Ler o Dom Quixote

Por Pedro Fernandes




Depois de Crime e castigo, de Dostoiévski, essa me foi a obra mais cara à leitura, entretanto, me parece ser essa a característica do clássico: a de marcar seu leitor por todas as vias possíveis, como se a leitura, para ser tida realmente como tal, devesse nos jogar no seu calabouço e de lá nos arrastar aos poucos, trazendo-nos, dessa experiência, carregados de uma nova camada de humanidade agarrada à nossa figura.

Como disse certa vez, num texto anterior a este sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, renovo aquelas imagens de grande teatro para o clássico de Cervantes. Composto numa época de transição, clara sátira ao fadado romance de cavalaria, entretanto, sem reduzir-se a tanto, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha nos coloca diante de uma grande arena, que é a Europa medieval povoada de tipos que vão desde o mais popular e picaresco ao sofisticado e grave; Dom Quixote é, sem dúvidas, uma grande aventura da linguagem, conforme entendeu Michel Foucault, e da tênue relação entre ficção e realidade. Tudo entrançado pelo fio do humor, que, não são raras as vezes que o leitor deverá rir-se com as ‘des-aventuras’ do Quixote e de seu escudeiro.

Muitas são as cenas e episódios possíveis de destaque. Fora a clássica cena da luta do Engenhoso Fidalgo com os moinhos de vento e da de suas loucuras e cavalhadas em penitência a sua Dulcineia Del Toboso, não dá para deixar de mencionar a cena da queima dos livros da biblioteca do D. Quixote, ainda no início da primeira parte do livro, como uma das mais significativas.

Os livros, em sua grande maioria de cavalaria, são os acusados de serem os que haviam levado o sossegado Alonso Quijano, o Bom, à loucura da cavalaria andante; na cena a sobrinha, a ama e o padre, figuras que moravam junto com D. Quixote, dão corda a empreitada do fim dos tais. Longe de se reduzir à opinião do próprio Cervantes, que era o do fim daquela “forma de literatura”, muito em voga na época, a cena que finda na queima dos livros tem em si uma série de sentidos. Primeiro, ela é empreendida por duas mulheres, as que na época não tinham acesso à leitura dado os meios de cerceamento da Igreja e do Estado, muito bem representados aqui na figura do padre, que é quem sentencia e quem julga o que é boa prosa e o que não é. Em seu juízo, as ações aqui processadas vêm denunciar os espartilhos amarrados com todas as formas de censura, principalmente a empregada a torto e a direito pela Igreja, que na época, sob a instituição da Inquisição juntamente com o controle do Estado tinha o interesse de julgar o que seria propício e adequado ao entretenimento ou ao desvirtuamento dos leitores. Por extensão, claro está uma denúncia ao crime de silenciamento e contra a memória, afinal, mesmo não vendo Cervantes com bons olhos a extensa produção de livros de cavalaria, é da leitura deles, e isso é claro no intenso diálogo intertextual que essa obra mantém com as do gênero, que ele escreve o Dom Quixote; certamente, não tinha ele o interesse de uma caça e queima no plano de uma realidade empírica. Além do mais, a própria biologia do Quixote vem corroborar para essa interpretação, bastando que se cite que a obra foi, por várias vezes, censurada pelos inquisidores e para ter sua circulação passou ainda pelo crivo de uma ‘licença’ concedida pela Coroa. O leitor também há de notar o cuidado, exacerbado até, que a novela tem, em todo seu decorrer, de louvar o cristianismo frente a outros credos, como o Islã e demonstrar o caráter de respeito para com o Império, desde as extensivas dedicatórias postas na abertura de ambas as partes da obra.

É também na cena de queima dos livros que se apresenta o tão conturbado debate instalado desde Platão e seu Banquete: o da relação entre prosa e poesia, de que esta estaria mais para o fingimento (fingimento que nos conhecidos versos do português Fernando Pessoa, contemporaneamente, viria ser ironizado: “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”, instalando uma poética do fingimento necessário para ser-se poeta), enquanto que a prosa teria um compromisso com o real empírico, compromisso que seria levado a fundo quando mais tarde se consolidaria aquilo que a historiografia literária chama de estética realista.

Ainda nessa cena outro debate se é instalado, um debate que remonta desde a invenção da imprensa por Gutenberg, quando os livros passaram a ser produzidos em maior escala e, destarte, a constituir um universo simbólico na esfera social, que é, o nem sempre harmonioso em torno da relação entre a crítica e o texto literário. Isso quando do ‘julgamento’ pelo padre de uma obra do próprio Cervantes. É nesse momento também que nos é possível tirar encaminhamentos para um conceito, que só viria se formar contemporaneamente nos estudos do texto, que é o de metatexto – uma vez que é o próprio autor que, pela boca da personagem, tenciona uma reflexão em torno do próprio texto. Haverá vários outros momentos dessa obra em que se processam tais relações, principalmente, quando na segunda parte, que Cervantes já a escreve bem depois de publicada a primeira. Remonte-se para o caso os vários momentos em que são as próprias personagens que se postam à leitura da primeira parte da obra.

Impossível de não lembrar aqui de outra queima de livros, a do filme Fahrenheit 415, e das manobras operadas pela Igreja em O nome da rosa, de Umberto Eco.

No mais, acho que devo reparar na capacidade que tem Dom Quixote de, com toda a sua fantasia e loucura, envolver, por elas mesmas, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, todos os que dele estão próximos ou se aproximem: a mentira forjada pela sobrinha e pela ama, quando o Quixote dá contas de que sua biblioteca desaparecera, é um bom exemplo disso; cito ainda as proezas encenadas pelo duque e sua corte, na segunda parte da obra e pergunto se há loucura maior que a de dar corda e concretizar, como se fossem fatos reais, todas as façanhas imaginárias do Cavaleiro da Triste Figura; e, não posso deixar de citar a figura maior nesse jogo real-imaginário na novela, a do Sancho Pança, que ao se deixar levar pela ambição do governo de uma ilha, pactua, mesmo que, a contra-gosto algumas vezes, de todas as des-aventuras de seu amo. E, para finalizar essa galeria, relembro a armação fabricada pelo bacharel Sansão Carrasco que é impelido pela sobrinha, pela ama e pelo padre, sonhadores com a volta do fidalgo para o sossego de casa. É essa a cena que desencadeia o final do Dom Quixote, em que ele, derrotado nessa última batalha, já no seu leito de morte, renega sua condição de cavaleiro, esquecendo-se mesmo de todo seu projeto ‘pastoril’ planejado com Sancho Pança na volta para sua terra. Estratégia ou não do narrador cervantino, essa cena vem inscrever para os anais da literatura a imortalidade da personagem, uma vez que nesse seu ato de negação reside a esfera de uma auto-afirmação enquanto cavaleiro andante.

São por cenas como essas aqui citadas que a leitura do Dom Quixote diretamente reitera o papel da obra de arte literária, o de recuperar em nós a necessidade de imaginação e fantasia criadora, elementos fundamentais para não perdermos essa essência do que somos, humanos, ainda mais num mundo como o contemporâneo cujas forças de alienação e maquinização dos sujeitos são tão vibrantes.

* Este texto foi publicado no caderno Domingo do jornal De Fato, 15 de novembro de 2009.

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