Dossiê James Joyce: um guia para entender Ulysses

capa da 1ª edição de Ulysses

Ulysses tem lá suas dificuldades, claro. Isso significa que o leitor que não estiver preparado para enfrentá-las corre o risco de se decepcionar. É preciso conhecer o caminho a se trilhar, sob pena de se perder. A sinopse a seguir abre uma picada na densa floresta literária de Joyce. Conduz o leitor, capítulo a capítulo, à essência do enredo e das técnicas narrativas. Joyce é parcimonioso na indicação de pistas. A única referência que serve mais ou menos de guia é o título do livro: o nome latinizado do herói da Odisséia, de Homero. A leitura de Homero seria enriquecedora, embora não obrigatória, porque os paralelos com a epopéia grega servem sobretudo de base estrutural, funcionam como metáfora profunda – estabelecida com ironia, humor e seriedade – do heróico no homem comum na era moderna. A idéia de um guia não era estranha ao próprio Joyce. Reconhecendo a complexidade do livro, ele elaborou um diagrama explicativo “para uso doméstico”. No diagrama, Joyce adotou a divisão da Odisséia: “Telemaquia” (parte I, episódios 1 – 3), “Odisséia” (parte II, episódios 4 – 15) e “Nostos” (parte III, episódios 16 – 18). A cada episódio, que no diagrama tem o título , corresponde uma denominação grega, um cena, um órgão do corpo, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica narrativa. A ação se passa num único dia: 16 de junho de 1904.


OS QUATRO PERSONAGENS PRINCIPAIS

Leopold Bloom, 38 anos, filho de pai judeu imigrante, o húngaro Rudof Virag (que ao chegar à Irlanda mudara o nome para Rudolph Bloom) e Ellen Higgins, não judia. Corretor de anúncios de jornal. Casado com Molly Bloom. Pai de Milly Bloom. O casal teve um filho, Rudy, que viveu apenas onze dias, de 29 de dezembro de 1893 a 9 de janeiro de 1894. Bloom, homem comum, sente-se deslocado na comunidade xenofóbica de Dublin. Quando o encontramos, ele relembra o suicídio do pai e a ausência do filho, preocupa-se com a filha adolescente e remói a suspeita de uma traição de Molly.

Molly Bloom, 34 anos, mulher de Leopold, mãe de Milly. Cantora soprano. Nascida em Gibraltar no dia 8 de setembro de 1870, com o nome de Marion Tweedy, mudou-se para Dublin aos 16 anos, com o pai, o major Brian Tweedy. A mãe, Lunita Laredo, talvez espanhola e de família judia, teria morrido ou abandonado a família quando Molly era nova. Molly é vista por outras personagens como mulher sensual, voluptuosa e até prostituta. Só aparece substancialmente no fim da narrativa, enquanto o marido dorme, no extraordinário monólogo.

Stephen Dedalus, único personagem em Ulisses que aparece no romance anterior de Joyce, Um retrato do artista quando jovem. Neste, Stephen é enfocado desde a infância até à juventude, dos primeiros estudos à universidade, da complexa formação de um artista inconformado até a recusa do provincianismo cultural e político, à sociedade católica coercitiva, e a inevitável partida para Paris. Em Ulisses, Stephen retorna à Irlanda devido à morte da mãe. Por falta de dinheiro e indecisões, permanece em Dublin, onde mora com Mulligan no litoral num antigo forte circular, a torre do Martello, do tempo das guerras napoleônicas. Leciona numa escola para adolescentes e continua a pregar a estética em que acredita.

Malachi “Buck” Mulligan, estudante de medicina e escritor que, sem se importar de fazer concessões em relação à arte, começa a se integrar ao círculo literário de Dublin. Mora na torre do Martello com Stephen Dedalus, de quem é amigo e rival.


