“O cortiço” como expositor das mazelas e injustiças sociais

Por Rafael Kafka

Cena de O cortiço. O livro de Aluísio Azevedo foi adaptado por Francisco Ramalho Jr. em 1978.


O cortiço, de Aluísio de Azevedo, é a obra mais importante do Naturalismo brasileiro. Não fica difícil de entendermos isso após uma leitura atenta do romance, o qual preza por um ritmo dinâmico e ao mesmo tempo minucioso em seu enredo. Além disso, é um dos primeiros romances brasileiros a usar um foco narrativo que se centra na coletividade de um recinto, denunciando as mazelas sociais do lugar, ligadas à ganância de um homem, João Romão, o qual decide usar o mercado imobiliário voltado para camadas mais baixas para melhorar suas condições econômicas.

Uma das críticas sempre feitas ao Naturalismo é o seu aspecto determinista, mostrando como o meio afeta a condição humana tornando-a em algo monstruoso. Todavia, após a leitura de A condição humana, de Hannah Arent, penso de forma um pouco diferente desse juízo de valor e vejo no Naturalismo a primeira forma mais contundente, ao menos em nosso território, de romances-denúncia, os quais ficarão populares com o modernismo da segunda geração.

O cortiço não é um livro sobre como seres se tornam podres quando vivem em um ambiente de extrema pobreza. É uma denúncia de como a falta de dignidade produz condições ideais para a ocorrência de crimes de toda a ordem ao mesmo tempo que traça um rico panorama social das camadas mais baixas da sociedade brasileira, composta quase que totalmente por pessoas negras e miscigenadas. Nesse sentido, o foco narrativo do romance de Azevedo se destaca, pois procura mostrar de forma plena a concomitância de uma série de situações, adiantando alguns experimentos narrativos populares no século XX que marcarão uma aproximação da literatura com o cinema.

“E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de serviço essa madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a ninguém, nem mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de mascates, o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias, altercando e praguejando em italiano”.

De certa forma, podemos dizer que não existe em O cortiço um protagonista, um sujeito o qual foca as atenções do romance. Muitos consideram o cortiço São Romão, onde se passa quase todo o romance, como tal protagonista, mas a meu ver ele seria a injustiça social somada aos interesses da especulação imobiliária, jogando pobre sem condições de vida subumanas, que por conseguinte se afundam em um regime de trabalho e de vida massacrantes, regados ao samba dos domingos e a eventuais conflitos motivados pelos mais variados pretextos.

A pobreza se revela, então, não como causa das mazelas humanas e sociais mostradas no enredo, mas como uma forma de revelar com nitidez o lado cruel e animalesco dos seres humanos. Isso se evidencia no interessante contraste criado pelo autor ao colocar, no lado do cortiço, um sobrado pertencente a Miranda, homem que produz grande rivalidade com  Romão por conta de seu empreendimento residencial. Esse contraste além de revelar cenas típicas das grandes cidades, com a pobreza vivendo lado a lado em uma estranha harmonia com a riqueza, revela também como as mazelas morais e animalescas perturbam a classe mais abastada. A diferença é haver em tais classes um verniz de conveniências sociais as quais bem disfarçam seus vícios e conflitos internos.

Se o Realismo foca mais em criticar os jogos de aparência dessa classe burguesa, o Naturalismo expõe a animália que toma conta dos mais pobres por conta das condições sociais péssimas nas quais vivem. Aluísio consegue em seu romance uma boa síntese dos dois movimentos, mostrando tanto os jogos de aparência dos mais ricos quanto a violência inerente e descontraída, por mais paradoxal que isso soe, da camada social mais humilde. Ainda assim, em determinados momentos, o autor não terá escrúpulos em fixar sua pena no lado selvagem também existente no modo de ser dos mais bem localizados na pirâmide social.

“Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada: descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio”. 

Na passagem destacada vemos dois elementos interessantes: o desvelar de um lado oculto a causar susto na pessoa de Miranda, que uma bela noite, sem ter uma criada com quem pudesse saciar os seus desejos sexuais, decide-se a usar a esposa, Estela, a qual há muito tempo vinha praticando todos os tipos de adultério para com o aspirante a fidalgo. Ao lado desse desvelar, vemos o segundo elemento: as metáforas que intensificam a dimensão animalesca dos seres humanos, envolvidos em luta sexual similar ao dos animais selvagens. Por trás de todo esse tipo de exposição, podemos discutir a existência de um essencialismo a expor uma forma de ser imutável, a ser humano animalizado disfarçado em suas convenções sociais, ou um sistema social que reduz pessoas a jogos de aparência e de interesse ou ao descaso público.

