A escrita em suspenso dos diários de Sartre

Por Rafael Kafka


           
Li os diários de Sartre quando tinha 19 anos e iniciava o curso de Letras no antigo CEFET/Pa. Eu estava conhecendo a obra do filósofo existencialista, bem como de sua companheira, Simone de Beauvoir, e muito me interessou ler algo mais ligado a sua intimidade, até porque já na época eu demonstrava o interesse de manter um diário pessoal, mas sem as baboseiras típicas do gênero. Quando criança, tentei de todas as formas manter diários durante um certo período, porém tropecei diversas vezes no fato de ver na minha vida algo desinteressante demais, rotineiro demais. Adulto, percebo que na verdade quando crianças temos um olhar fantasioso demais que nos ajuda a lidar melhor com os demônios da realidade objetiva, algo bem retratado por Alê Abreu na animação brasileira O menino e o mundo, concorrente ao Oscar desse ano. Se tivesse colocado no papel as agruras de quando criança, provavelmente eu teria feito um belo esboço de autobiografia, cheio de imagens interessantes de um contexto social e familiar conturbados os quais, provavelmente por questão de sobrevivência, ignorei, fingindo viver uma realidade calma e tediosa.

Minha adolescência também era carente de cenas impactantes a serem narradas, o que inviabilizava o gênero do diário pessoal ainda mais. Para piorar, nessa fase nossos devaneios já se voltam para aspectos do mundo adulto os quais queremos em nossas vidas, como o casamento, e por isso eu pensava demais em quando conheceria a mulher que faria minha vida valer a pena, ao passo que quando eu era criança devaneava acerca das aventuras que teria quando crescesse e pudesse desbravar o mundo. Por conta dessa falta de hábitos, eu gostaria de fazer um diário que servisse de espelho do mundo, não centrado apenas em meu eu, mas no que eu via, no que me rodeava. Quando vi o diário de Sartre no acervo da biblioteca do CEFET, fiquei surpreso com o modo como ele colocava naquelas páginas uma série de situações de sua dia, ao mesmo tempo que esboçava uma filosofia da existência que já começava a me encantar.

Todavia, a edição lida por mim naquele ano de 2008 não tinha o primeiro caderno e a leitura feita então me ajudou a desenvolver uma visão ingênua do existencialismo que me gerou uma série de problemas psicológicos complicados, como o vício de me cobrar demais. Ora, se acredito ser condenado a ser livre, como lerei nos outros textos de Sartre, tudo o que eu sentia de ruim era culpa minha e eu deveria lidar melhor com isso. Como os meritocratas de hoje adoram dizer, eu deveria aprender a não me fazer de vítima de meus problemas.

Somente agora, percebi que já em seus diários Sartre falava do conceito de situação, algo que se liga ao seu conceito de liberdade, e que jamais devemos tirar de nosso horizonte de leitura. A situação nos afeta e nos oferece um horizonte de ação, no qual agiremos por meio de nossa liberdade. Somos condenados a ser livres dentro de nossa situação e não temos como abrir mão de nossa mundanidade. Assim, passei anos ignorando esse conceito de Sartre, entendido melhor por mim quando li O segundo sexo, de Simone, tempos depois.

