Ossos do ofício: Borges e a poética da conjectura


Por Guilherme Mazzafera



O meu Borges não é o ficcionista nem o poeta, a quem admiro cum grano salis pianíssimo, embora a mescla de verso e prosa entretecida em O fazedor seja uma de suas mais belas realizações. Tendo conhecido o nome Borges em liame íntimo com sua esmerada apreciação de Beowulf, fui atrás de seu livro mais famoso, Ficções (1944), no meu último ano do colegial. Li-o em duas sentadas. A primeira, no quintal ensolarado em um mês de julho quando havia inverno, pôs-me em companhia de um planeta não catalogado, uma biblioteca inexcedível e um famoso escritor francês desconhecido que palimpsestava a obra-prima de Cervantes e que mais tarde se tornaria uma espécie de São Jerônimo pós-moderno. A segunda sentada, naquela noite fria, apresentou-me um duelo impressionante, uma relva bifurcada e alguém incapaz de esquecer. Apresentou-me, também, o vocábulo “memorioso”, cintilantemente borgiano, que mais adiante inventaria uma bela estória sobre um homem que herda a “memória de Shakespeare”.

Apesar de certo deslumbramento, não fui imediatamente atrás de outros livros seus. Aquela leitura intensa, 16 contos em um único dia, trouxe-me certo cansaço, reforçado pela recorrência de temas tão presente em sua escrita, que favorece alguns pastiches realmente interessantes como os de Luis Fernando Veríssimo. Lidos com certo intervalo e apartados de seu volume de origem, os contos de Borges tornam-se mais interessantes e vivos. Essa platitude poderia se aplicar a qualquer contista, de Poe a Guimarães Rosa, mas sinto que em Borges ela se acentua. Em sua obra (como em Star Wars ou nos filmes de Woody Allen) a recorrência temática é princípio estruturante, e a memória faz das suas, forjando o famoso contraste entre um leitor memorioso (capaz de recitar oito estrofes de um poema em romeno ouvido uma única vez de seu autor em 1916 sem nunca ter efetivamente aprendido o idioma) e um escritor desmemoriado, incapaz de recobrar o que escreveu, condição prontamente invocada diante das críticas à repetição como muleta de escrita. Como veremos, a repetição não é apenas fragilidade, mas também espécie turva de credo literário.

O meu Borges é outro, o ensaísta que, progressivamente privado da visão, passa a ensaiar exclusivamente pela voz. Tendo um lastro de ensaios admiráveis na bagagem (Outras inquisições, Discussão etc.), a passagem do escrito ao oral – e sua posterior reversão à escrita, tendo agora o oral como meta – acentua a fluidez e os meneios idiossincráticos, recuperando em nível mais profundo aquela característica essencial do ensaio, apontada por Philip Lopate, que é o pensar defronte outros, na página ou no palco: o pensamento em ação. Eis o meu Borges: o Borges oral das palestras (Borges, oral; Sete Noites), cursos (Curso de literatura inglesa) e entrevistas (os diálogos com Oswaldo Ferrari).

Descobri as Norton Lectures de Borges, reunidas em Esse ofício do verso, reeditado há pouco pela Companhia das Letras com tradução de José Marcos Macedo, nos primeiros meses de faculdade, onze anos atrás. Sabendo de meu interesse por inglês antigo e Beowulf, minha então professora de estudos literários cedeu-me uma cópia da segunda dessas palestras, dedicada à metáfora. Ao longo da semana seguinte, obtive cópias das outras cinco. Meu fugaz esboço para uma possível iniciação científica previa uma leitura comparativa entre Tolkien e Borges a partir da devoção confessional de ambos ao inglês antigo e seu corpus literário. O esboço não saiu do papel, mas a leitura das palestras revelou-me uma predileção literária até então pouco consciente, que retenho até hoje: um prazer vicejante pela crítica literária enquanto gênero em si, despida tanto de seu caráter ancilar quanto de rigorismos acadêmicos extremados; discurso apaixonado e reflexivo; inevitável. Tendo já experimentado o alumbramento do poético, a exposição a esse tipo de modalidade crítica evocou em mim sensação análoga à descrita por Borges ao ouvir seu pai recitar os famosos versos do Keats de “On first looking into Chapman’s Homer”: “E quando o fato de que a poesia, a linguagem, não era somente um meio de comunicação, mas também podia ser uma paixão e um prazer – quando isso me foi revelado, não acho que tenha compreendido as palavras, mas senti que algo acontecia comigo.”