DUBLIN, O CENÁRIO

1 – a torre do Martello

2 – a escola onde Stephen leciona

3 – Cervejaria Guinness

4 – Eccles Street, onde moram Leopold e Molly Bloom

5 – Sede do Freeman’s Journal

6 – Pub David Byrne, onde os personagens se reúnem

7 – Biblioteca Nacional

8 – Praia de Sandymount

 
A ODISSÉIA

1 Telêmaco

Oito horas da manhã na torre do Martello, à beira-mar, onde Stephen Dedalus mora com Mulligan. O inglês Haines, amigo de Mulligan, é hóspede. Mulligan e Stephen discutem arte: Stephen preza a arte íntegra e despreza a concessão para obter reconhecimento, que é a posição de Mulligan. A tensão subliminar entre os dois é aumentada por Haines, que pretende estudar o renascimento da Literatura Irlandesa e admira o folclore. Revela-se anti-semita. Stephen vê em Haines um representante do colonizador, opressor da Irlanda. Tomam café da manhã e saem. Mulligan vai se banhar. Dois homens procuram o corpo de um afogado. Stephen sente que não há mais lugar para ele na torre. Entrega as chaves a Mulligan e parte, sem intenção de voltar.

Stephen Dedalus é apresentado como artista. Mulligan e Haines equivalem aos pretendentes de Pénelope (da Odisséia) e a partida de Stephen simboliza a busca de um pai (no caso, espiritual).Stephen, que já havia deixado a casa dos pais, começa o dia assediado pelo espectro da mãe; remói a culpa de não ter rezado por ela no leito de morte um ano antes. A narração combina realismo com o monólogo interior (a técnica narrativa é juvenil).

2 Nestor

Stephen vai para a escola onde leciona, a poucos quilômetros as torre, no sudeste de Dublin. Os alunos comportam-se mal e Stephen não consegue controlá-los. Terminada a aula, fica na classe para orientar o garoto Cyril Sargent, atrasado em matemática. Stephen se identifica com Cyril quando menino. Imagina-o protegido dos males do mundo pela mãe. Libera-o para jogar hóquei e procura o diretor da escola, Garrett Deasy, para receber o pagamento. Deasy discursa sobre economia, aconselha Stephen a controlar as finanças, defende o unionismo como se fosse inglês, explica mal as relações entre Inglaterra (o dominador) e Irlanda (a dominada), revela-se anti-semita, tal como Haines (“a Irlanda nunca perseguiu judeus porque nunca os deixou entrar”). Deasy escreveu uma carta de alerta para os perigos de epidemia de febre aftosa e entrega-a a Stephen para, por meio de sua influência, publicá-la em jornal.

O episódio enfatiza a situação histórica da Irlanda (a arte aqui é história) e ressalta o deslocamento de Stephen, tanto físico como psicológico. Por meio do menino Cyril, é introduzido o tema do amor materno, associado sutilmente ao espectro da mãe de Stephen. O monólogo interior é utilizado durante todo o episódio, mais intensamente no início e no fim.

3 Proteu

Depois de sair da escola, Stephen anda pela praia a caminho do centro de Dublin. Reflete sobre filosofia e estética, evocando o filósofo grego Aristóteles e o poeta inglês Willian Blake, entre outros. Passa pela casa dos tios e imagina uma visita que não faz. Reflete sobre o que aspirou, realizou e não realizou, sobre os anos em paris como estudante de medicina auto-exilado. Imagina a vida pregressa de duas pessoas que vê na praia. Num pedaço de papel que arranca da carta de Deasy, anota os versos de abertura de um poema simbolista.

Stephen reflete sobre o visível e o invisível, o mundo objetivo como sinais que exigem interpretação, a transformação de tudo no tempo e no espaço, na própria mente. O grande significado aqui é a matéria primordial, a água e o símbolo a evolução e a metamorfose. Correm subliminarmente os temas da mãe, da mulher e da fertilidade. Monólogo, interior intenso (masculino).

4 Calipso

Oito horas da manhã, casa número 7 da rua Eccles, noroeste de Dublin. Leopold Bloom prepara o café da manhã para si, para a mulher e para o gato. Resolve comer rim de porco, vai ao açougue comprar. Vê uma mulher que lhe desperta devaneios. Volta para casa, recolhe a correspondência. Uma carta da filha Milly, outra de Blazes Boylan endereçada a Molly. Blazes organizou uma turnê de concertos que inclui Molly, mas Bloom desconfia que mulher o trai com Blazes. Bloom come rim tostado, vai ao banheiro, fora de casa, com um jornal. Prepara-se para ir ao enterro de um amigo, Paddy Dignam.

