Autoria, agenciamento e desdobramento


Por Tiago D. Oliveira



Em uma entrevista, perto do fim de sua vida, o escritor argentino Jorge Luis Borges, afirmou que nunca se termina de aprender a ler. Talvez como nunca se termina de aprender a viver. Em A esponja dos ossos (editora 7 Letras),  Maria Cecilia Brandi apresenta ao leitor poemas que são atravessados por uma coleção particular de fragmentos de prosa que foram acumulados no passar dos anos por uma afecção particular e amorosa. A autora busca expor a relação que seus poemas criam com tais fragmentos de maneira que esse movimento transpasse a prática de uma comum pilhagem para provocar uma busca pelo encaixe esculpido de sua produção com o que guardou de leituras. Em determinado momento fica claro que nesse exercício de intertextualidade cresce um outro ângulo de análise: seriam os poemas completados pelos fragmentos ou os fragmentos pelos versos da poeta? Ao final da leitura do livro fui acometido por uma série de direções, mas o que ficou claro no mar de março que as obras assim realizam no leitor, é que a escrita em A esponja dos ossos agencia desdobramentos que são imediatamente direcionados para o universo da leitura como fundamento para a própria escritura.

No texto de apresentação do livro o crítico literário Gustavo da Silva Ribeiro, aponta para uma poética da leitura, termo cunhado pelo crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal quando pensou a obra de Borges e trouxe o conceito da leitura como caminho indissociável para a criação do livro. A leitura seria o passo que antecede o nascimento de um livro, seria a própria leitura também uma maneira de grafar impressões e subjetividades ao longo do caminho alimentado, que do acúmulo de obras lidas coteja à uma condição de autoria.

O livro traz vinte e nove poemas e um pequeno texto da autora que justifica o seu processo de criação como algo que começou mesmo antes de pensar a existência do livro. Que já tinha o prazer de guardar fragmentos de prosa contemporânea no computador, a autoria começou mesmo antes da escrita dos versos. A leitura e a escolha desses fragmentos de prosa são motivadas pela forma como essa literatura absorvida durante o caminho de Brandi, marca a sua vontade de produzir. E esse processo de autoria passa a ser também uma forma de agenciamento de leituras, como pode ser lido no poema bordados – “gosta de dançar e acreditar em casamentos / onde a composição toda (...) é menos a lembrança melancólica de uma ausência e / mais um atestado reconfortante de que isso / existe e segue fazendo parte do mundo” – em que a autora utiliza em itálico um fragmento do romance Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera (2012). A riqueza contextual do livro de Galera se encaixa em uma intenção de escrita de Brandi para que se produza um outro objeto que é fecundo das partes, mas liberto para o surgimento da diferença.

Pensar o livro de Maria Cecilia Brandi como uma prática vampiresca ou um palimpsesto é um descaminho passível a um olhar sem aprofundamento. Há uma rede hipertextual que gere a relação entre o livro e o leitor, sem deslegitimar autorias. Ela impõe que seja polarizado o espaço da leitura como estratégia de identificação das marcas intertextuais, além da autora deixar todos os fragmentos em itálico e catalogá-los ao final do livro, o que contribui na identificação. Não colocaria também os poemas de Brandi como Frutos estranhos, no que conceituou Florencia Garramunõ em seu livro, já que o elemento definidor desse tipo de obra seria uma unidade do não-pertencimento. Em A esponja dos ossos, os limites de uma literatura híbrida estão bem marcados, identificados e reelaborados de maneira clara, há pertencimentos que são unidos propositadamente no livre exercício da escrita literária.               
A potência do livro de Brandi também pode ser observada quando cada texto passa a ser uma possibilidade de encontros, como vemos no poema esponja:

pensa que uma distância curta
é longa se há pressa
e que a pressa imprescindível
demora a chegar

que há carícias que nos sugam
mais que solos movediços e que
a cura da solidão é o recolhimento

que há sempre novas formas
de sofrimento para as quais você
não está preparado nem protegido

pensa que – por pior que seja –
é melhor não conseguir dormir
do que não conseguir acordar
que não dorme quando
está tudo muito vivo
e não acorda quando
concebe sucumbir

Observamos – que há carícias que nos sugam / mais que solos movediços – o primeiro fragmento em itálico de Um caderno de um ausente, de João Anzanello Carrascoza (2014) e no segundo fragmento em itálico – e que /  a cura da solidão é o recolhimento – a autora insere uma passagem de If I were sixteen today, ensaio em The complete prose of Marianne Moore, M. Moore (1986). Há também uma terceira inserção no poema – que  há sempre novas formas / de sofrimento para as quais você / não está preparado nem protegido – de Altos voos e quedas livres, de Julian Barnes (2013). Há um desdobramento de semânticas originais que são transpassadas para a criação de uma poesia que se coloca como leitora e por isso criadora, a potência dos desdobramentos se dá em uma poética influenciada e influenciadora.

Maria Cecilia Brandi, em A esponja dos ossos, se apoia em fragmentos de romances, contos, ensaios, diários para criar um livro de poemas que dialoga com a prosa contemporânea em um procedimento de criação que rasura a ideia de uma fronteira estilística para o exercício livre do criar. O título do livro toca no ponto central da intenção da autora, a de condensar algumas questões que carrega e também afirma, porque para mim remete à imagem de uma estrutura porosa, permeável a outros gêneros, a outras vozes. Ao leitor fica uma obra que dialoga com a contemporaneidade de maneira muito clara e rica, além do prazer de transitar por locais em que a subjetividade da poesia afirma ou sugere como sementes para leituras futuras.          


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