Por Pedro Fernandes
Ao que parece o cinema brasileiro
acompanhou de alguma maneira certa tendência das nossas letras, que a foi a de
recontar a vida de determinadas figuras caras à história e à cultura nacionais. A explosão
das biografias entre as últimas décadas do século XX chegou a mexer com os
interesses dos possíveis biografados ao ponto de levantar um acirrado debate
jurídico acerca da legitimidade ou não do contar a vida alheia sem o registro de permissão da
personagem. Mas entre a proibição ou não, este continuou a ser um gênero que,
desde seu auge, mobiliza de maneira perene públicos diversos; talvez, a
explicação para tanto esteja em uma qualidade quase formadora de certo modo de
ser brasileiro, que é o nosso provinciano interesse de bisbilhotar a vida
alheia, saber do outro e da sua intimidade. Somos também um povo afeito ao culto e à fabricação de ícones populares e assim o que não nos falta é material.
Ney Matogrosso é uma dessas
figuras e os materiais disponíveis acerca da sua vida e obra são
significativos. Na biografia, por exemplo, publicou-se em 2021 o livro de
Julio Maria, que sucedeu o de Denise Pires Vaz,
Um cara meio estranho,
de 1992; mas, antes já estavam disponíveis
Vira-lata de raça (2018) — memórias
organizadas por Ramon Nunes Mello — e
Primavera nos dentes (2023), de Miguel de
Almeida, que passa em vista a história meteórica dos Secos & Molhados, o
grupo revelador da figura incapaz de se conter por grupos quaisquer que fossem.
De modo que, um cineasta interessado em recontar a vida do intérprete não
estaria no escuro; e ainda tinha à disposição o próprio artista — um dos que não
assinaram pelo fim da biografia não-autorizada e sempre pareceu solícito com os interessados por sua história.
As dificuldades de Esmir Filho na
feitura de
Homem com H, portanto, eram outras, igualmente básicas de
toda cinebiografia: dar conta de uma vida intensa, circunscrita numa passagem
da história de igual teor, seja na cultura, seja na política, no curto tempo de
um filme e construir uma personagem que não caísse — como é fácil acontecer
nesses casos — na estereotipia. Para o primeiro caso, a solução era construir
uma narrativa que conjugasse as vidas comum e pública do retratado e a
história cultural e política a partir de um recorte adequado; para o segundo
caso, encontrar um ator capaz de evidenciar a persona ideal, crível para a
narrativa proposta e não caricato para o espectador. Passar ao lado desses problemas é de lei para um bom filme do tipo; caso contrário, o cineasta dará com pantomimas como
Silvio, de Marcelo Antunes, que
repassa as horas do sequestro do empresário e apresentador Silvio Santos,
ou, para citar produtos estrangeiros, os igualmente ridículos
Bohemian Rhapsody, dirigido por Bryan
Singer, e
Maria Callas, de Pablo Larraín.
Homem com H está fora dessa lista. É um filme
irregular, mas não cai nos erros mais grosseiros do gênero. Tampouco recorre àqueles clichês que visam ressaltar certo heroísmo
ou reviravolta do protagonista; também não recai no erro da celebração ou do melodrama. Ao ser
questionado sobre sua biografia numa entrevista recente, Ney Matogrosso, a personagem de Esmir Filho, definiu
que sua vida se fez aos trancos e barrancos até alcançar esse instante de certa
apoteose — e merecida celebração, diga-se — em torno de seus feitos. Essa parece uma boa definição para o filme em evidência. Embora exista a tentativa de feitura de uma narrativa circular —
o início com uma criança absorta com a selva, um certo menino Mogli, e o fim com uma
transição entre o homem de maturidade para o próprio cantor que se faz
intérprete de si mesmo outra vez em meio da floresta, signo que se repete como
fio ao longo da narrativa fílmica, como na sutil e expressiva referência ao clipe de “América do Sul” —, é a forma continuamente aberta a qualquer
estímulo cujo interesse seja o de esclarecer parte da vida do biografado. Daqui, sua irregularidade: a aproximação dos vários estilos e recursos perseguidos pela cinebiografia, mas sem oferecer uma unidade nesse sentido porque tudo se encontra absorto por acompanhar o registro do seu biografado.
É isso que faz em algum momento o cineasta se esquecer que possui um enredo, deixando transparecer a crise do
diálogo e preenchendo essa lacuna pelo frenesi da música, recorrendo ao tratamento
de colagem, como se estivéssemos diante um musical. Este é, aliás, seu defeito
maior — tirando alguns deslizes de composição de cenário —, no que chamo de irregularidade do filme, o que demonstra
outra dificuldade imposta para cinebiografias que lidam com a vida de alguém
ligado à música, a de recortar o repertório que funcionará como a dorsal da
história. É visível que a estratégia adotada foi a de integrar canções
que a letra correspondesse, de alguma maneira, a instantes da vida de Ney
Matogrosso, capazes de traduzir atmosferas ou o lado interior do protagonista,
este que a arte de matriz teatral nunca consegue acessar; “Encantado” para dar
conta do enlace com Cazuza ou o evidente “O mundo é um moinho” para a sintetizar a
complexidade da relação entre pai e filho — outro dos fios, este narrativo, que
percorre todo filme junto com o convívio afetuoso com a mãe — são dois exemplos
nesse sentido.
