Oito poemas de James Wright em “O ramo não se irá quebrar” (1963)

Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)



 
COMEÇA O OUTONO EM MARTINS FERRY, OHIO
 
No estádio de futebol do Liceu Shreve,
Penso nos polacos tratando das suas grandes cervejas em Tiltonsville,
E nos rostos cinzentos dos negros no alto-forno de Benwood,
E no guarda-nocturno rebentado de Wheeling Steel,
Sonhando com heróis.
 
Todos os pais orgulhosos têm vergonha de ir para casa.
As suas mulheres cacarejam como frangos esfomeados,
Morrendo por amor.
 
Por isso,
Os seus filhos crescem suicidamente belos
Nos começos de Outubro,
E terrivelmente galopam contra os corpos uns dos outros.
 
 
DEITADO NUMA CAMA DE REDE NA QUINTA DE WILLIAM DUFFY EM PINE ISLAND, MINNESOTA
 
Por cima da minha cabeça, vejo a borboleta de bronze
Dormindo no tronco negro,
Agitando-se como uma folha na sombra verde.
Lá em baixo, na ravina, detrás da casa vazia,
Os sinos das vacas seguem-se uns aos outros
Até aos longes da tarde.
À minha direita,
Num campo de luz, entre dois pinheiros,
Os excrementos de cavalo do ano passado
Acendem-se em pedras doiradas.
Recosto-me, enquanto o entardecer chega e escurece.
Um falcão passa, a flutuar, procurando casa.
Desperdicei a minha vida.
 
 
DUAS RESSACAS
(A Segunda: Tento Despertar e de Novo o Mundo Saudar)
 
Num pinheiro,
A poucos metros de distância do peitoril da minha janela,
Um cintilante gaio-azul vai saltando para cima e para baixo, para cima e para baixo,
Num ramo.
Rio, enquanto o observo abandonado
A um completo deleite, sabendo tão bem quanto eu
Que o ramo não se irá quebrar.
 
 
DEPRIMIDO POR UM LIVRO DE MÁ POESIA, CAMINHO ATÉ UM PASTO ABANDONADO E CONVIDO OS INSECTOS A JUNTAREM-SE A MIM
 
Aliviado, deixo o livro cair para trás duma pedra.
Trepo a uma pequena elevação ervada.
Não desejo perturbar as formigas
Que em fila única sobem pelo poste da cerca,
Levando pequenas pétalas brancas,
Projectando sombras tão frágeis que consigo ver através delas.
Fecho os olhos por um momento e escuto.
Os velhos gafanhotos
Estão cansados, saltam pesadamente, agora,
As suas coxas estão esgotadas.
Quero ouvi-los, têm sons diáfanos a fazer.
Então, docemente, nos áceres distantes, um grilo negro
Começa a sua canção.
 
 
COMEÇO
 
A lua solta uma ou duas penas no terreiro.
O trigo negro escuta.
Fica quieto.
Agora.
Ali estão eles, a prole lunar, experimentando
As suas asas.
Entre árvores, uma mulher esguia ergue a adorável sombra
Do seu rosto, e agora avança no ar, agora desaparece
Por completo, no ar.
Permaneço só, junto duma velha árvore, não me atrevo a respirar
Ou mexer.
Escuto.
O trigo inclina-se em direcção à sua própria treva,
E eu inclino-me na direcção da minha.
 
 
DE VOLTA À PROVÍNCIA
 
A casa branca está silenciosa.
Os amigos ainda não conseguem ouvir-me.
O pica-pau que vive na árvore despida, na borda do terreno,
Pica uma só vez, e é por um tempo imenso.
Permaneço quieto no fim da tarde.
O meu rosto é levado a afastar-se do sol.
Um cavalo pasteja na minha longa sombra.
 
 
UMA ORAÇÃO PARA FUGIR AO MERCADO
 
Renuncio à cegueira das revistas,
Quero deitar-me debaixo duma árvore.
É este o único dever que não é morte.
É esta a eterna felicidade
Dos ventos breves.
Um faisão agita-se; viro-me,
Apenas para o ver desaparecer na orla húmida
Da estrada.
 
