Slovo patsaná, a série

Por Rafael Bonavina




A dissolução da União Soviética não foi apenas um trauma para os que a vivenciaram e sentiram na pele os vários efeitos da dissolução de um país. É claro que isso não aconteceu da noite para o dia, foi um processo histórico que pouco a pouco minou as fundações dessa sociedade até que o edifício como um todo ruiu. Em outras palavras, a infraestrutura implodia e levava consigo a superestrutura. Não é à toa que a transição gerou — e ainda gera — muito debate a respeito das suas causas e consequências. Como não poderia deixar de ser, o polêmico tema também foi tratado na cultura, e vemos diversos poemas, romances, filmes e séries que o desenvolvem.
 
Um dos casos mais interessantes feitos nos últimos anos é a série de oito episódios Slóvo patsaná: krov na asfálte (2023), dirigida por Zhora Kryzhovnikov. Apesar do seu imenso sucesso na Rússia e em diversos países pós-soviéticos, a série não conseguiu atingir o Ocidente com a mesma potência, em muito por causa da grande dificuldade de acesso. Ainda assim, a legião de fãs já disponibilizou, gratuitamente, versões das legendas em diversos idiomas de origem europeia, como francês, alemão e inglês.
 
Essa empreitada, diga-se de passagem, não merece ser louvada apenas por permitir o acesso ao seriado, como também pela dificuldade de sua realização. A tradução audiovisual ainda não permite que o tradutor use notas de rodapé, então todas as dificuldades devem ser resolvidas na própria legenda. Some-se a tudo isso que os textos das legendas não podem ser muito longos para que o espectador tenha tempo de ler sem perder a ação. Apesar de tudo isso, talvez o maior desafio não seja a mídia traduzida, mas a linguagem utilizada pelos personagens, cheia de gírias e expressões populares, entrecortada por rosnados, grunhidos e realias da URSS daquele momento, todos elementos de difícil tradução.
 
Um bom exemplo dessa questão da linguagem se encontra já no título. A expressão “patsan” é utilizada no jargão criminal dos anos 1980 para se referir aos demais membros de uma mesma gangue. O contrário de um patsan era um tchuchpan, isso é, alguém que não participa de nenhum grupo criminoso, um civil por assim dizer. Ao mesmo tempo, a expressão “dar a palavra de patsan” (dat’ slóvo patsaná) também funciona como uma promessa de que se diz a verdade, algo como uma palavra de honra, promessa que, rompida, traz sérias consequências ao mentiroso, geralmente violentas. O título, portanto, poderia ser traduzido como Palavra de malandro: sangue no asfalto, apesar de usar uma expressão demasiado brasileira; outra opção acertada seria Palavra de homem: sangue no asfalto, cujo machismo encontra sustentação no universo ficcional da série.
 
Para resumir a trama de Slovo patsaná, a narrativa acompanha a vida de um jovem e promissor pianista chamado Andrei Vassílev, que mora em Kazan no final dos anos 1980. Se fôssemos usar os termos contemporâneos, poderíamos dizer que Andrei sofre bullying diário na escola e fora dela: ameaças, extorsões e espancamentos eram parte de sua rotina. Cansado de ser tratado como um trapo, Andrei pouco a pouco se afasta dos seus estudos para se envolver cada vez mais com a gangue Universam, que também era o nome de uma grande rede de mercados da época. O seu envolvimento começa quando a professora de inglês de sua escola pede que ele ajude seu colega de sala, Marat Suvorov, que tinha muita dificuldade com o idioma. Ambos rapidamente se tornam amigos, e Andrei acaba sendo introduzido à gangue por Marat. Depois de uma iniciação violenta, o personagem é admitido na Universam e ganha o codinome Casaco (pal’tó) por sua roupa muito “quadrada”. A partir daí vemos uma espécie de trama de formação que leva Andrei de tchuchpan a patsan, ou seja, ele atravessa uma série de experiências e aos poucos se torna um membro pleno da gangue.
 