Nesse caso, a música é também uma maneira de corroborar com o papel da canção para Ney Matogrosso, evidenciando um intérprete radical e ao mesmo tempo sentimental, em que tudo deve estar perfeitamente articulado com a sua disposição interior para que a interpretação fosse acertada. O próprio filme, aliás, expõe isso, ao registrar o impasse do cantor entre considerar ou não o baião do paraibano Antônio Barros, “Homem com H”, no seu repertório.
E, por referir ao repertório, a seleção musical é
perfeitamente acertada; ela é ainda a prova de que Esmir Filho preferiu não
acompanhar o seu biografado por uma perspectiva experimental, embora lide com
alguns truques de câmera que ajudam de igual maneira na produção desse sentido,
como é o caso das filmagens da primeira apresentação de Ney Matogrosso com os
Secos & Molhados: a maneira como capta a incontida flexibilidade
camaleônica do cantor num espaço minúsculo é significativa para o
estabelecimento da ideia de homem-bicho com a qual reiteradas vezes a própria
personagem se define e para um ainda indefinido artista de interioridade
repleta de pulsão criativa que, se não se ajusta com o passar do tempo, se
dispersa até a imagem final de um minúsculo Ney num palco e público excessivos
interpretando a canção de Sérgio Sampaio, que, nos truques de unir o conteúdo musical
ao conteúdo narrativo, é uma síntese correta da vida do cantor.
O repertório também acompanha a
linha cronológica com que o cineasta preferiu desenvolver o enredo, sinalizando
para o espectador, à maneira de um documentário ou de uma tábua da vida, o
período dos acontecimentos. São poucas as incursões pelo recurso do flashback,
apesar de muitas as maneiras de lidar com o movimento pendular do tempo. Aliás, parece
que o experimental não utilizado estava num tipo de narrativa capaz de avançar
e voltar livremente no tempo para evidenciar as metamorfoses do homem-bicho.
Mas, tudo isso foi atenuado sob a perspectiva da continuidade temporal, o que é válido se considerarmos um elemento essencial para a obra artística, o público. E é
aqui que ocorre outra lacuna: a crônica dificuldade de fazer com que o tempo
seja o mesmo para todos. Ney cresce, se desenvolve, mas os pais gastam um tempo
maior para envelhecer e não há luz baça que esconda isso, balança o
desenvolvimento do verossímil.
Se este é um dos problemas para o
filme, não é a reconstrução das múltiplas apresentações públicas do cantor — outro desafio que podemos acrescentar na feitura de cinebiografias de figuras ligadas à música. A
atmosfera das festas está perfeitamente reconstruída; na era em que estamos,
quando as pessoas têm dificuldades de distinguir os registros documentais dos
ficcionais, Homem com H produziu cenas que não tarda cairão na vida
virtual como sendo do verdadeiro Ney Matogrosso. Ainda mais com uma atuação tão
irretocável como a de Jesuíta Barbosa. É ele o responsável por esconder todos
as dificuldades da produção — as que apontamos e as que deixamos de apontar —,
porque nos mantém seduzidos, como hipnotizados, do início ao fim da narrativa;
esquecemos o ator, como é devido, e encontramos a própria personagem, nos
trejeitos, nas expressões, nos modos, na dicção e como desenvolve as muitas
performances. É o tipo de atuação que reafirma um talento e esmero para a
sétima arte que acompanhamos desde há algum tempo. E não é fácil para um ator
assumir uma personalidade tão marcante como a de Ney Matogrosso.
Talvez aqui encontremos que a
dificuldade superada por Jesuíta Barbosa foi a mesma que fez Homem com H
um filme, como dissemos, irregular. Afinal, como é possível extrair unidade de
uma biografia em que a vida inteira do biografado foi encontrar saídas para
escapar do que é comum e nesse percurso, deslizante, franqueou uma trajetória
individual e inalcançável por qualquer um que dentro e fora da sua geração tem
se assumido indevidamente como visceral? (Indevidamente porque visceral poderia
ser patenteado adjetivo exclusivo de Ney Matogrosso). Quer dizer, resultaria
pouco crível, se este fosse um filme regular, ignorando a vida aos trancos e
barrancos. É uma cinebiografia, ainda que não totalmente, bem à medida do
biografado: o único menino Ney que realmente importa a esse Brasil careta e
hipócrita que se quer impor desde quando um rapaz saiu de casa em Bela Vista,
no Matogrosso do Sul, carregando a condena de um pai militar.
Comentários