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Mostrando postagens de fevereiro, 2025

Manhattan Transfer, um romance em forma de filme

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Por Rodolfo Elías John Dos Passos. Foto: Philippe Halsman.   “If I can make it there,/ I’m gonna make it anywhere./  It’s up to you/ New York, New York”, canta Frank Sinatra em uma de suas canções mais conhecidas: “Se eu conseguir chegar lá,/ Conseguirei chegar a qualquer lugar./ Só depende de você,/ Nova York, Nova York”. A cidade que já era mesmo antes da Primeira Guerra Mundial uma cidade vibrante é onde se passa Manhattan Transfer , romance de John Dos Passos.   Manhattan Transfer foi publicado há cem anos, em 1925, mesmo ano em que Adolf Hitler publicou seu controverso manifesto autobiográfico, Mein Kampf . E é um dos romances mais interessantes e completos que alguma vez li; seu estilo, seu ponto de vista, sua inventividade e seu brio romanesco, ainda estão preservados. Uma obra muito diferente do que havia sido publicado até então. De certa maneira, Dos Passos criou uma forma nova no romance. E como se tudo isso não bastasse, tem a virtude especial de ser um ...

Boletim Letras 360º #623

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Ben Lerner. Foto: Beowulf Sheehan LANÇAMENTOS   Duas apostas na reintrodução da obra de Ben Lerner entre os leitores brasileiros .   1. Nos poemas de  As luzes , os leitores logo reconhecerão a inteligência e a criatividade que consagraram Ben Lerner como um dos principais nomes da literatura estadunidense recente. Seus versos nos ensinam que escrever poesia pode ser uma excelente forma de conversar: fazer com que as vozes troquem de lugar e, assim, teçam experiências vivas: “a meta é estar dos dois lados do poema,/ transitando entre mim e você”. Com os pés no chão, os olhos ligados no cotidiano e os ouvidos muito atentos à trama infinita das falas que se projetam ao redor — do avô que inventava provérbios ao poeta compondo “canções tradicionais” para as filhas, do poema mais antigo da língua inglesa aos papos com amigos e familiares, dos áudios pessoais aos pronunciamentos de autoridades e especialistas no noticiário —, a imaginação de Lerner se alimenta de uma atenção d...

Nietzsche, filósofo da suspeita de Scarlett Marton

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Por Herasmo Braga Scarlett Marton. Foto: Wikipédia (Reprodução)   Atitude notória no âmbito da tradição de pensamento é dedicar-se por longos períodos a determinados pensadores críticos ou mesmo a um campo de ideias significativas relacionadas aos dilemas humanos. Unir um analítico crítico-reflexivo dedicado e um relevante proclamador de ideias profundas em uma mesma realização escrita é algo não só notável, como também, uma benesse para aqueles apreciadores de conjunto de ideias tão bem desenvolvidas e articuladas. É o que acontece na obra Nietzsche, filósofo da suspeita , de Scarllet Marton. A obra apresenta, de maneira objetiva, sem pecar na profundidade, certo panorama que promove não só atualização, mas a ressignificação das ideias de Nietzsche ao longo das suas obras. Como bem evidencia a autora nas primeiras linhas: “Quem julgou compreendê-lo equivocou-se a seu respeito, quem não o compreendeu julgou-o equivocado”. Esse é um dos grandes feitos de pensadores que promovem rupt...

Outono de carne estranha, de Airton Souza

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Por Henrique Ruy S. Santos Airton Souza. Foto: O Liberal (Reprodução)   A visão de uma cava é assombrosa. A carne da terra penetrada a céu aberto pelas ferramentas do homem guarda algo de obsceno e de violador. Nos deixa com a impressão de que certas entrâncias, certos sulcos obscuros do solo escavado não foram feitos para serem vistos, muito menos expostos a céu aberto. A grandeza do espetáculo provoca um pudor primal que nos invade e suspende, brevemente, qualquer consciência espacial e temporal que pudesse, porventura, nos apontar causas, modos e motivações humanas por trás do que nos é dado ver.   Outono de carne estranha , romance vencedor do prêmio Sesc de 2023 e escrito pelo paraense Airton Souza, parte, em determinada medida, desse mesmo assombro diante do fenômeno do maior garimpo a céu aberto durante os anos 1980, Serra Pelada. As determinações sociais e econômicas que fizeram com que milhares de homens e mulheres se dirigissem a uma cratera de mais de 20 mil metros ...

Conclave: o cardeal que sabia demais

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Por Ernesto Diezmartínez No início de O espião que sabia demais (1974), o quinto romance escrito por John le Carré (1931-2020), o antigo chefe da inteligência britânica, “Control”, morre após ser forçado a se aposentar devido a uma operação de espionagem vergonhosamente fracassada. Seu segundo em comando, o espião veterano aposentado George Smiley (Alec Guiness na adaptação para a TV de 1979 e Gary Oldman na versão cinematográfica de 2011) é convidado a voltar ao MI6 em meio a suspeitas de que entre seus antigos colegas há um espião duplo servindo aos soviéticos, uma certeza que atormentou “Control” em seus últimos dias à frente do serviço secreto britânico. O que Smiley não consegue entender é por qual motivo “Control” não compartilhou suas suspeitas com ele, por que lhe escondeu essa informação. Acreditava que ele, Smiley, era o espião duplo, o informante do título? Ele logo percebe que o oposto é verdadeiro: “Control” não lhe contou nada sobre suas suspeitas porque confiava nele ab...

A obra literária de Santa Teresa d’Ávila

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Por Miguel Ángel Garrido Gallardo Santa Teresa D'Ávila. Pintor desconhecido.     1 A obra escrita de Santa Teresa d’Ávila é literária? Mas o que significa literatura?   Terminologicamente falando, literatura , com o perfil que hoje damos por certo em suas variadas acepções, é um termo que só tem vigência de dois séculos, o XIX e o XX, mas que ainda não existia como tal no século XVIII e que está sendo hostilizado em suas fronteiras nestes começos do século XXI.   No século XVIII falava-se de “poesia” com o termo aristotélico que significa criação ou recriação: “à recriação feita com palavras ocorria — segundo Aristóteles — que não tinha em seu tempo um nome particular” e, assim, sem nome particular foi sobrevivendo século a século o fato e a disciplina que o estudava — a Poética .   A difusão da Galáxia Gutenberg, que havia propiciado a proliferação do livro e o surgimento do jornalismo, também propicia que nos fixemos no caráter de escrito que tem agora o supor...

Léon Bloy: o louco de Deus

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Por Rafael Narbona Léon Bloy, julho de 1906. Foto: Coleção particular.   Léon Bloy nasceu no século errado. Muitos o compararam com os profetas mais irados do Antigo Testamento. Após ler suas diatribes e explosões, Franz Kafka comenta: “Ele é o profeta dos tempos modernos, diante dos quais todos os outros parecem mudos. Vitupera melhor que os profetas; seu fogo se alimenta de todo o esterco da nossa época”. Jorge Luis Borges concorda com essa visão: “Infelizmente para sua sorte e felizmente para a arte da retórica, ele se tornou um especialista em injúria”. Bloy considerava que o mundo moderno era o reino de Satanás. O demônio havia introduzido aberrações como o sufrágio, a democracia, a tolerância, o materialismo, a ciência, o feminismo, a república, o fonógrafo, o socialismo, o amor aos animais e o divórcio — a máxima perversão imaginável — para destruir a herança cristã.   Sedento de justiça e inflamado de ira, não concebia outra salvação para o mundo que um profundo exorc...