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Mostrando postagens de outubro, 2024

Todos juntos, de Vilma Arêas

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Por Eduardo Galeno Num sentido certeiro, nós podemos enunciar que Vilma Arêas é mestre da forma breve. O que significa: ela detém esse aspecto correlativo que o conto curto — sem o floreio técnico da narração do romance ou da novela — precisa ter para dar seu respiro de vida.   Em Todos juntos , reunião de escritos ficcionais do período entre 1976 e 2023, quer dizer, de toda a sua ficção (que começa em Partidas , sob a ditadura militar, e escoa em Tigrão , escrito durante o governo Bolsonaro e a pandemia da covid-19), Arêas elenca variações do seu estilo como “contista”. Contista entre aspas: ela, além de resgatar a astúcia da velha estrutura das histórias lineares, também brinca com o conto não-genérico.   Vilma adentra num jogo que é assumidamente característico da contraparte dos escritores de nosso tempo: não generalizar. Ou melhor: não corresponder — pelo menos no limite da produção, do mercado e da distribuição literárias — ao ethos dominante. Seus contos poderiam ter sido pos

Animalia, metafísica do fim de um mundo

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Por Bruno Padilla del Valle   O filme Animalia (Marrocos, 2023) é uma das surpresas no fértil terreno da fantasia, como endossado pelo Prêmio Especial do Júri Visão Criativa no Festival de Sundance, e a inclusão da diretora na lista dos “10 to Watch” da Unifrance, uma seleção de dez talentos emergentes do cinema neste ano, junto com outros três diretores franceses — e seis atores. Sofia Alaoui (Casablanca, 1990) estreia no longa-metragem com este título, mas um olhar sobre a sua carreira desde 2015 mostra que ela não é uma novata no audiovisual.   Fundamental em sua carreira foi o curta Qu'importe si les bêtes meurent (2020), que nessa categoria foi vencedor no Sundance e no Prêmio César, e que tem muito em comum com Animalia : as montanhas marroquinas do Atlas como cenário, diálogos em berbere, atores inexperientes (e, neste caso, não profissionais), componente sobrenatural e uma mistura de perspectiva documental e de fantasia que atualizou a singularidade dos filmes de Jacques

Um ditador na linha, de Ismail Kadaré

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Por Henrique Ruy S. Santos Ismail Kadare. Foto: Eric Garault   Desde as primeiras luzes do racionalismo moderno, lançadas sobre o mundo por epígonos do Renascimento e do Iluminismo, as relações da arte com o mundo, digamos assim, externo se modificaram definitivamente. Afastando-se de maneira cada vez mais radical do domínio religioso e das funções de culto, a esfera do artístico passou a se autonomizar de maneira decisiva. A consagração do sentimento estético e da maneira tipicamente moderna como encaramos a ideia do Belo passa por esse processo de consolidação da arte como um mundo regido por valores próprios, ainda que, por vezes, subordinados a princípios absolutos.   Essa progressiva autonomização leva ao surgimento de tendências artísticas que, em última instância, se fecham sobre si mesmas e se concentram em seus próprios procedimentos e técnicas. O hermetismo literário, as concepções da ideia da arte pela arte e a popular imagem da torre de marfim são, de certa forma, manifest

José Donoso. Perito em monstros

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Por Claudio Zeiger José Donoso. Foto: Zuma Press   É tão óbvio quanto inevitável começar pela posição de José Donoso no boom latino-americano. Para não dizer tão mal e rapidamente, dir-se-ia que ele foi algo como a perna mais burguesa do grupo, a retaguarda clássica e saxónica (à frente dos afrancesados Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar), o abastado e mimado na infância, o leitor de Henry James. Tinha uma distância que o permitiu escrever uma História pessoal do Boom e um romance ( O obsceno pássaro da noite , um título complexo se eles existem) que deveria estar entre os textos canônicos do boom e ainda assim não está neste céu de Cem anos de solidão , A região mais transparente ou O jogo da amarelinha ; está, no entanto, num outro céu de matizes infernais, nebulosidade variável, um lugar turbulento onde terminam os romances que num momento parecem ameaçar a própria vida, desviam-se do rumo, andam por aí como almas penadas.   Donoso se fascinou com os seus colegas do boom , com