Este capítulo apresenta o personagem que se pode interpretar como a encarnação de Odisseu, o pai espiritual de Stephen. O monólogo interior prevalece, mas diferente, porque Bloom é um homem comum. O devaneio ocupa-lhe a mente, sugerindo temas que vão e voltam ao longo do romance, como sionismo e erotismo (os símbolos aqui são Israel, família, vagina).

5 Os lotófagos

Bloom sai de casa e anda pelas ruas de Dublin. Pensa em anúncios, ciência. Carrega uma carta que recebeu endereçada a Henry Flower (seu pseudônimo), enviada por Martha Clifford, que nunca conheceu, mas que sempre lhe escreve. Vai à Igreja, à Farmácia. Reflete sobre remédios, produtos químicos. Um conhecido pede-lhe o jornal emprestado, para verificar informações sobre corrida de cavalos.

O tema da sensualidade e da sexualidade vai se formando, com as fantasias sobre Martha. Os jogos de palavras também se estabelecem: o nome Henry Flower e Bloom remetem a florescência, o desejo sexual que aflora (a correspondência direta com Homero é lotófagos); o nome do cavalo que o amigo vai apostar é Thorowaway (jogar fora). O significado aqui é sedução e lealdade.

6 Hades

Bloom vai ao enterro de Dignam com amigos. No cemitério, conhece pessoas, entre elas o jamais identificado homem “de capa impermeável”. Reflete sobre nascimento, morte transitoriedade, o filho Rudy, o pai suicida. Participa de conversas sobre a morte que desembocam na situação da Irlanda após a morte do líder do Partido Nacionalista Irlandês, Charles Stewart Parnell.

A correspondência com Homero é o episódio da Circe, a deusa-feiticeira que aconselha Odisseu a descer aos infernos e consultar os mortos para tentar encontrar um rumo. As pessoas que Bloom conhece representam esses mortos. O significado é a descida ao nada e os símbolos o homem desconhecido e o inconsciente. Joyce denomina a técnica “incubismo”.

7 Éolo

Bloom vai à redação dos jornais onde trabalha, Freeman’s Journal e Evening Telegraph, para fechar o contrato de um anúncio. Stephen aparece para entregar a carta do diretor da escola. Um vento forte sopra quando as portas se abrem, fazendo voar papéis. Histórias ligadas ao jornalismo, discursos e política (Grã-Bretanha comparada com Roma, Israel com Irlanda), exílio. Stephen e outros vão para o bar, Bloom vai para a Biblioteca Nacional pesquisar o layout para um anúncio.

Joyce substitui o monólogo interior pela linguagem do jornalismo, com o uso abundante de manchetes. O vento representa a retórica pseudo-objetiva, transparece uma espécie de consciência coletiva. Joyce recorre à retórica, cuja origem é grega e romana. A narrativa é impessoal.

8 Os lestrigões

Bloom continua a andar por Dublin, pensando no passado: Molly, amores de Molly, nascimento e família. Avista a irmã de Stephen da rua, alimenta aves, pensa em publicidade. Encontra uma conhecida, ex-amor passageiro, que lhe conta que a Senhora Purefoy está internada na maternidade. Bloom, com fome, entra no bar David Byrne. Sai do bar, ajuda um cego a atravessar a rua.

Joyce retoma o monólogo interior para retratar Bloom como homem bondoso e solidário. O pensamento que corre quase imperceptível, como se reprimido, é a suspeita de traição de Molly com Blazes Boylan, que ele receia encontrar. O significado aqui é a melancolia. Joyce constrói o capítulo com associações de idéias.