Esse ofício do verso é, entre muitas, a profissão de fé de um leitor devotado, capaz de mobilizar os referenciais mais diversos sem convertê-los propriamente em argumentos – “qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz que qualquer coisa apregoada”. Diante da plateia reunida em Harvard nos últimos meses de 1967 e no início de 1968, não há o que revelar, pois o que importa em literatura é o desfrute, que só se torna efetivo ao desabonar qualquer hierarquia precedente: “De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo”. Assim, as palestras não são lições ou aulas, mas confissões, em termos agostinianos; referem-se à constituição de uma interioridade partilhável com Deus e os homens.

A primeira das palestras, “O enigma da poesia”, articula-se a partir da relação enigmática com o tempo. Se Borges recupera o famoso dito de Agostinho sobre a incapacidade de definir o tempo quando diretamente perguntado, o palestrante questiona por que a habilidade de prever o que vem adiante deveria ser mais bem reputada ou espantosa que a capacidade de recobrar eventos passados; afinal, tudo ao presente converge. Nesse sentido, se “a primeira leitura de um poema é a verdadeira”, é também verdade que “a poesia é experiência nova a cada vez”.  Recuperando a famosa imagem homérica do “wine-dark sea”, um possível lugar-comum para os ouvintes gregos de então, diz Borges que seu emprego no presente traria em si o imprimatur da tradição, passando a dizer algo bem diverso do que o aedo então dizia. A consciência de que uma mesma imagem – e, no limite, um livro por inteiro –, deslocada no tempo, pode ser completamente ressignificada ao manter sua integridade estrutural (livrando-se, portanto, da pecha da citação) é uma das forças motrizes da poética borgesiana, como se vê no paradigmático “Pierre Menard, autor do Quixote”.

A importância dessa ideia é reforçada, a seu modo, nas cinco palestras seguintes, enlaçadas pelo credo de que a literatura opera infinitas variações sobre um diminuto número modelos produtivos. No caso da segunda delas, sobre a metáfora, Borges nota que embora certo esforço analítico permita reconduzir diversas metáforas a um tropo de base, seus efeitos sobre o leitor são bastante diversos, o que lhes assegura o vigor. O efeito também depende, como seria de esperar, da precisão dos termos escolhidos. A mais sutil das metáforas, para Borges, é a do filósofo chinês Chuan Tzu, que sonhara ser uma borboleta e ao acordar “não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem”. Retendo algo da incerteza dos sonhos, a ponto de sermos por eles entretecidos segundo a famosa imagem shakespeariana, “o verdadeiro modo de sugeri-lo é com uma borboleta, não com um tigre.” Em chave mais ampla, os diversos contos de Borges arquitetados a partir da imagem do duelo são um exemplo desse princípio em ação, seja no incontornável “O sul” ou na própria justaposição de “O duelo” e “O outro duelo” em O informe de Brodie (1970).

Se Borges computa algo como uma dúzia de cadeias metafóricas possíveis, no caso da épica – tema da terceira palestra – a equação se reduz a uma tríade narrativa composta pelas histórias de Troia, Ulisses e Jesus, com suas variegadas e potentes ramificações. Esta constrição numérica, no entanto, não é defeito, pois se os homens precisam de histórias, não precisam necessariamente de muitas, e Deus (ou o diabo) habita os detalhes: “Não acho que as pessoas fossem menos criativas naquela época do que são hoje. Acho que sentiam que as nuances introduzidas na história – as sutis nuances nela introduzidas bastavam.” Tendo conhecimento prévio do escopo básico de uma narrativa, o ouvinte-leitor podia concentrar seu esforço receptivo nas diferenças, núcleo essencial de qualquer reconto.