Essa profunda transformação não ocorre de maneira tranquila, mas angustiante e tensa; Andrei vê sua antiga vida pessoal dilacerada, uma família instável que desmorona de vez, o desinteresse pela escola e pela música, verdadeiro sonho do garoto. Uma das cenas da série condensa a tensão vivida por esse personagem: Andrei está sentado ao piano do conservatório, a professora lhe pede para tocar uma peça complexa, e ele não consegue; em parte por não ter praticado, em parte porque havia machucado as mãos em uma briga de rua. Percebendo a dificuldade do seu aluno, a professora lhe repreende de maneira bastante severa; ao invés de responder à altura, começa a tocar “Sedáia notch”, música que ganhou fama, na época, pela versão da banda Laskovy Mai.1 A professora, então, expulsa Andrei da sala.
 
Essa perspectiva nos leva a uma conclusão bastante esperada: o estilo sóbrio e tradicional do conservatório contrasta claramente com o ritmo agitado, típico das discotecas dos anos 1980, a estética nova da jovem banda etc. Há outra forma de compreender essa cena, no entanto, que mobiliza uma camada mais profunda do plano simbólico. A trilha sonora de Slovo patsaná é praticamente composta por músicas da época retratada na série, o que dá todo um sabor típico daquele momento histórico. Além disso, a música “Sedáia notch” funciona como tema musical para a amizade de Marat e Andrei, já que logo no primeiro episódio há uma sequência relativamente longa em que eles a cantam juntos enquanto brincam e brigam pela casa de Marat.
 
Por essas razões, como dissemos, a cena da expulsão de Andrei sintetiza o drama desse personagem. Suas mãos machucadas pelas brigas de rua não conseguem ter a agilidade, segundo a professora, para tocar a música que se espera dele. Tampouco a realidade de Andrei condiz com a educação clássica que ele almeja, pois Andrei não possui os meios necessários para praticar o instrumento, e vale ressaltar que a primeira cena do filme é justamente a de Andrei sentado no escuro com um teclado falso de piano, feito de papel, esticado sobre uma mesa. Por outro lado, quando ele busca introduzir nesse cenário a sua própria realidade, simbolizada pela música-tema de sua amizade com Marat, ela é categoricamente rejeitada. A contradição entre a cultura oficial, clássica, e a realidade para além do conservatório não se resolve, deixando Andrei em um crescente tensionamento que só se resolve, em alguma medida, ao final da trama.
 
Em meio a essa macronarrativa de Andrei, acompanhamos diversas outras tramas “menores” que acabam ganhando imenso protagonismo na série, como a de Vova Suvorov, vulgo Adidas. Ele é o irmão mais velho de Marat e antigo líder da gangue Universam que foi enviado para servir ao Exército na Guerra Afegã-Soviética (1979–1989). Tanto a sua alcunha quanto algumas menções esparsas ao longo da narrativa indicam que o personagem pode ter sido um atleta promissor, como Andrei e a música, mas Adidas não busca reatar com esse passado quando retorna da guerra; pelo contrário, o assunto é comentado apenas de passagem, o que nos leva a crer que o próprio Adidas tenha desistido de perseguir esse caminho. A nosso ver, a desilusão de Vova nasce de uma conjunção de fatores sociais (entre eles, a profunda crise econômica enfrentada pela URSS naquela época) e pessoais, como a falta de treino e os traumas trazidos da guerra. Ao contrário de Andrei que pouco a pouco toma consciência da sua situação, Vova parece compreender de maneira muito clara a sua condição e, ao voltar da guerra, imediatamente retoma sua participação na Universam, indo encontrar seus colegas ainda com seu uniforme militar, sequer tirando as medalhas de honra para jogar futebol com eles.
 
Para além dessa tensão íntima entre desejo e possibilidade, Vova também luta para se manter à altura das expectativas de seus pares, afinal todos os jovens da Universam veem nele uma figura quase mítica, capaz de resolver todos os problemas. No entanto, e apesar de todos os esforços de Adidas, a gangue parece estar com os dias contados, estando à beira de ser esmagada por grupos maiores e mais violentos. Em diversos momentos da série, fica claro ao espectador que Vova tem consciência da sua impotência diante desse problema e, mais uma vez, ele se vê em uma tensão insolúvel.
 
Apesar de ser muito bem construído, o desenvolvimento da narrativa perde um pouco de força quando se aproxima do final, pesando demais a mão no drama e recaindo em verdadeiros dramalhões, como a cena em que a mãe de Andrei, tresloucada pela sua incapacidade de ajudar o filho, põe fogo no próprio cabelo. Outros pontos, como o desfecho da história de Vova, acabam sendo um pouco previsíveis e deixam a impressão de remendo no roteiro. E, de fato, isso aconteceu. Como já foi discutido por diversos críticos na imprensa internacional, como Polina Chestak,2 há uma grande discrepância entre o plano inicial e o que chegou até nós, mudanças que tornavam o final menos bem-resolvido, por assim dizer, e mais tenso. Apesar da atenção que o tema recebeu, seria preciso um estudo detido para compreender não só as divergências entre o projeto e a realização, como a análise detida do efeito das diferenças.
 
