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Mostrando postagens de agosto, 2023

O escoteiro que escrevia

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Por Daniel Herrera Jorge Ibargüengoitia. Foto: Joy Laville.   Em 1958, o filho de Guanajuato comprou um livro de receitas e despesas Sistema Roca para anotar sua vida econômica. Durante todo o ano de 1959, ele escreveu apenas duas palavras: “Sem renda”. Sua estreia como escritor foi, para dizer o mínimo, complicada. Aquele ano de pobreza não foi o único que viveu assim. Como pôde Jorge Ibargüengoitia, renegado pelos colegas e até pelo próprio professor, Rodolfo Usigli, acabar vivendo confortavelmente em Paris e mudando-se de uma cidade para outra para se dedicar exclusivamente à escrita?   Por mais estranho que possa parecer hoje em dia, ele só o fez através da sua obra literária. Não precisou de nenhum tipo de ajuda extraliterária para conseguir o êxito. Claro, ele é um daqueles raros casos do século XX: um escritor que estudou para escrever. Fez bacharelado e mestrado. Foi professor, escreveu resenhas, crônicas e artigos, ganhou bolsas e prêmios e fez todo o possível para viver da cr

A menina silenciosa e os sons do silêncio

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Por Ernesto Diezmartínez   Em um determinado momento decisivo de A menina silenciosa (An cailín ciúin, Irlanda, 2022), o amável pai postiço Seán (Andrew Bennett) diz à filha transitória Cáit (a extraordinária estreante Catherine Clinch) que não há nada de errado com permanecer em silêncio. Às vezes é o melhor que se pode fazer. “Muitos perderam muitas coisas só porque perderam a oportunidade perfeita para continuar calados”, diz Séan calmamente a Cáit, que, como sempre, está com os olhos expressivos bem abertos, sempre em guarda, aprendendo e apreendendo regras e comportamentos que lhe são estranhos.   Estamos algures no interior da Irlanda, no início da década de 1980. Cáit tem nove anos e é a filha mais velha de dois rudes agricultores que têm cinco filhos. A mãe (Kate Nic Chonaonaigh) está grávida novamente e o pouco que o pai (Michael Patric) ganha, quando não está jogando ou bebendo em alguma “ceia líquida”, não é suficiente para sustentar sete bocas famintas. Para aliviar o pes

Uma matrioska chamada Nostalgia: o modo “irrealis”

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Por Mar Carmena   Não deixes fechadas as portas da noite, do vento, do relâmpago, as do nunca visto.   — Pedro Salinas, “A voz a ti devida”     O sonhador .   Caspar David Friedrich, 1840. O ser humano caminha rodeado de ruínas. Isto é perceptível tanto nas grandes capitais cujos bairros monumentais oferecem um diálogo entre o antigo e o contemporâneo, como nas pequenas cidades provincianas que, na ausência de um teatro romano, de esculturas gregas ou de construções para a memória histórica, têm dessa padaria que abriu há décadas, a mercearia onde se compravam bugigangas quando criança ou o bar do qual se saiu há poucos minutos. Tudo o que gira em torno das pessoas são ruínas potenciais, um conjunto de rochas e edificações que talvez ainda não seja percebido ou visto, mas que acompanhará como tal no futuro. Precisamente, em Hiroshima, Mon Amour (Alain Resnais), estuda-se o refluxo das memórias e como a nostalgia que reside na identidade de um lugar e dos seus habitantes afeta os acont

Silvina Ocampo: o mistério de uma das melhores contistas argentinas

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Por Silvina Friera Silvina Ocampo. Foto: Aldo Sessa   Escrevia para morrer um pouco menos. Tal como as pedrinhas que uma criança traz para mostrar (e quando abre a mão são um punhado de pó), é assim que uma das melhores contistas do século XX via a sua obra. A posição de Silvina Ocampo, que certa vez declarou que por ser a mais nova das irmãs se sentia “o etc. da família”, vai mudando furtivamente, como se tivesse uma espécie de onipresente exército de reserva póstumo para preservar o mistério, ainda a 120 anos de seu nascimento cumpridos em 2023 e três décadas após sua morte. Se ela foi “a grande encoberta” pela irmã mais velha, Victoria Ocampo, pelo marido, Adolfo Bioy Casares, e pelo amigo, Jorge Luis Borges, a perplexidade e o espanto que suas histórias geram ao passar do familiar ao desconhecido, mais que reafirmar aquele antigo valor de ter sido “o segredo mais bem guardado das letras argentinas” parece postular uma narrativa vigorosa e discreta em sua forma de construir mundos

