artística, principalmente a literatura, precisava ter o veredito da intelectualidade burguesa que dominava os padrões de escrita e publicação. E Lima era sempre o autor contraindicado pelos guardiões do saber.
 
Os dias estavam cada vez mais enegrecidos, a existência parecia lhe esmagar com força brutal e o álcool era sua fonte mais imediata para suportar as desilusões da vida. Bebendo incansavelmente e assombrado por uma depressão que consumia sua interioridade, Lima Barreto se renderia à morte com apenas 41 anos, em 1º de novembro de 1912. Seu pai, tipógrafo e transtornado mentalmente, faleceria dois dias depois. Injustiçado, perseguido, silenciado e ignorado como um vulto insignificante, Lima Barreto e sua obra tiveram um destino póstumo, como tantos outros vitimados na história. Um ébrio que só encontrou equilíbrio momentâneo quando se apoiava nas palavras que lhe emanava luz. Luz que rapidamente era apagada pela penumbra da rejeição.
 
 
Referências
 
BARUCH, Espinosa. A filosofia à maneira dos geômetras. Tradução de Joan Solé. Lisboa: Salvat, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
LEMAIRE, Gérard-Georges. Kafka. Tradução de Júlia da Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM, 2006.
SCHWARCZ, Lilian Moritz. Lima Barreto triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
 
 

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