Dono de um saber amplíssimo e apaixonante, Borges é leitor onívoro que curiosamente não se refestela como escritor no mais onívoro dos gêneros literários, o romance. Nesta mesma palestra, Borges procura pensar o vínculo entre épica e romance, sugerindo que enquanto a primeira tem seu centro um herói como modelo humano, o segundo parece erigir-se a partir da “aniquilação de um homem, na degeneração do caráter”. Embora a apreciação pela dignidade da derrota esteja presente já em Troia e no mais famoso spin-off dos poemas homéricos, a Eneida, Borges observa certa passagem da vitória heroica à convenção do final feliz, de modo que “hoje em dia, se alguém empreende uma aventura, sabemos que terminará em fracasso”.

Se a ideia de inventar uma história jamais haveria passado pela cabeça de um Chaucer, por exemplo, em dado momento a necessidade de criá-las torna-se premente –talvez com Hawthorne ou Poe, sugere Borges. Desde então, temos experimentado certo “acesso de inventividade” que, no entanto, pode soar um pouco artificial nos casos individuais, e, em nível coletivo, uma mascarada que acabará por desvelar os “poucos enredos” vitais diagnosticados por Borges. Subjacente a tudo isso – incluindo o propalado declínio do romance – Borges registra o anseio pelo momento em que se reunirão o prazer de contar uma história e a dignidade do verso: “Creio que o poeta haverá de ser outra vez um fazedor. Quero dizer, contará uma história e também a cantará.”



A quarta palestra aborda o problema da tradução literária, sua (im)possibilidade, os riscos das “ênfases falsas” movidas pelo literalismo – mas também as insuspeitadas veredas que o mesmo pode abrir. Partindo da já clássica tradução de Edward FitzGerald para os Rubáiyát, Borges pondera em que medida nossa aceitação das belezas de uma tradução liga-se intimamente a pressuposição de que há de fato um abalizado original por trás, o que não era bem o caso para FitzGerald. Assim, cabe pensar a questão de que uma tradução literal é capaz de produzir “uma beleza toda sua”, o que é outra forma de dizer que a repetição não é gesto passivo, posto que produtor de diferença via traslado linguístico. Borges especula que as traduções literais teriam se originado pela demanda religiosa por disseminar textos sacros sem alterar o conteúdo divino da mensagem: “se Deus escreve um livro, se Deus se digna à literatura, então cada palavra, cada letra, como dizem os cabalistas, há de ter o seu propósito.” Com a sagacidade habitual, Borges faz da especulação procedimento: ao arriscar metáforas autorais ousadas (que seriam, lembremos, nada mais que variações de reduzidas matrizes), sabendo que não seriam aceitas sem lastro, acaba por atribuí-las a “algum remoto persa ou nórdico”. Com este parti pris, os amigos as consideravam primorosas – e o autor/tradutor não as desmentia, pois “os persas ou nórdicos podem ter inventado essa metáfora, ou outras semelhantes”. Em suma, a percepção tradutológica de Borges poderia ser condensada em sua afirmação de que “a diferença entre uma tradução e o original não é a diferença dos próprios textos”, pois ela reside em um jogo complexo entre instâncias culturais, linguísticas e receptivas – ou, para falar com Guimarães Rosa, suas circunspectâncias.

A quinta palestra discorre sobre o eixo “pensamento e poesia”, tentando entender, em alguma medida, o que torna o poeta efetivamente um fazedor. Para Borges, a poesia “trata de levar a linguagem de volta às fontes”, o que, em outras palavras, implica reconcretizá-las. Como observa o autor, as palavras derivam de bases concretas, posteriormente abstratizadas: dreary, antes de ser “lúgubre”, continha a indicação precisa: “manchado de sangue”. Além disso, a essa dimensão concreta acrescenta-se a intuição do sentido: “sentimos a beleza de um poema antes mesmo de começarmos a pensar num sentido”

