Notas sobre Aquele que é digno de ser amado de Abdellah Taïa

Por Rafa Ireno




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Em 2018, Aquele que é digno de ser amado de Abdellah Taïa foi publicado em São Paulo. É a primeira tradução para o português do escritor marroquino e uma escolha promissora da Simone Paulino, responsável pela direção editorial da Nós, uma vez que a voz de Taïa, ainda que mergulhada em suas questões particulares, pode dialogar intimamente com parte da produção literária brasileira contemporânea. Esta narrativa estrangeira tem a qualidade de se referir ao mesmo tempo a algo próximo e distante da gente, o que constitui uma experiência enriquecedora para o público do Brasil.

Trata-se, pois bem, de um romance epistolar dividido em quatro partes: duas delas o personagem principal é o destinatário e nas outras, ele é o destino das cartas. Ao todo, as correspondências acompanham vinte e cinco anos da vida de Ahmed, relatando um complexo percurso do Marrocos até a França. A primeira delas é de 2015. Ele escreve para a mãe, Malika, falecida há cinco anos. São linhas duras, amargas e, até certo ponto, vingativas – uma espécie de acerto de contas, em que Ahmed despeja um turbilhão de ressentimentos a respeito da família, a perda do pai, o silêncio das irmãs, a predileção do irmão; relata também as violências e as angústias convivendo numa casa de poucos cômodos, numa região pobre do Marrocos, na sua infância e adolescência. Acontece que os efeitos da morte da mãe funcionam como um catalisador, provocando, no filho distante, a releitura de diversos aspectos da vida, entre eles, aquele que lhe é central, a homossexualidade:

É como se o inferno íntimo que vivi até aqui como homossexual não fosse nada.

Você foi embora. E entendi finalmente que, mesmo longe de você, a sua existência me protegia de uma certa verdade.

A verdade suprema. Literalmente, do inferno.

Foi só no momento em que você se tornou uma alma, nada mais que uma alma, que eu tive a revelação da minha verdadeira existência, minha verdadeira natureza.

Antes, eu pensava e vivia pensando em mim como homossexual. Agora, realmente sozinho no mundo, sem nenhuma proteção, não penso mais, exergo quem eu sou. Homossexual. Não tem mais filtro. Vejo meu destino. E vejo que nada mais pode parar o inelutável. A morte na solidão absoluta. Com o coração duro, fechado, cada vez mais seco. Um coração ditador. (p. 26)



Ainda nesta primeira parte, Ahmed comenta a rotina em Paris, geralmente solitário, dividido entre as atormentações que o levam diariamente à piscina do bairro gritar nos fundos das águas, e o prazer com a capacidade que tem de manipular, maltratar e, em seguida, sem piedade nenhuma, desfazer-se das relações amorosas, deixando os companheiros desamparados, enquanto ele não sente nada. Na segunda carta, exatamente, temos um exemplo disso, pois, lemos as palavras de Vincent, um desses amantes de uma noite, tentando entender o porquê do abandono. É esta dinâmica que constrói o retrato de Ahmed, trata-se de um romance de reflexos: ora suas próprias palavras são espelhadas na narrativa, ora nós nos deparamos com as reverberações de outros olhos em seu espelho.

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A homossexualidade é ilegal no Marrocos, segundo o artigo 489 do código penal, que prevê a punição de seis meses a três anos de prisão, “aqueles que cometam um ato impudico ou contra a natureza com um indivíduo do mesmo sexo”. Um dos motivos, evidentemente, que levam jovens árabes a imigrar para a França: na terceira carta, por exemplo, Ahmed volta a escrever sobre o encontro e a relação com Emmanuel, um turista francês, que, durante uma viajem no Marrocos, tornou-se seu amante e possibilitou a saída para Paris, onde viveu dos dezessete aos trinta anos. Por fim, a última carta pertence a Lahbid, amigo de juventude, cujo significado do nome dá título ao livro, como se pode ler numa nota de rodapé. (Cabe, em parênteses, um elogio ao trabalho da Editora Nós, pois, as dimensões, cores e papel do acabamento tornam a leitura muito agradável. A tradução contou com um suporte financeiro da França através de um programa chamado auxílio a publicação do Instituto Francês).

Vale ressaltar igualmente que esta quarta missiva é de 1990, ou seja, as cartas estão dispostas de trás para frente. Começa-se pelo presente e vai voltando para trás, de maneira que a última correspondência ilumina algumas passagens anteriores do romance. Não recomendaria, no entanto, a leitura no sentido cronológico, não mudaria significativamente a percepção da história. Até mesmo se seguirmos uma ordem aleatória, isso em pouco afetaria o relato, visto que não há respostas – Taïa mimetiza a situação de Ahmed numa narrativa sem saída, sem redenção. Ser consciente das dores não significa, aqui, conseguir se livrar do sofrimento, nem sequer significa existir, contrariando a famosa síntese de Descartes. Aliás, este livro é, em diversos níveis, um ataque às instituições do pensamento francês:

