Flannery O’Connor, a cartunista

Ela é reconhecida entre os nomes
mais importantes da rica literatura do Sul dos Estados Unidos e a publicação
entre nós há quatro anos da parte central da sua obra — os contos — é uma prova
disso.1 Ainda esperamos que cheguem ao nosso idioma os dois
romances: Wise blood (1952) e The Violent Bear It Away (1960). Isso
talvez não custe tanto, mas custará uma edição brasileira de The Cartoons,
publicada recentemente no país natal da escritora.
Como terá observado a crítica
estadunidense, a revelação desse material inédito em livro de Flannery O’Connor
entra já para uma seleta lista de curiosidades: a que revela a secreta
inclinação de criadores reconhecidos numa arte e que se aventuraram,
positivamente ou não, por outras searas. Exemplo disso, Marilyan Monroe, a
atriz que escreveu poesia; James Joyce, a inclinação para a música.
O caso de Flannery O’Connor possui
uma qualidade a mais: ela possuía talento para o desenho. Esse convívio com as
artes plásticas se inicia ao lado da arte literária. Sabe-se que já aos cinco
anos ela desenhava com o intuito de ilustrar esquetes cômicos. Daí para o cultivo
desse interesse na juventude, o salto foi curto.
Assim como William Faulkner, outra
potência que o Sul dos Estados Unidos legou à literatura, na faculdade, a estudante
expandiu seu desenho e contribuiu com trabalhos do gênero em várias das publicações
nesse meio e ao ponto de angariar primeiro a reputação de cartunista e não a de
escritora.2
O talento só terá ficado nesse tempo
por uma dessas impiedosas fatalidades que o destino geralmente lega aos autores
de grande brio: logo no início da carreira na literatura, O’Connor foi diagnosticada
com a mesma doença que havia matado o pai. O lúpus impôs uma vida limitada e
entre os dois talentos artísticos, ela decidiu investir, febrilmente, na
escrita enquanto vagueava pelo país com suas conferências e (até fora) à
procura de alguma cura.
Os desenhos reunidos em livro
demonstram um traço e uma verve satírica próprios. Para Kelly Gerald, organizadora
de The Cartoons em artigo veiculado pela Paris Review, o trabalho
visual da escritora se alinha de perto com sua voz autoral; “uma observadora
solitária e sardônica, confiante em suas avaliações da fragilidade humana.”
Os cartoons de Flannery O’Connor
também agregam a palavra. Vários dos desenhos carregam sentenças impassíveis: “ela
parece zombar da busca por credenciais como um refúgio para os socialmente
desconcertantes.” Em alguns casos, ela própria, a observadora, inclui-se no
desenho, como o que traz os dizeres “Ah, bem, eu poderei ser uma PhD.”
O livro de agora materializa, de
alguma maneira, certo esboço da publicação realizada pelo Georgia College —
quando ela estudou, a instituição se chamava Georgia State College for Women: em
2010, a casa editou esse material proveniente dos anos em que foi sua aluna, isto
é, os desenhos de 1942 a 1945, período em que colaborou assiduamente com o jornal
do campus The Colonnade e com o anuário Spectrum, para o qual foi
nomeada editora de arte em 1944. Nesse período interessa ao olho atento da
desenhista a vida no campus.
Um destaque aqui é o seu olhar
para a moda no campus; a versão idealizada da vida universitária estadunidense é
ridicularizada em suéteres enormes, saias largas, cabelos desgrenhados e os
enormes sapatos e mocassins. Ocasiões assim colocam outros detalhes no desenho de
O’Connor que são os do espaço livre deixados pela sua prosa de ficção.
**
Reunimos neste catálogo uma boa amostra do traço de Flannery O’Connor
Notas
1 Referimos aos Contos
completos traduzidos por Leonardo Fróes e publicados pela Cosac Naify.
2 Os desenhos de William Faulkner
testemunham a Era do Jazz; foram publicados em William Faulkner: Early Prosa
and Poetry.
3 É o texto Flannery O’Connor and the Habit of Art”, publicado aqui.
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