Dez (breves) poemas de Abbas Kiarostami

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Por Pedro Belo Clara Abbas Kiarostami. Foto: Nicolas Guerin     I. Hesitante detenho-me na junção O único caminho que conheço é o caminho de volta     II. Uma mulher grávida chora em silêncio O homem dorme sobre a cama     III. Este meu dia perdi-o como todos os outros dias metade pensando sobre ontem metade pensando sobre amanhã     IV. Quando voltei à minha terra natal não consegui encontrar a casa do meu pai nem a voz da minha mãe     V. Cem árvores frondosas foram quebradas pelo vento mas o vento levou só duas folhas de uma pequena árvore     VI. Uma gota de luz cai pela fenda do céu cinzento na primeira flor de primavera     VII. Mulher de cabelos brancos olhando as flores de cerejeira “Terá a primavera da minha velhice chegado?”     VIII. Flores de laranjeira flutuando num riacho depois da chuva     IX. A água desperdiçada irriga as ervas daninhas     X. Para além do bem e do mal o céu é azul ______     Abbas Kiarostami nasceu em Teerão, no ano de 1940. Seria o começo duma vida

Boletim Letras 360º #546

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Roque Larraquy. Foto: Pablo García LANÇAMENTOS   Um novo livro do escritor argentino Roque Larraquy chega ao Brasil .   O insólito literário é a chave de leitura que consegue dar conta dos absurdos da história recente humana, perpetrados pelos processos de colonização europeus. E Roque Larraquy tece com maestria seu insólito, adicionando temas caros à ficção científica nesta crítica a facetas argentinas que esse país desejaria esquecer. A telepatia nacional , como nas melhores histórias da literatura fantástica, insere nomes reais em uma trama ficcional complexa. Inicia com o sequestro de índios da Amazônia peruana em 1930, que são levados, através do Brasil, a Buenos Aires. O objetivo? Replicar em solo portenho o projeto asqueroso europeu que gerou lucros imensos no século XIX: um zoológico humano. Contudo, se esse enredo parece focar no passado, não se engane! Larraquy se vale de tais acontecimentos com o intuito de minar nossas certezas sobre a diferença entre o real e o imaginado,

O jogo do poder

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Por Aida Míguez Barciela   Isabelle Merteuil e Cécile Volange. Ilustração para As relações perigosas .   Em A prima Bette , Balzac expandiu com seu domínio habitual da narrativa o destino da bruxa má de As relações perigosas , de Pierre Choderlos de Laclos. A grande cortesã — a mais bela, a mais criminosa — é punida no romance com uma morte que gela o sangue, a morte destinada a mostrar fisicamente o horror do monstro moral que já sabíamos qual era. Valérie está em seu leito de morte com sua beleza arruinada; a Marquesa Isabelle de Merteuil perde um olho e seu rosto fica desfigurado. É a revanche de seu ex-amante; é a vingança de seu cúmplice e rival naquele reino de vício e lascívia que nunca tem fim (mas acaba).   Vamos confessar. Não nos é fácil odiar aquela feiticeira astuta que joga apenas para agradar a si mesma: a Marquesa de Merteuil brinca de esconde-esconde para exercitar sua inteligência e demonstrar sua liberdade; joga para zombar de tudo e de todos e para poder ser tudo. E

Praga e a outra literatura alemã

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Por Alberto Gordo   No início da década de 1970, o prestigiado crítico de arte Josef Paul Hodin (1905-1995) encontrou uma velha caixa de metal cheia de manuscritos no porão de sua casa em Hampstead, Londres. Ele próprio havia jogado fora os romances e contos que escreveu nos anos 1930, enquanto percorria a Europa. Havia deixado sua cidade natal, Praga, no início da década, e chegaria a Londres em 1944, depois de passar por Berlim, Paris e Estocolmo. No final da guerra, a sua promissora carreira como escritor, interdita por Adolf Hitler quando o ditador ainda estava apenas a despontar, era definitivamente uma coisa do passado. Como judeu, sofrera as implicações do estopim Goebbels: “O judeu, quando escreve em alemão, mente”. Seus pais foram assassinados em Auschwitz. E com o passar dos anos ele se tornaria um dos críticos mais respeitados do Reino Unido.   Na década de oitenta, Hodin, biógrafo de artistas como Edvard Munch ou Oskar Kokoschka, publicou na Alemanha esses primeiros roman