Sylvia Plath, sessenta anos presa em sua redoma de vidro

Por Marta Ailouti 

Sylvia Plath em Paris, 1956. Arquivo Lilly Library


Em 24 de agosto de 1953, Aurelia Schober foi à delegacia para relatar com preocupação o desaparecimento de sua filha, Sylvia Plath (Boston, 1932-Londres, 1963), uma jovem brilhante, admitida no Smith College, a universidade de artes liberais para mulheres em Massachusetts; ela tinha acabado de passar um mês agitado em Nova York depois de receber uma bolsa como estagiária da revista Mademoiselle.

“Para resumir minha reação ante meus problemas mais imediatos — explicaria mais tarde numa carta a um amigo que a sua mãe nunca chegou a enviar —, o caso é que no início de julho decidi poupar algumas centenas de dólares ficando em casa para escrever e aprender taquigrafia, esquecendo-me da escola de verão. Ou seja, procurei reduzir gastos e ser criativa, já sabe. A verdade é que já tinha a certeza de que conseguiria frequentar o curso de criação literária de Frank O’Connor em Harvard, mas aparentemente vários milhares de outros escritores muito brilhantes decidiram o mesmo e eu não consegui. Desanimada, decidi que, se não conseguisse escrever sozinha, não valeria nada, e descobri que não apenas não consegui aprender um único sinal taquigráfico, mas também me vi no mundo das letras, sem nada a dizer; porque era uma pessoa estéril, vazia, sem experiência de vida nem conhecimento, e sem nenhuma cultura literária.”¹

A mãe de Plath, vendo a filha visivelmente afetada por aquela rejeição — e depois dela lhe mostrar vários cortes nas pernas — levou-a a diversas consultas psiquiátricas, onde foi submetida a um tratamento de eletrochoque que, longe de ajudá-la, traumatizou-a e reprimiu ainda mais a jovem escritora. “Logo eu só precisava decidir o momento exato e o método que usaria para cometer suicídio”, continuava em sua carta. Felizmente, essa tentativa falhou. Foi seu irmão Warren quem, após ouvir um leve murmúrio de socorro, a encontrou três dias depois, praticamente inconsciente, mas ainda viva, num canto do porão de sua casa, onde ela permanecia sem se mover desde 72 horas antes de ter ingerido um frasco inteiro de pílulas para dormir.

No verão em que eletrocutaram os Rosenberg

“Era um verão estranho, sufocante, o verão em que eletrocutaram os Rosenberg, e eu não sabia o que estava fazendo em Nova York”, narrou não em vão quase uma década depois em seu único romance, A redoma de vidro. A história de uma jovem, Esther Greenwood — alter ego da própria escritora — com uma carreira promissora nos Estados Unidos da década de 1950 que, aos poucos, se percebe como estava ficando sem opções, até se sentir sufocada no interior da sua própria bolha. Como se o próprio talento de Plath, ansioso por se expandir e confrontado com a impossibilidade de o fazer num mundo dominado por homens, tivesse de alguma forma acabado por sufocá-la.²

Mas aquele verão, entre dias exigentes no escritório e saídas à noite, foi, sem dúvida, decisivo na vida de Plath. “A mudança para Nova York”, escreveu ao irmão no final de junho, “foi tão rápida que não consigo raciocinar logicamente sobre quem sou e para onde vou. Tenho estado em êxtase, terrivelmente deprimida, entusiasmada, sentindo-me iluminada e excitada, o que torna a vida muito difícil e cheia de novidades.”

Publicado sob o pseudônimo de Victoria Lucas em 1963, poucas semanas antes de tristemente cometer o suicídio — desta vez, quando, após preparar o café da manhã dos filhos, enfiou a cabeça no forno e ligou o gás —, a Biblioteca Azul publica na efeméride do sexagésimo  aniversário do livro uma belíssima edição com nova tradução assinada por Ana Guadalupe e ilustrações em giz pastel da artista francesa Beya Rebaï.³ Pela sua mão brilhante entramos aos poucos, de alguma maneira, na mente frágil da escritora. 

Além da lenda de maldição 

Da genialidade de Plath, temos pouco do que ela conseguiu publicar, devemos destacar o quanto sua obra envelhece bem. Os grandes temas deste início de século XXI que hoje se descobrem como tendência literária — a perspectiva de gênero e a saúde mental afetada pela pressão social e cultural — encontram eco demasiado próximo em A redoma de vidro. 

Em suas páginas, por exemplo, a escritora reflete sobre as relações entre homens e mulheres e seus duplos padrões: “Podia até ser legal manter-se pura e casar com um homem puro, mas e se depois do casamento ele confessasse que não era puro, como Buddy Willard tinha feito? Eu não conseguia suportar a ideia da mulher ter que seguir uma vida pura enquanto o homem vivia uma vida dupla, uma pura e outra não.”