Durante muito tempo, resisti em ler um romance naturalista e este eu li mais por necessidade pedagógica. Porém, se evidenciou em minha leitura uma crítica ao próprio sistema social capitalista vigente, que segrega pessoas na forma de espaços permitidos e proibidos dentro das cidades. Por mais que tenha sido escrita no século XIX, cortiço revela uma série de cenas e comportamentos os quais são vistos hoje em qualquer local de cidades de médio ou grande porte. Porém, ao citar Hannah Arendt acima, quis me isentar da acusação de defender a tese do meio como determinador do ser.

Hannah diz em A condição humana que produzimos algo e somos influenciados por esse algo. A isso a ela dá o nome de mundanidade. Mas tal determinação não se dá de modo absoluto e a maldade que parece impregnar diversos personagens no decorrer do romance não é originária per si do cortiço e sim de projetos de vida. Exemplo disso é Pombinha, moça virginal que um belo dia é seduzida por uma prostituta de luxo e, quando atinge finalmente o ponto de suas regras virem, descobre o quão patético é o modo de ser dos homens, sempre a sofrerem por causa de sexo e das mulheres. Tal descoberta a levará a abandonar a ideia do casamento romântico, afundando-se de vez em uma vida de liberdade sexual, mesmo que na forma clichê da prostituta de luxo.

“Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu, endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam”.

Outro ponto interessante é a paixão de Jerônimo por Rita Baiana, reforço dentro do enredo do velho mito da mulher negra que com seus encantos, sua “cor do pecado” é capaz de levar um homem nobre, chegado ao cortiço para trabalhar em suas obras, ao mais profundo descontrole, deixando de lado esposa e filha. Jerônimo chega mesmo a se envolver em conflitos diretos com Firmo, antigo companheiro sexual de Rita. Após a saída do hospital, para onde fora enviado após os ferimentos de um primeiro conflito, Jerônimo se une a dois colegas para matar o negro e assim ficar com a mulata para si.

Mais uma cena a qual poderia ser vista como justificativa do meio determinando a condição humana em todos os seus atos. Mas aqui fica mais evidente a violência a qual rege os atos das pessoas mais humildes em um universo urbano abandonado por políticas públicas e cuidados mínimos. A polícia, quando surge, é vista como inimiga e rechaçada pelos moradores, que muitos maus tratos sofreram em suas mãos já.

Desse modo, fica evidente a comparação com outro grande romance brasileiro: Cidade de Deus, cujo foco narrativo é multiplanar por mostrar todas as situações possíveis as quais abarcam o fenômeno da violência social. Mesmo o romance de Aluísio não possuindo o trabalho de pesquisa que Paulo Lins fez para seu romance e possuindo falas que geram uma ambiguidade racista problemática em certos momentos, O cortiço é um panorama interessante do surgimento da cidade como nova forma de organização social, na qual convivemos diariamente com diversos seres com os quais não temos interação profunda, marcada por isso pela presença constante dos conflitos.

Além disso, O cortiço como romance-denúncia mostra a cidade como espaço crivado de conflitos e contradições, como o sobrado ao lado do Cortiço, cujo dono, João Romão, começa também a cobiçar a nobreza não mais desejando apenas em trabalhar e guardar dinheiro, em outro claro exemplo de como a protagonista do romance são mesmo a injustiça e cobiça sociais geradas pelo capitalismo pós-revolução industrial. A cidade, com seus espaços precários e fechados para os mais pobres, que vivem em regime de violência introjetada e uma alegria resistente de domingo, é um espaço a exibir as marcas da luta de classes e da justiça social nos prédios feios e belos que por ali residem, onde moram seres preocupados demais com seus jogos de interesse – como o parasita Botelho – ou tão somente preocupados em sobreviver, como os milhares moradores do cortiço, que se desdobram em lavar roupa, quebrar pedras e salvar seus objetos de incêndios criminosos, sem esperança ou vislumbre algum de outro modo de existir possível.

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