9 Cila e Caribde

Stephen discute Shakespeare com um grupo de intelectuais, entre eles A. E., na Biblioteca Nacional. Stephen expõe sua teoria da criação literária utilizando o idealismo defendido por Mulligan para mostrar que a arte e a vida interagem. Com base na teologia, filosofia e literatura, defende que Hamlet seria o fruto de uma relação verdadeira, assim como o filho de Shakespeare, Hamnet, teria sido fruto de uma relação adúltera de Ann Hatthaeay. Mulligan aparece na biblioteca, ridiculariza da teoria de Stephen. Bloom chega e parte. Mulligan ridiculariza Bloom por ser judeu e afirma que Bloom deseja Stephen. Saem todos da biblioteca.

A narrativa adota o estilo Stephen das três primeiras partes. A ênfase na teoria de Hamlet de certa forma mina a teoria estética de Stephen em Hamlet, o príncipe teme a traição materna, mas aqui Stephen remói a traição em relação à própria mãe. Joyce parece enfatizar a função criadora da mulher, com seu amor físico e seu amor materno, o que aparece em todo o romance através do símbolo da água. Joyce sugere também a relação entre ele mesmo, como autor, e a criação de Stephen, seu alter ego, tendo do outro lado a relação pai-filho espiritual de Stephen-Bloom. A arte aqui é a literatura, a técnica a dialética, os símbolos, a juventude e a maturidade.

10 Rochedos errantes

Abundância de personagens, entre eles o padre Conmee, as imãs de Stephen e Blazes Boylan. Os acontecimentos são praticamente impossíveis de recontar com brevidade.

O episódio consiste em dezoito narrativas breves, desconectadas e sem seqüência temporal. Vários motivos se repetem, como se a narrativa principal não tivesse rumo a tomar. É a interpretação de Joyce do episódio Circe, na Odisséia de Homero, em que ela sugere a Odisseu que não tome determinado rumo. O significado é ambiente hostil, a técnica labiríntica, os símbolos homônimos, sincronizações e semelhanças. Note-se que o romance tem dezoito episódios sobre as errâncias (internas e externas) dos personagens num único dia.

11 As sereias

Bloom compra jornal, vê o carro de Blazes Boylan estacionado em frente ao hotel Ormond e desconfia que ele está lá dentro. Entra com o amigo Ritchie Goulding. Boylan flerta com as garçonetes e vai embora. Simon Dedalus, pai de Stephen, toca ao piano e canta, Ben Dollard canta uma balada sobre a revolta irlandesa. Atmosfera de nacionalismo. Bloom, alheio, pensa em Molly, escreve uma resposta à carta de Martha Cardiff. Depois sai.

O episódio compõe-se de inúmeros fragmentos que se relacionam como uma fuga. A técnica adequada às sereias é a música; daí está repleto de canto e música. Falas e associações também são arranjadas como música, algumas palavras fragmentadas a ponto de se tornarem puros sons. A narrativa lógica se dilui e a música é uma espécie de voz narradora. Resta a mente de Bloom, de novo desconfiado de que Boylan foi visitar Molly.

12 O Ciclope

Bloom dirige-se para o bar de Barney Kiernant, Tavern, onde pretende reunir com Martin Cunningham para conversar sobre assuntos da família Dignam. Lá está o personagem Cidadão, nacionalista ferrenho. Bloom entra. O Cidadão fala de pena de morte. Bloom tenta conversar com ele com jeito. O Cidadão desdenha Bloom, afirmando que a Irlanda está cheia de estrangeiros, discursa sobre a história irlandesa. Bloom fala de amor e compreensão, ciente de sua descendência judia, depois sai. Lenehan acha que o cavalo em que Bloom teria apostado (Throwaway) foi o vencedor. O cidadão se enfurece. Bloom volta e o Cidadão, violento, força Bloom a deixar o bar.

Um dos capítulos mais complexos, a narrativa é interrompida por inúmeras passagens paródicas voltadas para si mesmas, indo do discurso jurídico e lendas irlandesas, eventos sociais e religiosos a desastres da natureza. Há um narrador não identificável e outro que é o Cidadão. No paralelo com Homero, o Cidadão é o Ciclope, que vê tudo segundo um único ponto de vista, sobretudo a ordem estabelecida. Os símbolos são a nação, o estado, o fanatismo; a técnica é o gigantismo.