Na verdade, tal como escrevera à mãe em 1953, nada se interporia entre ela e a escrita: “Estou determinada a que nenhuma criança chorosa por peito atrapalhe os meus estudos universitários e me impeça de viajar para o estrangeiro. Sim eu controlei criteriosamente minha vida sexual e você não deve se preocupar comigo. As consequências dos casos amorosos certamente me privariam da minha liberdade e independência para a atividade criativa, e não tenho intenção de deixar que nada me impeça de seguir adiante.”

Como aponta Aixa de la Cruz no prefácio escrito em 2019 para a edição de A redoma de vidro em língua espanhola do romance, Plath tinha uma mente privilegiada que ia muito além de sua aura de escritora amaldiçoada. “Embora o seu suicídio possa obscurecer o rastro deixado por sua figura, há muito a aprender com a vida e a visão de Sylvia Plath (…). Afaste-se, portanto, da lenda negativa da poeta suicida e mergulhe num texto onde a ironia e a engenhosidade brilham acima da tristeza”, aconselha a autora espanhola. 

Na verdade, a própria poeta, que assumiu a escrita de A redoma de vidro como algo “para ganhar dinheiro e como exercício”, como confessara à mãe, disse que a certa altura, provavelmente tomada pelo desânimo, se viu solicitada a esquecer o livro; ela comentou ao irmão sobre a natureza um tanto descontraída desse romance em 1962: “Acho que vou me tornar uma boa romancista, muito engraçada; o que escrevo me faz rir às gargalhadas, e para eu rir agora, tem que ser diabolicamente engraçado.”

Então as vozes se calaram

Nesses quase dez anos, porém, a vida de Plath mudou muito. Desde aquele verão sufocante da sua juventude, até às tempestades de neve que atingiram Londres, para onde se mudou com o marido, o poeta Ted Hughes, em 1959, após engravidar. O inverno daquele ano foi um dos mais frios de que se tem memória, com registros recordes de baixas temperaturas que não eram sentidas há mais de um século, e ela e os seus filhos adoeciam continuamente. Parecia quase premonitório que aquele romance sobre seus problemas de saúde mental que tanto a puniu aos 20 anos trouxesse de volta um período de claros-escuros praticamente idêntico uma década depois.

Escrito enquanto estava se separando do marido, com quem se casou em 1956, Plath tinha mudanças repentinas de humor, como mostram as inúmeras cartas à mãe e ao irmão. Desmoralizada, sufocada pelas contas ao chegar o fim do mês, com dois filhos pequenos, ela descrevia assim a sua situação aos seus entes mais próximos: “Só me encontro numa situação difícil fisicamente, mentalmente estou bem, equilibrada e estou escrevendo, a melhor coisa que já fiz, sem parar, das quatro às oito da manhã, todos os dias.” Para afirmar mais tarde: “Sinto como se tivesse perdido toda a identidade sob a avalanche de decisões e responsabilidades a que fui submetida durante estes últimos seis meses, com os filhos exigindo atenção constante”.

Nos últimos meses, ela parecia “um graveto, com todos os ossos literalmente salientes por toda parte e grandes círculos sob os olhos, por causa dos comprimidos para dormir que tomei e da tosse de fumante”. Finalmente, em 4 de fevereiro de 1963, ela enviou à mãe uma última carta: “Não escrevi para ninguém porque me sinto um pouco deprimida; passado o cataclisma, começo a entender que tudo isso é definitivo, e que me ver arrancada da minha bovina felicidade materna e jogada na solidão, em meio a problemas dolorosos, não tem graça nenhuma”.

Uma semana depois, e apesar de ter manifestado o desejo de voltar a fazer terapia, preparou o café da manhã para os dois filhos, Frieda e Nicholas, selou a porta da cozinha com fita adesiva para não envenenar as crianças, que dormiam na sala, enfiou a cabeça no forno e ligou a torneira de gás. “Um vento frio me acertou”, descreve em A redoma de vidro. “Eu estava sendo transportada velozmente por um túnel para o centro da terra. O frio parou. Houve um murmúrio, como se muitas vozes discordassem e reclamassem à distância. Então as vozes se calaram.”

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A redoma de vidro (edição ilustrada)
Sylvia Plath
Trad. Ana Guadalupe
Ilustrações Beya Rebaï
Biblioteca Azul, 2023
264p.


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Notas:
1 As traduções das missivas citadas neste texto são a partir da versão espanhola. 

2 Os excertos de A redoma de vidro aqui referidos são da tradução de Chico Mattoso (Biblioteca Azul, 2019).

3 Também em espanhol saiu uma nova edição de The Bell Jar — pela Handom House, com ilustrações de Sonia Pulido. Os sessenta anos do romance são assinalados ainda entre os leitores de língua espanhola com a reedição do volumoso epistolário Letters Home, ainda inédito no Brasil.


* Este texto é a tradução livre de Sylvia Plath, sesenta años encerrada en su campana de cristal, publicado aqui, em El Cultural.
 

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