Boletim Letras 360º #604

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Ágota Kristóf. Foto: John Foley   LANÇAMENTOS   Mais três livros de Ágota Kristóf acessíveis para o leitor brasileiro .   Na impressionante Trilogia dos gêmeos ― que inclui os livros O grande caderno , A prova e A terceira mentira ―, Ágota Kristóf ergue o monumento literário que fez dela um dos maiores nomes da literatura europeia do século 20 e referência de artistas, escritores e pensadores de todo o mundo. Aqui acompanhamos a história dos gêmeos Claus e Lucas, deixados na casa da avó numa pequena cidade para que tenham alguma chance de sobreviver à guerra. Os anos que transcorrem são duros, assim como os desafios em que os dois se colocam e que por eles cruzam ― mas nenhum é maior que a separação entre eles. Enquanto acompanhamos a trajetória dos irmãos, testemunhamos também outras transformações igualmente marcantes: da Europa como continente, da própria noção de moralidade, do que pode ou não ser verdade, e até mesmo da prosa da autora, que se transforma à medida que a história

Alfabeto das colisões, de Vladimir Safatle

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Por Herasmo Braga Vladimir Safatle Foto: Ana Paula Paiva   Observa-se hoje, sem grande esforço, o quanto diversas relações e instrumentos sociais têm ficado cada vez mais precarizados. Essa visão não é escatológica, e sim, pequena descrição de como as informações, ideias e manifestações opinativas têm resultado em sentidos distintos do que a trajetória da humanidade desenvolveu ao longo da sua história. Se antes a frase de Marx, contida na obra O 18 de Brumário , “Tudo que é sólido desmancha-se no ar”, hoje, a maior parte das informações e das opiniões não se sustentam à mínima observação crítica, ou mesmo possuem em seu interior alguma base constitutiva de argumentos. Na contramão dessa precarização hegemônica, há livros com ideias fundamentadas que fazem despertar a atenção não pelo apelo, e sim, pela proposição que faz mover os sentimentos críticos que outros materiais buscam aniquilar. Um desses grandes exemplos é a obra do filósofo Vladimir Safatle, lançada recentemente e intitula

Dostoiévski, Os irmãos Karamázov e o que está permitido

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Por Tomás Baviera   Fiódor Dostoiévski viveu na segunda metade do século XIX, numa Rússia czarista que começava a incorporar certas reformas sociais. As obras que escreveu tiveram forte impacto em sua época. Os leitores de hoje também recebem seus romances com interesse. Provavelmente, a razão que explica, em grande parte, a relevância da obra desse escritor é que ele soube formular as questões que o homem moderno carregava dentro de si e, além disso, conseguiu oferecer respostas coerentes e adequadas para essas questões.   O projeto literário de Dostoiévski se desenvolve em um momento de forte influência ideológica. Inicialmente, ele conviveu com reformadores utópicos, até ser preso e condenado à Sibéria por crimes políticos. A experiência de conviver e trabalhar com os mais depravados e miseráveis ​​ da sociedade marcou-o profunda e definitivamente.   A leitura dos Evangelhos durante os anos de prisão serviu para a grande virada nas suas convicções. Das utopias modernas que ofereci

A substância enfrenta ou repete a visão masculina?

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Por Alonso Díaz de la Vega   Em seu ensaio fundacional de 1973, “Women’s Cinema As Counter-Cinema”, a crítica feminista Claire Johnston denunciou a mitologia masculina que ainda subjuga as mulheres na tela. Graças ao fato de os homens as conceberem como estereótipos, os imaginários de diretores, roteiristas, produtores, até mesmo diretores de fotografia e editores, são transferidos para a tela na forma de ingênuas que seduzem os homens com sorrisos, ou feras sexuais que sufocam as suas vítimas como súcubos. As imagens, aliás, não param por aí, na abstração, pois reforçam os preconceitos dos espectadores. Nos últimos anos, as indústrias mais poderosas do mundo tentaram, sem entusiasmo, mudar estas representações, mas muitas vezes a solução não são mulheres complexas como as mulheres comuns, mas sim fantasias utópicas que, ao reduzirem a feminilidade ao estritamente heroico, são também opressivas e fomentam ideias como a de que as mulheres governantes consertariam o mundo. Margaret That