Entre as formas de usar a poesia, Borges destaca a opção pela invulgarização das palavras, lançando mão de um léxico corriqueiro do qual se extrai a mágica, forma outra da repetição como diferença. Sua contraparte seria o estilo elaborado, em que avultam palavras novas ou raras. Ambos são válidos, a depender dos efeitos alcançados em cada caso – é preciso haver uma emoção verdadeira subjacente, dirá ele –, mas Borges parece preferir o “estilo simples”, em que a justaposição de vocábulos comuns é capaz de produzir algo novo, como no verso “Glad did I live and gladly die” do “Requiem” stevensoniano. Por fim, à emoção verdadeira do verso, Borges emparelha a forte “convicção” – em que sempre ecoa a voluntária suspensão da descrença coleridgiana – que certos personagens despertam em nós, a ponto de continuarmos a crer em Dom Quixote ou Sherlock Holmes a despeito dos excessos presentes em algumas de suas aventuras (o reverso da medalha, para Borges, seria Moby Dick, no qual crê sobretudo na história como parábola, mas não em seus personagens).

A última palestra, “O credo de um poeta”, traz inevitavelmente o dado biográfico, mas este figura não como inventário de obras escritas, mas sim dos livros lidos ao longo dos anos: “Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante”. A supremacia da leitura não deixa de refletir algo do circunstancial, contingente: “Pois a pessoa lê o que gosta – porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever.”

O anverso da repetição como diferença, na trilha borgesiana, é, como vimos, o número reduzido de matrizes a partir das quais se gestam as dissonâncias. Uma outra forma de representar isso é a ideia que Borges discute aqui – e que lhe obsedou por certo tempo – de encontrar a imagem-síntese, “o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si”, como quando Judas beija Jesus e reconhece para si mesmo sua traição. A passagem do múltiplo ao uno, engastado em vastíssimas ressonâncias simbólicas, é marca distintiva do imaginário associado a Borges, evidenciado por sua criação mais afamada, O Aleph – vértice do cosmos.

Findas as palestras, começo a entender melhor o credo deste poeta: fidelidade à própria imaginação, mas imaginação de leitor, que não quer saber de angústia (óbulo de quem escreve), mas de felicidade. O dever do artista é o de narrar uma história – que não precisa ser de todo sua –, em prosa ou verso, repetindo-a para torná-la própria. Afinal, “não há satisfação em contar uma história como realmente aconteceu. Temos de mudar as coisas, ainda que as achemos insignificantes; caso contrário, não devemos nos tomar como artistas, mas talvez como meros jornalistas ou historiadores.”

De volta àquela manhã de julho, lendo as primeiras páginas de “Tlön”, deparei-me com uma palavra abundante em Borges, que eu então desconhecia: conjectura. Hoje, relendo este livro, ela parece adquirir um viço insuspeito, embora visível. A obra de Borges é uma poética da conjectura, que tem como alicerce a tradição literária tal como incorporada por um leitor particular, refratando suas obsessões com dicção precisa e singular, tornando-a sua pelas pequenas variações que lhe imprime a cada nova evocação.

Deixando me levar um pouco pelas diversas conjecturas presentes nas falas borgesianas, vejo-me aqui a indagar sobre as origens concretas da expressão “ossos do ofício”. Uma explicação possível refere-se ao pó de tutano utilizado para branquear as folhas de papel ofício em processo moroso. Assumindo uma ligação entre um provável osso humano e a confecção de possíveis livros, duas apropriações saltam aos olhos. Para o mau poeta, os ossos são desgaste, relíquias espúrias da morte daquela resma e seu conteúdo. Já para o bom poeta, que orquestra os versos com emoção verdadeira, os ossos do ofício são a sedimentação calcária das épocas, os veios subterrâneos da tradição literária que ele evoca, ausculta, repete – repetir é diferir – de um poeta persa ou nórdico.

Na primeira palestra, Borges nos diz que “as coisas perfeitas na poesia não parecem estranhas; parecem inevitáveis. E assim mal agradecemos ao escritor por seu esforço.” Tendo relido com recorrentes alumbramentos estas seis palestras – que, sendo as mesmas, são inequivocamente outras – só me resta dizer: obrigado, Borges. 

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