 
UMA BÊNÇÃO
 
Logo à saída da autoestrada para Rochester, Minnesota,
O crepúsculo avança suavemente pelas ervas.
E os olhos daqueles dois póneis índios
Enegrecem com benevolência.
De boa vontade saíram de perto dos salgueiros
Para cumprimentar o meu amigo e eu.
Passámos sobre o arame farpado para o campo
Onde estiveram a pastar o dia inteiro, sozinhos.
Agitam-se, tensos, mal conseguem conter a sua felicidade
Por termos chegado.
Timidamente curvam as cabeças, como cisnes molhados. Amam-se mutuamente.
Não há solidão como a sua.
De novo em casa,
Começam por mastigar os novos tufos da primavera, na escuridão.
Gostaria de ter o mais esguio em meus braços,
O que a mim se dirigiu
E o seu nariz esfregou na minha mão esquerda.
Ela é preta e branca,
A sua crina cai selvagem sobre a testa,
E a brisa suave leva-me a acariciar a sua longa orelha,
Tão delicada como a pele no pulso duma rapariga.
De súbito, percebo
Que se saísse do meu corpo
Abriria em flor.
 
 
––––––

James Arlington Wright nasceu em dezembro de 1927 na pequena localidade de Martins Ferry, no estado norte-americano do Ohio.

Com origens humildes, sendo o pai operário numa fábrica de vidro e a mãe funcionária numa lavandaria, Wright teve uma infância relativamente normal e tranquila numa pequena vila prestes a experimentar as agruras do declínio industrial. Chegando à adolescência, começaram a manifestar-se os primeiros sinais das perturbações de saúde que o atormentariam até ao dia da morte. Teria, portanto, cerca de dezasseis anos quando sofreu o primeiro colapso nervoso — e muitos outros se seguiriam no decorrer dos anos. Como posteriormente se descobriu, Wright sofria de bipolaridade, o que justifica os vários episódios depressivos que registou ao longo do tempo. Chegou, inclusive, a ser submetido às controversas, e certamente detestáveis, sessões de electrochoques.

A conjectura global não seria favorável àqueles de coração mais sensível, é preciso esclarecer. Afinal, estávamos em plena IIª Guerra Mundial aquando da ocorrência desses episódios de ansiedade extrema. Mesmo que as causas mais comuns sejam genéticas ou simplesmente biológicas, não se descure a pressão do meio-ambiente ou a conjectura do momento presente.

Apesar do conflito ter já entrado na fase final, Wright atinge a maioridade ainda a tempo de dar o seu contributo. Assim que termina o liceu, alista-se no Exército e participa na invasão americana ao Japão. Regressa incólume, mas as feridas emocionais nem sempre deixam uma cicatriz palpável, sequer visível.

Embora os pais possuíssem uma escolaridade limitada, e bem se sabe que, em termos práticos, instrução académica raramente superará a sabedoria de “vida vivida”, o recém-chegado aspirante a poeta continuará a investir na sua formação. Ingressa numa faculdade privada de artes, no seu estado de origem, e aí, sob a alçada do professor e autor John Crowe, publica os primeiros poemas na revista por este fundada.

Termina o curso em 1952, casa com uma conterrânea e parte para Viena, Áustria, onde vive durante um ano. O primeiro filho nascerá nessa célebre cidade europeia. De volta aos Estados Unidos, realiza um doutoramento na Universidade de Washington, sendo colega doutros poetas que não tardariam a ver o seu talento validado, como Stanley Kunitz.   

A primeira aparição de maior impacto na cena literária dá-se em 1957 com a edição do primeiro livro, The Green Wall. A sua poesia era, nesses tempos primeiros, bastante formal, respeitando ritmo e rima, e debruçava-se sobre diversas trivialidades: memórias, pensamentos, contemplações. Certos ecos do simbolismo e surrealismo podiam ser sentidos nesses poemas que exalavam já um perfume muito próprio, fruto da visão que o autor lhes emprestava. Foi o suficiente para captar a atenção do público e da crítica, tendo merecido o prestigiante Yale Younger Poets Prize, dedicado, precisamente, aos jovens poetas na sua rampa de lançamento.

Segue-se um outro livro, em 1959, a que chamou Saint Judas, mas ainda nos parâmetros do anterior. A verdadeira cisão na sua temática e estilo (sobretudo este) dá-se com a obra seguinte, aquela que escolhemos para esta edição. Nesse período, inícios da década de sessenta, Wright recebe fortes influências dos poetas surrealistas de língua espanhola. Eram autores que, entre muitos outros de diversas origens e estilos, colectava e traduzia, juntamente com Robert Bly, seu amigo de longa data, também poeta, para as edições da revista The Fifties (mais tarde The Sixties), uma publicação de influência notória à época.