13 Nausícaa

Novos dublinenses aparecem na praia de Sandymount, onde Stephen caminhou às oito da manhã (agora são oito da noite): Gerty MacDowell, Edy Boardmanm e Cissy Caffrey e os irmãos desta. Gerty irrita-se com a algazarra dos meninos. Devaneia, pensa no homem que a rejeitou e em coisas religiosas. Bloom está na praia, um pouco distante. Gerty pensa nele romanticamente. Começa a queima de fogos de artifício. As amigas saem correndo, Gerty fica, insinuando-se levemente e deixando que Bloom lhe entreveja as pernas. Quando ela se vai, Bloom percebe que manca. Antes disso, Bloom já havia se masturbado. Pensa nos filhos, pensa em Gerty.

Os estilos aqui variam conforme as personagens. O de Gerty é tirado de um romance romântico. O romantismo possibilita a Joyce “revelar” o impulso sexual subjacente e o erotismo discreto. Os fogos de artifício estouram no exato momento do orgasmo de Bloom. Com a partida de Gerty, o ponto de vista narrativo volta para Bloom. A traição de Molly retorna com o canto de um cuco. O significado é a ilusão projetada; os símbolos o onanismo, a mulher, a hipocrisia; a técnica, tumescência, detumescência.

14 O gado do sol

Na maternidade do hospital de Dublin, a senhora Purefoy está em trabalho de parto. Bloom a visita. Stephen, Lenenhan, Lynch e Mulligan festejam ruidosamente. Discutem a técnica da medicina em relação ao parto malsucedido e à prevenção da gravidez. Bloom pensa no filho morto. Stephen discorre sobre literatura. Cai um temporal, que Bloom explica cientificamente. A enfermeira pede-lhes silêncio duas vezes. O menino nasce. O grupo vai embora. Stephen e Lynch vão para a zona de prostituição.

Outro episódio complexo: aos nove meses de gravidez correspondem várias vozes, estilos de literatura inglesa, linguagem simbólica, disparates, gíria e discurso religioso. A linguagem vai do primitivo à modernidade. De acordo com a visão corpórea do romance, Joyce põe na linguagem a mediação da realidade física. A técnica, como ele informou, é o “desenvolvimento embriônico”; os símbolos são a fecundação e a partogênese; a arte a medicina.

15 Circe

Meia-noite, bordel de Bella Cohen. Stephen e Lynch entram, bêbados. Bloom chega. Alucina, acossado pelas visões de Gerty, Molly, do pai e da mãe. Preso por desordem, é submetido a um julgamento, durante o qual o chamam por vários nomes. Uma prostituta lhe diz que Stephen está na sala de música. Bloom transforma-se no avô de Stephen; Stephen transforma-se num cardeal ao discutir teologia. A dona do bordel, Cohen, troca de sexo com Bloom e o submete a castigos. O espectro da mãe de Stephen aparece, ele destrói um candelabro e, com Bloom, é expulso do bordel. Na rua, soldados rasos espancam Stephen por ter ofendido o rei e o largam inconsciente na calçada. A polícia chega. Bloom resolve a situação. O filho Rudy aparece em visões.

Um episódio em que a objetividade e a subjetividade se interpõem, a alucinação substitui o realismo. Joyce chama a zona de prostituição de “cidade da noite”, uma metáfora do inconsciente, lugar propício para fantasias, pesadelos e realizações de desejos. Densamente metafórico, na diluição de fronteiras concretiza-se o encontro mais profundo de Bloom e Dedalus. A arte é a magia; os símbolos são zoologia, personificação.

16 Eumeu

Bloom leva Stephen para o abrigo de motoristas de praça, não longe da cidade da noite. Stephen encontra um amigo desempregado e recomenda procurar emprego na escola de Deasy, de onde resolveu se demitir. No abrigo, bebem café e conversam com um marinheiro, W. B. Murphy. Bloom sonha em viajar. Bloom fala do encontro com o Cidadão, mas Stephen não lhe presta atenção. Mostra a fotografia de Molly. Os dois saem do abrigo.

