Os corvos, a noite e o sol nos punhos fechados


Por Tiago D. Oliveira     



A poesia tem a capacidade de traduzir os dias, não há resposta mais honesta do que a repatriação dos significados. Cada leitura é dona de um mundo. O olhar do poeta é um elemento motivador para a potência de qualquer livro. Desde Primeiro as coisas morrem (2004) e Nenhum nome onde morar (2014), venho guardando versos que se escondem sem que percebesse, o que só agora noto de um rico estranhamento, depois da leitura de corvos contra a noite, novo livro de poemas de Diego Vinhas, editado pela 7 Letras neste ano profundo de 2020. Lembro desse estranhamento que ficou exatamente depois de seu poema “Benfica”, lido na internet há alguns anos;  caminhar/ por uma cidade/ desconhecida é tomar a vida/ de alguém,/ emprestada, plantei desconfianças diante de um mundo que não acredita na força tradutória da poesia. Diego, em sua nova produção, reafirma ainda mais afinado com seu tempo, o papel de um poeta que não afrouxa as rédeas diante da ribanceira que se tornou a vida neste ano de 2020, os mortos caminham com pressa (Ruído Branco), a sensação é a de que estamos trocando a chance de uma evolução paulatina por um retardo espiritual que se espraia diariamente em todas as ruelas da sociedade. A culminação de tanto desarranjo vem sendo metrificada naturalmente como um balão a receber o ar até o seu limite, não é ainda a revolta. mas não é mais a paz (Panfleto). O estranhamento aqui cresce como movimento de reação ao que a poesia provoca. Assumir um papel diante do mundo é agora muito mais do que necessário, é vital.

O tempo projetado sobre um país que vem sendo maculado é exaurido na imagem da criança, um país/ onde o filho que não tive/ terá que crescer (Antilírio), assim o futuro é tocado com os pés cravados no chão, quero meu filho livre/ das garras da esperança (Sentinela), há uma lucidez que delineia todo o livro. A poesia aqui não se coloca a romantizar a realidade, a reflexão cresce nua, a redução de um país/ ao plural de pó (Babel), enquanto a percepção sobre os discursos vislumbrados na mídia ou encontrados facilmente nas ruas, ilustra lugares comuns da fala nesta geografia, lamentamos profundamente o ocorrido / trata-se de um caso isolado / essa vitória é de cada um de vocês (Coletiva), frases que se engessaram socialmente e vulgarizam a necessidade de uso. Este é um ponto crucial para a virada que propositadamente o poeta coloca, tem que bater mesmo/ tem que virar comida de peixe/ tem que levar para casa se tem dó/ tem que mirar na cara/ tem que matar (Lei do abate), lugares comuns no discurso popular que são uma fotografia da manutenção do ódio que defende a alienação e violência que insistem em nos definir. O presente, o medo de nascença e/ o medo empírico/ em surto de silêncio (Doutrina), pouco a pouco vai entranhando como cultura e a imagem que fica ao fundo é a de uma sociedade que padece, o poeta registra em versos a imagem da dor, acostumada, cegando o caminho da saída, a morte, essa grande festa (Tordestrieb).

Um dos pontos altos é a sensação de que o tempo é um agente promovedor das várias camadas estruturais do livro. Um tempo realizado pelo poeta, que não deseja fugir dele:

na rua
alguma latência
que se tenta ocupar à força

a repetir os nomes

P.S.A.N.,47, líder comunitário – presente
F.G.P. dos S., 36, quilombola – presente
C. dos S. M., 40, sindicalista – presente
A. D. de S., 43, pedreiro – presente
M. F., 38, vereadora e feminista – presente               
    
A localização imediata de fatos de um Brasil contemporâneo é barro para a poesia de Diego Vinhas, que cresce dentro da construção do leitor através de um argumento proativo:

as mortes
únicas e iguais

presente

desse tempo esticado

ontem           amanhã
           hoje
não sei  
      
O poeta acaba por tocar em locais ainda sem resposta para a sociedade brasileira [o tempo guarda/comprova], mas acima de tudo ele registra em sua poesia um campo de reflexão humana sobre este tempo atual que ficará para as outras gerações, o que provoca um contributo valoroso que a poesia presta para o mundo. Estar vivo é tomar partido e acreditar em um caminho. A leitura de mundo aqui também se funde a toda uma bagagem literária trazida por Vinhas, o que intertextualiza com seus versos enquanto homenageia grandes referências, como Franz Kafka, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Machado de Assis, a bíblia, Legião Urbana e outros. Arrisco-me a apontar para a maior de todas as referências presente, a própria literatura em seu alcance alegórico e representativo, quando o poeta, em seu desbaste à semântica lírica, resenha as consequências que carrega,  só poderia/ agora/ na ágora/ do corpo/ replicar com/ ódio, explicita um mecanismo de defesa que localiza a troca de dor, dor pela dor somos todos náufragos esperando o socorro, até que novamente o sol aconteça e a força do inevitável desconhecido dia reescreva tudo de novo. O poeta compreendeu sobre resistir, trigo para a transformação, é como ter o sol nos punhos fechados.               

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