Aproveitando o tópico dos estudos, vale ressaltar que a série foi feita a partir do livro Slovo patsaná: o Tartaristão criminal dos anos 1970–2010, escrito pelo jornalista Robert Garáev. Esse livro de Garáev não é uma ficção, mas um livro documental (dokumentalnaia kniga), como geralmente é chamado em russo. Trata-se de uma espécie de estudo sociológico que busca compreender a organização interna do mundo do crime na antiga República Soviética Socialista Independente do Tartaristão. Essa pesquisa de Garáev, portanto, aborda o chamado Fenômeno de Kazan, evento histórico muito complexo em que diversas gangues se organizaram nessa cidade nas décadas de 1970 e 1980 por uma série de razões que, infelizmente, não temos espaço aqui para abordar. A questão é que as gangues acumularam um poder imenso, chegando a ter mais força que o próprio Estado na região.
 
A série modifica, como geralmente ocorre nas adaptações, alguns elementos descritos no livro, mas não trai o espírito de seu fundamento, e é importante dizer que Garáev participou como consultor na criação de Slovo patsaná: krov na asfalte. Um bom exemplo dessas transformações é o crescimento épico da importância da gangue Universam que, embora de fato existisse, não era tão importante quanto o retratado na série. Porém buscar em Slovo patsaná: krov na asfalte uma espécie de diorama daquele momento histórico é, a nosso ver, menos produtivo que observar a narrativa como um objeto estético com suas próprias tensões e contradições. E, nesse sentido, é bastante interessante notar a forma com que é representada a Universam, pendendo ora para uma romantização da camaradagem entre os membros da gangue, ora para um brutal realismo da violência e das consequências sofridas pelos criminosos.
 
No campo da romantização, são várias as cenas em que os rapazes são retratados dividindo histórias ao pé de uma fogueira, fumando, jogando hóquei ou mesmo dançando na discoteca. Um bom exemplo se dá com a mãe de Andrei, que participa de um jogo de azar e acaba sendo enganada por um patsan de grande importância. Ela perde todo o dinheiro que tinha e um belo chapéu de pele que trazia consigo, e perderia muito mais, se Marat não tivesse interrompido o golpe aplicado pelos colegas. Depois de uma série de discussões e disputas de poder, os membros da Universam (e muito por intermédio do Adidas) conseguem um chapéu parecido e recuperam parte do dinheiro perdido. Já no extremo oposto, também são várias as cenas de violência física que Slovo patsaná nos apresenta: desde brigas de rua com socos até o uso de armas de fogo, porém mais ao final da série aparece um exemplo mais interessante. A Universam está se recuperando de mais um baque sofrido, e a sequência nos apresenta uma série de membros da gangue com diversas idades que estão se preparando para uma ação. Cada vez que um deles aparece pela primeira vez na sequência, a imagem fica estática e ao lado do personagem surge um bloco de texto descrevendo as circunstâncias de sua morte, em geral violenta, ou de sua prisão. A grande quantidade de epílogos apresentados dessa maneira e a velocidade com tudo isso acontece cria no espectador uma sensação de vertigem, como se ocorresse um extermínio dessa juventude empurrada para o crime.

Esses dois extremos deixam claro que a narrativa não adere a uma visão unilateral da problemática questão e, portanto, consegue escapar do didatismo de apresentar uma perspectiva pronta ao espectador. Pelo contrário, a série apresenta a complexidade do assunto, suas contradições, algumas de suas causas e várias consequências a nível social e individual. A possibilidade de explorar todas essas nuances e entretons, que nascem dessa mistura de cores românticas e realistas, dá grande amplitude à narrativa. Se somarmos isso à falta de solução para a tensão central, o que redundaria em uma espécie de happy end, teremos uma boa perspectiva do que faz de Slovo patsaná uma série digna de nota.
 
Notas:
1 A música pode ser ouvida gratuitamente no YouTube.  
2 Cf. se lê aqui.

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