Por conta disso, a releitura de um livro se mostra não apenas como uma revisita ao que lemos anteriormente, mas ao que éramos naquele momento. Nossa leitura muda em um segundo momento porque nós mudamos: temos um outro cabedal de saberes e experiências a influenciar as informações lidas e processadas naquele momento. Umberto Eco, saudoso, reforçou isso em ensaios de seu Obra aberta e Julio Cortázar fez questão de fazer uma obra provocativa por deixar ao leitor, em diversos momentos e de forma bem clara, a responsabilidade dar sentido a ela. Assim, o meu eu de 27 anos se encontrou com o de 19 e pude fazer uma série de reflexões acerca de conceitos defendidos então e conceitos defendidos hoje e nesse meio tempo. Lembrei-me, por exemplo, de defender o chamado humor politicamente incorreto por defender de forma tola, como Fernanda Torres, que até já se retratou, fez com o feminismo nos últimos dias, uma posição cômoda para certas pessoas de dizer que a maldade está nos olhos de quem a vê. Uma piada com um negro só soa racista na mente de quem é racista. Usei a má-fé exposta por Sartre em muitos anos para defender diversos lugares comuns que hoje infestam nossas redes sociais e sempre se mostram em minhas memórias do Facebook… A condenação à liberdade para mim era vista como uma desculpa para criticar todos aqueles que “se faziam de vítima” e minha má-fé era dupla, pois aluno de escola e instituição de ensino superior pública, eu estava tendo a mesma atitude do indivíduo que pobre vota contra os direitos trabalhistas e demais lutas da classe operária.

Os diários na verdade me suscitaram diversas outras reflexões interessantes e as notas tomadas dariam origem a um sem número de postagens nos espaços em que escrevo. Uma delas que mais me provocou foi o fato de durante anos eu considerar Heidegger um filósofo de gabinete e por isso mesmo tão amado na academia, a qual ainda insiste em fugir das temáticas sociais mais concretas. Mas foi justamente Heidegger, ao lado de Simone, que me fez entender melhor esse conceito de situação, até por ter sido ele, em ordem cronológica, o primeiro a usá-lo e cunhá-lo entre os três aqui citado. Ainda assim, o que quero dizer é que na ordem cronológica de minha vida, Heidegger foi o sujeito desprezado o qual me ajudou a entender melhor e a revisar antigas posições minhas. Bem irônico, não? Mas leitura é justamente isso: todo livro, por mais tolo que o julguemos, serve de alguma coisa no sentido de nos fazer entender algo. Se os livros com temáticas românticas demais ainda fazem sucesso numa época de amores cada vez mais líquidos, então devemos entender  melhor o porquê de isso ocorrer e provavelmente teremos uma visão mais plena dos fenômenos sociais ligados ao amor de nossa sociedade.

No geral, os diários de Sartre me levaram a ver em sua filosofia existencial uma filosofia da suspensão existencial humana. Ele se utiliza no título do segundo tomo de Caminhos da liberdade do termo sursis,o qual representa um estado de suspensão temporal da pena sofrida por uma pessoa. Em suma, a pessoa sabe que sofrerá a pena, mas ainda não a sofre, tendo tempo de se preparar para a mesma. O sujeito se encontra então sofrendo de algo que ainda não está sofrendo. O conceito de tempo usado por Sartre e sua visão da existência humana como algo a se projetar e a se concretizar nas escolhas feitas gera em mim a impressão de que o sujeito humano é um eterno em suspenso, um eterno quase ser. Hoje, somos algo e amanhã queremos ser outro algo: chegando lá, temos a impressão de que somos em parte o que queríamos ser. Cada vez que o ser se concretiza em projetos, ele se sente em descompressão novamente e precisa reiniciar a busca por essa concretude em um projeto futuro. Assim, sentimos a morte já nos tocando mesmo sem ela ainda ter ocorrido, porém isso fica mais evidente na filosofia heideggeriana do que na de Sartre.



Os próprios diários de Sartre em sua escrita geraram essa sensação de em suspenso metalinguístico em mim. Sartre não faz seu diário como um sujeito o faria, ao menos em tese, normalmente. Não há ali uma despreocupação em simplesmente escrever o que o aflige. O filósofo escreve aqueles cadernos para serem lidos no futuro, seja pelas pessoas próximas, Simone e seus demais casos amorosos de então, seja pelo grande público quando, após a morte, o texto vier à tona. Nesse sentido, os diários sartreanos não apresentam a linguagem da maior parte dos diários pessoais, nem as repetições e linguagem truncada de momentos de desespero, algo muito comum também nesses gêneros e suportes textuais. Sartre usa a mesma linguagem ensaísta de seus futuros ensaios, tentando assimilar o uso correto de termos ligados à fenomenologia, resenhando obras lidas por ele, analisando perfis de pessoas com as quais convive e se analisando enquanto sujeito escritor e escrevente.

