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Mostrando postagens de novembro, 2023

Herói sem qualidades

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Por Mario Vargas Llosa Antonio Tabucchi. Foto: Leonardo Cendamo.   Antes de Afirma Pereira  (Milão, Feltrinelli, 1994), Antonio Tabucchi havia escrito excelentes contos, mas nesse romance de tão poucas páginas sua obra atingiu patamares que poucas ficções escritas hoje alcançaram. A história deste sombrio e envelhecido jornalista português, que, em agosto de 1938, numa Lisboa cinzenta e sonolenta sob a ditadura salazarista, vive uma transformação ética e política, que, por um breve momento, faz dele um herói, e depois, previsivelmente, já no exílio, regressa à vida anódina, é uma pequena obra-prima que, além de comovente, desenvolve uma problemática moral e cívica que transcende a sua estreita anedota. A eficácia do estilo, a sua perfeita arquitetura e a essencial economia da sua exposição conferem a este texto uma intensidade que raramente a prosa narrativa alcança, apenas a poesia.   Segundo uma nota que Tabucchi escreveu para a décima edição italiana do romance, este foi inspirado n

Napoleão, de Ridley Scott. A dispendiosa monografia de um personagem histórico

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Por Alonso Díaz de la Vega Há muito por onde escolher, mas talvez a imagem mais crua de Napoleão (2023), dirigida por Ridley Scott, seja uma em que o general francês dá ordem para disparar os canhões durante a invasão do Egito em 1798. Os soldados, obedientes, abrem fogo e, sem outra justificativa senão conseguir uma daquelas cenas que constam no trailer para vender bem o filme, uma das balas acaba enterrada na Pirâmide de Quéfren. Mas na realidade isso não aconteceu. A ficção histórica é perigosa porque desenha imaginários de sociedades inteiras; por conta disso, ainda há quem pense que Cristóvão Colombo imaginava que a Terra era plana — isso foi inventado pelo escritor Washington Irving — e certamente alguém acreditará que uma conspiração entre a máfia, a CIA e os gays matou John F. Kennedy — tal como afirma Oliver Stone em JFK (1991). Estes falseamentos generalizados revelam o fracasso da educação pública e o domínio dos meios de comunicação na formação da consciência política das

Sylvia Plath, sessenta anos presa em sua redoma de vidro

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Por Marta Ailouti  Sylvia Plath em Paris, 1956. Arquivo Lilly Library Em 24 de agosto de 1953, Aurelia Schober foi à delegacia para relatar com preocupação o desaparecimento de sua filha, Sylvia Plath (Boston, 1932-Londres, 1963), uma jovem brilhante, admitida no Smith College, a universidade de artes liberais para mulheres em Massachusetts; ela tinha acabado de passar um mês agitado em Nova York depois de receber uma bolsa como estagiária da revista   Mademoiselle . “Para resumir minha reação ante meus problemas mais imediatos — explicaria mais tarde numa carta a um amigo que a sua mãe nunca chegou a enviar —, o caso é que no início de julho decidi poupar algumas centenas de dólares ficando em casa para escrever e aprender taquigrafia, esquecendo-me da escola de verão. Ou seja, procurei reduzir gastos e ser criativa, já sabe. A verdade é que já tinha a certeza de que conseguiria frequentar o curso de criação literária de Frank O’Connor em Harvard, mas aparentemente vários milhares de

A. S. Byatt

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Por Andreu Jaume A. S. Byatt. Foto: Geraint Lewis.   “É a substituição da celebridade pelo heroísmo que alimentou este fenômeno. E é o efeito nivelador dos estudos culturais, mais interessados ​​na exposição midiática e na popularidade do que no mérito literário, cuja existência questionam. Acham legítimo comparar as Brontë com o romance Best-Seller. Tornou-se respeitável ler e discutir o que Roland Barthes chamou de ‘livros para consumo’. Não que haja algo de errado com isso, mas tem muito pouco a ver com o arrepio que sentimos quando vemos através das ‘mágicas janelas, abertas sobre a espuma/ Dos mares perigosos, nas encantadas terras perdidas’ de John Keats”.   Num artigo para The New York Times em 2003, Dame A. S. Byatt, que morreu em novembro deste ano, interveio assim no debate em torno do sucesso de Harry Potter , de J. K. Rowling. Para muitos, o fenômeno representava uma revitalização da literatura que devia ser saudada com entusiasmo, mas Byatt não detectou nada mais do que

Oito poemas de James Wright em “O ramo não se irá quebrar” (1963)

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões)   COMEÇA O OUTONO EM MARTINS FERRY, OHIO   No estádio de futebol do Liceu Shreve, Penso nos polacos tratando das suas grandes cervejas em Tiltonsville, E nos rostos cinzentos dos negros no alto-forno de Benwood, E no guarda-nocturno rebentado de Wheeling Steel, Sonhando com heróis.   Todos os pais orgulhosos têm vergonha de ir para casa. As suas mulheres cacarejam como frangos esfomeados, Morrendo por amor.   Por isso, Os seus filhos crescem suicidamente belos Nos começos de Outubro, E terrivelmente galopam contra os corpos uns dos outros.     DEITADO NUMA CAMA DE REDE NA QUINTA DE WILLIAM DUFFY EM PINE ISLAND, MINNESOTA   Por cima da minha cabeça, vejo a borboleta de bronze Dormindo no tronco negro, Agitando-se como uma folha na sombra verde. Lá em baixo, na ravina, detrás da casa vazia, Os sinos das vacas seguem-se uns aos outros Até aos longes da tarde. À minha direita, Num campo de luz, entre dois pinheiros, Os excrementos de cavalo do an

Boletim Letras 360º #559

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Albert Camus. Foto: Loomis Dean LANÇAMENTOS   Inédito no Brasil, Escreva muito e sem medo é a coletânea da intensa troca de cartas de Albert Camus e Maria Casarès, um testemunho da busca de dois amantes pela verdadeira experiência do amor .   Em 19 de março de 1944, Albert Camus e Maria Casarès se conhecem na casa de Michel Leiris. A ex-aluna do Conservatório de Arte Dramática de Paris, nascida em Corunha e filha de um político espanhol forçado ao exílio, tem apenas 21 anos. Ela havia começado a carreira em 1942, no Théâtre des Mathurins, mesmo ano em que Camus publicara O estrangeiro pela Gallimard. Na época, o escritor morava sozinho em Paris. Por causa da guerra, acabou afastado da esposa, Francine, que havia ficado em Orã, na Argélia. Sensível ao talento da atriz, confiou-lhe o papel de Martha na estreia de O mal-entendido , peça de sua autoria, em junho de 1944. Em 6 de junho do mesmo ano, na noite do Dia D, Albert Camus e Maria Casarès tornaram-se amantes. Esse era só o preâmbu