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Mostrando postagens de 2025

Os erros de Borges. A estrangeira e o nome de Deus

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Por Eduardo Galeno Rafael. Averróis, detalhe de  A Escola de Atenas.   Não sei onde li, mas a linguagem é erro. A literatura, no ínterim, transfere esse erro para a ponta de um determinado discurso. Ela consiste em dizer, não falar, montar, deslocar, não transmitir. É o que se apresenta como discurso total. No ângulo pretendido ou sugerido por ela (a estrangeira nas palavras de Foucault), há a passagem da letra ao literário. Mas onde exatamente? Como é possível a determinação ou, melhor, a exclusão? O que faz as palavras tragédia e comédia serem o que são e representarem do jeito que são representadas? Certamente, na interpretação de Borges da vida — vida mais que obra, mas vida também como obra — de Averróis, ele se condicionou a investigar a barreira entre a res e a res ficta . Barreira que significa, é evidente, o percurso instrumental da natureza e da cultura (se há uma separação), que preconiza os sentidos, as intuições e as inferências. Averróis mesmo teve várias tra...

Cinco poemas de Wallace Stevens

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Por Pedro Belo Clara Wallace Stevens: Foto: Sylvia Salmi     O BONECO DE NEVE ( Harmonium , 1923)   É preciso que a mente se faça Inverno Para olhar o frio e os ramos Dos pinheiros encrostados de neve   E ter tido frio durante muito tempo Para ver os juníperos, hirtos de neve, Os toscos abetos no distante brilho   Do sol de Janeiro; e sob o som Do vento não pensar em dor alguma, O som das poucas folhas,   Que é o som da terra, Cheia do mesmo vento Que sopra no mesmo deserto lugar   Para o ouvinte, que ouve na neve E, nada sendo, nada vê do que Ali não está e vê o nada que está.     COMO VIVER. QUE FAZER ( Ideas of Order , 1935)   Ontem a lua nasceu por cima deste rochedo. Impura sobre um mundo inexpurgado. O homem e a sua companheira pararam Para repousar face à heróica altura.   Frio, o vento caiu sobre eles Por entre sons de grande majestade: Eles que tinham deixado o sol de estranha chama Buscando um sol de fogo mais inteiro. ...

Boletim Letras 360º #645

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DO EDITOR   Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Alexandre Dumas (pai). Foto: Prudent Rene-Patrice Dagron   LANÇAMENTOS   Edição inédita no Brasil do único romance abolicionista de Alexandre Dumas, que declara seu compromisso com seus “irmãos de raça e amigos de cor” .   Alexandre Dumas ajudou a construir o imaginário da literatura ocidental com Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo . Porém, antes da fama literária, Dumas publicou, em 1843, Georges , um romance com temática abolicionista e protagonizado por um “orgulhoso mulato” que se alia aos escravizados nas Ilhas Maurício, então uma colônia francesa, para sonhar um “futuro de vingança e liberdade”, entrando numa guerra mortal contra o preconceito e a escravidão. Dumas, orgulhosamente neto de uma africana cujo sobrenome adotou como parte do seu nome artístico, não se ocupou apenas das intrigas e disputas na Corte f...

Aleksandr Soljenítsyn e Os invisíveis

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Por Mary Carmen Ánchez Ambriz Aleksandr Soljenítsyn. Arquivo Centro  Aleksandr Soljenítsyn.   Um dos poucos livros que mudaram a história é Arquipélago Gulag (1973), de Aleksandr Soljenítsyn. Foi assim que Octavio Paz e outros intelectuais o assimilaram, expressando seu desencanto com o socialismo da União Soviética.   Tchekhov já havia dito que grandes escritores deveriam falar de política “para defender o povo da política”. Se em O pavilhão dos cancerosos Soljenítsyn já havia deslumbrado seus leitores ao se referir ao câncer como a doença do espírito que é o Estado totalitário, em seus títulos subsequentes continuou com um retrato fiel da repressão que se vivia durante o regime soviético. Ele não se importava em arriscar a própria vida; continuou escrevendo clandestinamente, com o apoio de um grupo de amigos que acreditavam nele, a quem chamava de “Os invisíveis”. Quem eram esses invisíveis? Como apoiavam o escritor? Quantas vezes arriscaram ser encontrados pelo ICGB?...

O muro de pedras, de Elisa Lispector

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Por Pedro Fernandes Elisa Lispector. Foto: Gil Pinheiro. Arquivo da revista  Manchete . Restaurada com IA.   “Estou sempre começando, para em seguida terminar, e recomeçar de novo, os elos partidos, um não chegando a emendar no outro.” A conclusão, de muitas de sentido semelhante levantadas por Marta, protagonista de O muro de pedras , é também uma revelação sobre o movimento da narrativa que perfaz o curso existencial de uma mulher entre a sua primeira idade adulta até a velhice. O curso do romance de Elisa Lispector é feito de pura sondagem psicológica e analítica, o que coloca sua obra nas primeiras fileiras do modelo existencialista bastante cultivado pela literatura no seu tempo.   Nos romances herdeiros do existencialismo o enredo se esboroa; o que importa à narração é alinhavar recortes precisos, marcadamente os encharcados da angústia anterior ao instante de epifania, este que uma vez consumado entra outra vez na circularidade dos volteios psicológicos do indiví...

Resistir, reconstruir e nomear, o ethos de No Other Land

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Por Alonso Díaz de La Vega O documentário é o gênero palestino por necessidade. Por razões óbvias, na Cisjordânia e em Gaza, é praticamente impossível estabelecer uma indústria cinematográfica que abranja musicais e melodramas intimistas. Conhecemos a ficção, é claro, da diretora feminista libanesa Heiny Srour ou da estrela contemporânea Elia Suleiman — um viajante sem rumo fixo, como sugere seu último filme, O paraíso deve ser aqui (2019) —, mas as condições pendem a balança para o outro lado. Além disso, há uma coincidência com as necessidades políticas dos cineastas: o amadorismo inerente a certos documentários sempre sugere um testemunho; o gênero aproveita o que lhe aparece e, diferentemente da ficção, não cria imagens, mas as captura. Há, é claro, casos e casos, mas na Palestina não há outra opção: o cinema é quase sempre feito para deter o avanço da ocupação israelense.   Em 2011, Cinco câmeras quebradas registrou a vida e a morte de cinco dispositivos que haviam captura...

Pertinente, atual e anêmico: De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

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Por Vinícius de Silva e Souza   Já consagrado e praticamente uma celebridade, Jeferson Tenório se viu na difícil missão de entregar o “segundo livro” — aspas pelo medo comum de quem faz estreia arrebatadora mas também pelo fato de O avesso da pele não ser o seu primeiro livro —carregando uma expectativa imensa nas costas, uma vez que é portador de um Jabuti e de vendas consideráveis de seus outros romances. E o que se lê é um resultado pertinente, atual e ao mesmo tempo anêmico.   Esse é um incômodo pessoal, mas também não é: as narrações em primeira pessoa em formato de relato são limitadoras. Tenório faz um exercício narrativo muito bom em O avesso da pele , com o uso da segunda pessoa, mas entrega um descompasso grande em Estela sem Deus , com uma narrativa que começa em lugar nenhum para se encerrar em nenhum lugar. E o mesmo ocorre com De onde eles vêm — mas nem tanto: Joaquim é introduzido na narrativa quando ingressa na universidade pelo sistema de cotas e já se defro...