Nasce em 1963 este The Branch Will Not Break, obra que, curiosamente, o coloca num movimento de ruptura em relação às tendências então em voga, ditadas pela famigerada Geração Beat e pela notória Escola de Nova Iorque. Fascinado pelas novas influências, às quais devemos acrescentar René Char, que igualmente traduziu, Wright abandona a rima e as exigências métricas, adoptando de braços abertos o verso livre, ao qual confere um enfoque claro e profundo. A sua perspectiva do mundo e de todas as coisas envolventes é singular, e agora consegue passá-la aos leitores sem os entraves formais nem abdicar da beleza peculiar que o fascínio do momento e do mundo natural parecia instigar em si. Tanto inclui movimentos cénicos no corpo do poema como o compõe com a elegância dum pintor inspirado. Apresentando tendências regionalistas, numa linguagem tendencialmente simples, mas forte, acaba por transpor toda a região natal, o Midwest, para a própria poesia — oferecendo imagens dóceis duma paisagem decerto sombria e desolada, sendo aqueles os duros tempos pós-industriais.  

Do ponto de vista técnico, foi um inovador. É curiosa a escolha de títulos longos, lembrando os poemas dos grandes mestres chineses da antiguidade, também uma influência sua, mas há que sublinhar os versos de abertura e de encerramento, carregados de sentido e emoção, talvez para compensar a ausência musical criada pela erradicação da rima. Nem sempre ambos coincidem num poema, mas há preferência para dotar dum sentido forte uma ou outra destas linhas, concedendo ao poema o perfume que o seu autor desejaria oferecer — por vezes um silêncio contemplativo, noutros uma exaltação do momento vivido.   

São retalhos breves de pessoas, paisagens, histórias, instantes e acontecimentos banais que merecem o toque da sua pena. Muitas vezes, são os proscritos do sonho americano, os filhos menores de Deus, a receber a sua melhor atenção. Talvez ele próprio se revisse neles, de certo modo. É um facto, já o sabemos, que a sua vida foi marcada por várias perturbações do foro mental, também agravadas pelo seu alcoolismo inveterado, mas ainda assim os poemas conseguem oferecer uma sólida fé na humanidade e uma certeza do melhor desfecho possível para todas as atribulações. Não obstante o negrume que sentia, e a turbulência emocional que amiúde o afectava, Wright conseguia tecer uma poesia cintilante e positiva, plena de esperança (veja-se o título da obra seleccionada). Sempre com um grande foco na imagem, James Wright tornou-se num dos mais emblemáticos — e brilhantes — executores do género Deep Image, livremente traduzido por “Imagem Profunda”. Não nos equivoquemos: uma qualquer colectânea de poesia norte-americana do século XX que deseje merecer o epíteto de competente, apresentará, sem qualquer dúvida, dois ou três poemas de James Wright.

Em 1972, no seguimento do seu Collected Poems, vence o prémio Pulitzer. Curiosamente, também o filho, em 2004, terá o seu nome escrito na lista de honra dos vencedores do galardão. Até hoje, foi a primeira e única vez que pai e filho lograram obter tamanha distinção. Cinco anos depois, sai To A Blossoming Pear Tree, aquele que seria o seu último livro editado em vida.  

Intenso fumador de décadas, Wright viu ser-lhe devolvida a cortesia pelos imensos cigarros que saboreou. Em finais de 1979, foi diagnosticado com um cancro na língua. Poucos meses depois, em março de 1980, viria a falecer. Contava apenas cinquenta e dois anos de idade. Posteriormente, em honra da memória e legado do poeta, Martins Ferry passou a organizar um festival de poesia. Durou pouco mais de vinte e cinco anos, até chegar a um fim abrupto. Felizmente, em 2018 a iniciativa foi retomada pela Universidade do Ohio.
 
 
Notas:
Seleção e versões de a partir dos originais compilados em James Wright — Selected Poems (Farrar, Straus and Giroux e Wesleyan University Press, 2005)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #582

Boletim Letras 360º #576

Boletim Letras 360º #581

Os dias perfeitos, de Jacobo Bergareche

Sete poemas de Miguel Torga

Memória de elefante, de António Lobo Antunes