A narração é convencional, mas com vários estilos. Novas personagens parecem ser simuladas, como se ocultassem a identidade. O mesmo aplica-se a Stephen e Bloom. Vaguidão e incoerência permeiam o episódio. A arte é a navegação; o símbolo são marinheiros; a narrativa é senil.

17 Ítaca

Bloom leva Stephen para casa, o mesmo número 7 da rua Eccles. Como Stephen, está sem a chave da porta da frente (perdeu-a), pula a grade para entrar pela porta dos fundos, não querendo acordar Molly. Prepara um chocolate e os dois rememoram tempos passados. Arte, no caso de Stephen; ciência, no caso de Bloom. Bloom convida-o a morar com ele e Molly. Stephen entoa uma cantiga sobre uma menina judia. Bloom convida Stephen para passar a noite. Stephen recusa. Vão para o jardim e urinam, enquanto no céu passa uma estrela cadente. Stephen vai embora. Bloom volta a entrar. Guarda a carta que escreveu para Martha Cardiff numa gaveta, depara-se com coisas que lhe trazem lembranças. Repassa o dia que findou. Vai para o quarto. Sente na cama a presença de Boylan. Deita-se com a cabeça voltada para os pés de Molly, posição fetal, e dorme.

Próximo do fim, o romance parece carecer de armação. É um episódio com a técnica do catecismo (impessoal), em forma de perguntas e respostas. As respostas muito precisas e científicas (por exemplo, a reflexão sobre o complexo sistema que leva a água à torneira da cozinha de Bloom). O “fim” é o encontro de Bloom e Stephen como pai e filho espirituais (Joyce usa as composições “Stoom e Blephen”), mas também a separação um do outro, ao menos neste dia. E é um distanciamento também de Homero. O símbolo são cometas.

18 Penélope

Na cama, Molly reflete sobre o marido, o encontro com Boylan, o passado, as esperanças. Suspeita que Bloom tenha uma amante, pensa nos próprios amantes idos. Aspira um grande futuro. Pensa em Gibraltar, na filha. É interrompida duas vezes, uma por um apito de trem, outra pelo início da menstruação. Pensa no médico, Stephen, no filho morto e em Bloom. O relógio toca. Lembra-se de quando fez sexo com Bloom pela primeira vez.

Este longo e último episodio, sem pontuação gráfica, é um monólogo interior fragmentado, com frase ligadas ininterruptamente por associações. Há o infinito, a intemporalidade, a ausência de identificação. Segundo o próprio Joyce as oito frases de Molly começam e terminam com “sim” porque são a afirmação do “eterno feminino”: “Mulher, sou a carne que sempre afirma”.

Ligações a esta post:
>>> Acesse a primeira parte do dossiê  aqui.
>>> A segunda parte, aqui.
>>> E a terceira parte, aqui.

* O texto na íntegra é da Revista Entrelivros, ano I, n. 2, p. 40-44.

Comentários

Fabio Castilho disse…
Adorei essa explicação e roteiro. Quando fiz o Curso de Letras, tive uma disciplina voltada para Joyce e Falkner. Infelizmente, o curso era noturno e era uma epoca em que perdia muitas aulas por causa da escala no trabalho. So li alguns trechos do Ulisses com intuito de concluir a disciplina mesmo. Hoje estou relendo. E com seu material, posso ter uma nova percepção sobre a magnitude dessa obra. Pra mim, Ulisses do Joyce, e no Caminho de Swan do Proust foram os fortes precursores do movimento beatnik.
Unknown disse…
Muito bom este roteiro, dá vontade de reler o mais famoso e badalado romance do século 20. Li a tradução do Houaiss na década de 80, muitas vezes pensei em desistir, muita confusão em cada capítulo. Porém, insisti e consegui chegar ao final. Mas com este roteiro de apoio, quem sabe, 40 anos depois animo-me a lê-lo ? Muito obrigado por este roteiro bem esclarecedor e repleto de balizas.

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