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Mostrando postagens de setembro, 2023

Viena, Paris e Grécia: algumas horas caminhando com Jesse e Céline

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Por Andrea Calamari   Uma melodia doce e barroca na tela escura: Ethan Hawke, Julie Delpy. É a abertura de Dido e Enéias , de Henry Purcell, e os violinos entram urgentes com a imagem das avenidas, o som da máquina acrescenta intensidade. De dentro avista-se o verde do campo, as casas isoladas, as árvores de verão, uma ponte, o rio azul, até que os últimos acordes nos deixam dentro do trem. Vamos ver uma história. Paris   Em O sentido de um fim , Frank Kermode diz que as pessoas, assim como a poesia, rapidamente param a meio do caminho: in medias res . Para que tudo, ou pelo menos alguma coisa, faça sentido, precisamos de uma ordenação temporal, de um antes e depois, de correlações fictícias com as origens e os fins. E para isso servimo-nos da narrativa. A vida flui sem pausas ou interrupções, nunca começa nem termina, é um amálgama de histórias que se cruzam. A vida não se importa com personagens, a ficção sim. É o simulacro narrativo que dá ordem e, portanto, sentido a essa desordem

Marrocos através dos livros

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Por Berna González Harbour Mahi Binebine © Fouad Maazouz   Viajar pelos livros pode ser tão ou mais enriquecedor do que percorrer os seus lugares; e as novas gerações de escritores colocaram o Marrocos num novo mapa literário essencial para conhecer o país. Em geral, já colocaram seus pés noutros mundos, no da emigração, no do exílio ou simplesmente no da fuga à opressão que ainda respiram em sua casa, desafiando o estandardizado modo de vida. Mas o país continua a ser um material literário dos autores. O mundo deles. Tal como o canário na mina 1 ou o alerta antecipado de tsunami, há muito que eles pintam o universo de enorme desigualdade que acaba de se tornar novamente evidente com o terremoto que atingiu a terra de Atlas. 2   Ver as casas de adobe destruídas pelos movimentos das tectônicas, ver a população indefesa lutando sozinha contra os infortúnios como se fossem desígnios divinos, a ajuda chegando em lombo de burros e o Rei Mohamed VI visitando dias depois algumas vítimas esco

Tolstói versus Shakespeare com Stendhal como testemunha

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Por Christopher Domínguez Michael   Finalmente consegui obter um exemplar do livreto Tolstói on Shakespeare , publicado pela The Free Age Press, em Londres, em 1906, por um admirador estadunidense do conde russo, Ernest Howard Crosby. Mas antes de ler qualquer coisa de Tolstói sobre Shakespeare , vale a pena lembrar que a fortuna de Shakespeare, como a de qualquer outro clássico, nunca foi estática. Tudo começou da pior maneira para aqueles governantes de gosto que eram os franceses até que, da outra margem do rio Reno, apareceu o romantismo, rejeitando-os com tudo e ao seu imperador Napoleão e à sua Revolução de 1789. Voltaire, depois de alguma hesitação, já tinha condenado Shakespeare por sua vulgaridade e mau gosto. Considerava-o típico dos “selvagens britânicos”, apresentando-o sempre em desvantagem face aos autores dramáticos do Grande Século. Mas Tolstói observa que foi G. G. Gervinus (1805-1871), um historiador que os russos acusam de ser um “livre-pensador”, que acabou reivindi

Seis poemas de “Numa folha, leve e livre”, de António Ramos Rosa

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Por Pedro Belo Clara António Ramos Rosa. Foto: Nuno Ferreira Santos.   Lúcido rosto de uma haste cálida de frementes veias tão meu como o espaço em que vogava entre nuvens e árvores   Era uma folha que entre folhas flutuava respirando a maresia viva de um mar que estava longe e perto e em voluptuosa leveza o peito abria-se   Que adolescência aérea partilhada em júbilo fresquíssimo com o deus dos elementos vivos na sua glória actual embriagadamente efémera como se nascêssemos continuamente em transparente plenitude     ***     Amar as palavras é inventar o vento através da noite em pleno dia   Se desapareço grão por entre grãos é porque um deus adormece como um astro imóvel polvilhado de pólen   Onde estiver serei o sono do amor num claro jardim e como se estivesse morto as ervas hão-de romper das minhas unhas verdes e a minha boca terá a ébria frescura da plenitude do espaço     ***     Creio nas palavras transparentes que pertencem ao vento ao sal à latitude pura   Aqui no meu red

Boletim Letras 360º #550

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Bernardo Carvalho. Foto: Edilson Dantas LANÇAMENTOS   O novo romance de Bernardo Carvalho é descrito como feroz e comovente sobre as complexas relações entre pai e filho .   Durante a ditadura brasileira, um pai e seu filho de onze anos partem numa viagem à Amazônia. Num bimotor sobrevoam a floresta. O pai, um empresário em conluio com militares ligados ao governo, tem a tarefa de negociar a madeira da região com grupos estrangeiros. Enquanto o país sucumbe em tenebrosas transações, o menino se envolve mais e mais na leitura de uma novela de ficção científica na qual, após o fim do nosso planeta, um grupo de eleitos parte numa jornada exploratória do espaço. Tensionada todo o tempo entre a perspectiva do menino que vive a história enquanto ela acontece e a do adulto que rememora, a voz que narra este romance nos convida a olhar para a tragédia de um país. Reflexão incômoda sobre a história do Brasil dos últimos sessenta anos, Os substitutos mescla temas ecológicos urgentes, personagen

Samuel Beckett não se faz esperar

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Por Matías Serra Bradford Samuel Beckett. Foto: Henri Cartier-Bresson   A Segunda Guerra ficara para trás numa vida em que era difícil virar cada página. A princípio, em Paris, Samuel Beckett alistou-se na resistência contra os nazistas; no fim, ele acabou ao volante de uma ambulância na Normandia. Pelo meio, refugiando-se em Roussillon, na Provença, escreveu Watt para não perder a cabeça (e é um livro que pode devolvê-la ou recolocá-la a quem o leia).   De 1947 a 1950, sob uma febre repetível, escreveu as três obras que, numa maneira muito própria, desmantelariam o horizonte de papel da ficção: Molloy , Malone morre e O inominável . De repente, os escombros começaram a oferecer uma visão privilegiada: o romance refundado como uma capital de ruínas.   Chegara um escritor que não tinha medo de prender os dedos numa porta. Era uma das poucas epifanias que escapara a outro garoto, seu amigo e cúmplice James Joyce: a gratuidade de narrar sem motivo . E a tese consequente: que nada estava

As visitas que hoje estamos, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

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Por Pedro Fernandes O romance é um repositório de vozes. Essa qualidade permite que essa forma narrativa possa assumir infinitas feições, algumas delas, assimiladas a partir de linguagens ou de práticas linguageiras distintas da literatura, outras, a partir do exímio tratamento estético burilado na forja do romancista. No primeiro caso, encontramos os romances que se alimentam do tecido social e, no segundo, os que se alimentam da imaginação criativa e por vezes antecipam determinada experiência do mundo exterior. Nos dois casos, entretanto, a forma ao mesmo tempo que se renova constitui lentamente uma história que é parte indissociável na cultura, na formação do pensamento, no curso das ideologias e na milenar arte de narrar.   Costumamos distinguir Ulysses , de James Joyce, como o ponto mais radical ou a virada na história da forma romanesca. É verdade que os modelos mais tradicionais do romance nunca deixaram de existir e existirão enquanto encontrar um leitor neles interessado. Mas