Quanto aqueles que são que nem eu hoje em dia, eu os cruzo em Paris desde que cheguei. Eles também vêm de Marrocos ou dos países ao lado. São homossexuais. Agora têm quase sessenta anos e dizem que a França os salvou. Dou risada por dentro cada vez que os escuto falar assim da França que emancipa e dá as chaves indispensáveis para a liberdade. Ninharias! Nada além de ninharias, esse papo aí. Os viados árabes que buscam abrigo na França são tratados da mesma maneira que os outros imigrantes. Um cantinho preparado para eles há muitas décadas, muitos séculos, os espera lá, e os aprisiona. Para serem aceitos pelos franceses, falam o seu linguajar teórico, abstrato, nebuloso. Com os anos que passam rápido, já não se atrevem a nuançar suas palavras, e pôr nelas alguma coisa do que eles no fundo são, da primeira terra onde aprenderam tudo na vida. Estão integrados. São aceitos. São livres. Dizem e repetem. Podem enganar os outros, os franceses, com essas afirmações. Não a mim. Muito menos a mim, eu que vou, que caminho por Paris pelo mesmo caminho que eles. […] E ao examiná-los, cada dia um pouco mais, me torno mais durão do que já era, desde o início. Um coração duro. Como o seu, minha mãe. Sou homossexual e funciono que nem você, minha mãe. Sou homossexual e funciono que nem você. Estou repetindo isso para você. Aí, onde você está, eu grito isso para você. Pareço cada vez mais com eles, essas bichas árabes que estão envelhecendo. E não sei se devo aceitar isso.

Você me entende, Malika?

A salvação não está em lugar nenhum. (…)

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A tradução para o português possui problemas, que, felizmente, não impedem a fluidez da leitura, mas, tampouco compreende as ambições estéticas do autor quanto à língua francesa. Taïa, em entrevista, explica que não falava francês até os dezoito anos, sua língua natal é o árabe. Marrocos foi um protetorado até 1956, ou seja, o país recebia apoio diplomático e militar da França em troca do controle da política exterior e de interferências pontuais no território. Esse tipo de ocupação, então, concedia certa independência interna, que possibilitou, por exemplo, a preservação da arquitetura marroquina, diferentemente da devastação cometida na invasão do território argelino. Depois, isso beneficiou a manutenção de uma elite local, que, é claro, tinha na língua francesa um elemento de distinção – a expressão dos ricos, enquanto o árabe é relegado aos pobres. Taïa desfia esse tecido sociolinguístico, fazendo sua literatura no registro estrangeiro, como um ato político. Ele combate o opressor por dentro de si mesmo. É um romance anticolonial.

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O escritor marroquino, recentemente, participou do movimento organizado por Leonardo Tonus, em Paris, a Primavera Literária, em que, além de apresentar seu trabalho mais recente, La vie lente  (A vida lenta), também comentou a publicação em nossas terras, que, em francês, saiu em 2017. Justamente ao ouvir Taïa, surpreendeu-me bastante as semelhanças entre as nossas questões. Até então, não o conhecia. Quando o autor marroquino tomou a palavra, uma série de coisas ecoaram nas minhas experiências, sobretudo, no que concernia a ser pobre.

Ele, nascido em Salé, no Marrocos, foi o penúltimo filho de uma família de nove crianças e, assim como Ahmed, em certo momento, deixou seu país para viver na França, isto é, trata-se de uma narrativa banhada na sua biografia. Aliás, outro elemento que compartilhamos, quando penso na literatura periférica, é que, às vezes, um elemento externo (a necessidade de dizer, de gritar, denunciar uma realidade insuportável) sobrepõe a lógica interna da obra e há um desequilíbrio – o braço de força entre esses dois componentes, que, no final das contas, define as produções artísticas, é oscilante nalgumas passagens. Fiquei curioso para saber como isso se desenvolve nos outros livros do autor, visto que ele segue por um caminho muito próximos ao de Conceição Evaristo: a partir das experiências vividas, ele dá vazão à fabulação, de tal modo que os limites entre realidade e ficção se perdem para o leitor e para o crítico igualmente. Nesse sentido, seria interessante ler Aquele que é digno de ser amado tendo em consideração a autobiografia Pão Nu (1972) (No Brasil, o livro foi traduzido em 1983) do autor marroquino Mohamed Choukri, pois, os mais de quarenta anos que os separam provocaram um deslocamento do espaço da memória, que, no caso de Choukri, ocupava um lugar de testemunho ou denúncia da realidade (não por acaso, o subtítulo da tradução brasileira é “A descoberta do mundo e do corpo por um menino marroquino”), enquanto, para o jovem escritor, a memória é um espaço de criação, o que expande os alcances políticos da ficção, já que Abdellah é Ahmed e Ahmed não é Abdellah. Este movimento parece se assemelhar, quando pensamos na literatura brasileira, por exemplo, ao que existe entre Quarto de Despejo (1960) de Maria Carolina de Jesus e Becos da Memória (2006) de Evaristo, quer dizer, há uma apropriação da própria experiência, uma tentativa de remendar o tecido devastado da história através da literatura.

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