Em diversos pontos do diário, ele mesmo refletirá acerca dessas relações entre esse caderno e seus demais trabalhos. Fica evidente que o diário é tratado por ele como um livro, como uma obra, ainda mais se compararmos sua escrita com os trechos do diário de Simone transcritos para algumas de suas autobiografias. O princípio morto desses diários é analisar a guerra e a situação de Sartre nela, deixando evidente por meio de tal conflito o conceito de situação: Sartre é livre para escolher viver de certa forma na guerra, mas não é livre para ignorar o problema, pois ele o afeta. Percebemos aqui a mudança de viés da filosofia existencialista, a qual passa não focar mais apenas no indivíduo fechado em si, visando também sua situação e seu contexto social, o que fará, anos depois, ela desembocar no marxismo.

Em diversos momentos do texto, e as notas ajudam a elucidar isso, Sartre deixa de expor determinadas situações com receio do choque causado em pessoas diretamente envolvidas com ele naquele momento. Isso por si só já serviria para questionar severamente esse diário como um diário pessoal em si, estando mais para um conjunto de esboços de ideias aplicadas a situações concretas. Ainda assim, julgo seu valor para o leitor muito grande, pois mostra um Sartre aprendendo na prática da guerra não estar sozinho no mundo e observando nas pessoas de carne e osso os conceitos aprendidos por ele em suas leituras e agora ampliados para o desenvolvimento de seu método de análise da existência.

A edição da Nova Fronteira ainda propicia a leitura de anexos baseados nas cartas de Sartre a Simone, as quais quero ler o quanto antes. Por meio dessas cartas, percebemos como a escrita do filósofo muda consideravelmente, até mesmo com certos romantismos, de um gênero para outro. Aqui, poderíamos iniciar uma outra reflexão, acerca da influência que os gêneros textuais exercem em nossa rotinas existenciais e como eles nos mudam em nosso âmago. O modo como escrevemos e lemos nossa história nos diversos suportes textuais cotidianos interferem profundamente em como vemos e sentimos a existência. Não à toa vivemos em uma era idiotizada, marcada pelo uso constante do celular e por conversas virtuais longas as quais não levam a lugar algum.

Portanto, a escrita do diário sartreano também é em suspenso, pois fica no meio caminho entre o escritor a produzir uma obra e um escrevente a defender uma visão. Sartre, preocupado naquele que deveria ser seu momento de escrita mais íntima, revela-se como alguém a moldar sua imagem, a criar de si mesmo uma personagem, também se colocando em suspenso entre a pessoa real e a literária, questionando implicitamente se literatura é ficção ou criação em cima do real vivido por nós.

A experiência de guerra de Sartre também é em suspenso, pois nos meses em que escreveu avidamente nesse diário suas notas ele não viu a guerra em si. Sua experiência lembra por demais a do agrimensor K, em O castelo, com direito à comparação entre seus acólitos e os ajudantes atrapalhados do protagonista do romance de Kafka: a guerra, como o castelo, é uma presença ao mesmo tempo concreta e indubitável e fugaz. Preocupado em ser autêntico, Sartre chega a desejar ser enviado à linha de frente, mesmo diante dos óbvios riscos trazidos para sua segurança.

Por fim, Sartre faz do diário um espaço de trabalho e ali podemos ver diversas das coisas a serem escritas em seus futuros ensaios, em especial O ser e o nada. Para quem quer conhecer a obra do filósofo mais a fundo e já entrou em contato com alguns de seus textos literários, por ter aqui a primeira versão, digamos assim, de seu maior livro, a leitura desses diários se mostra como um interessante ponto de contato e aprendizado a quem se interessar pelas visões de mundo do pensador existencialista. Mesmo sem pretensão, tais diários se mostram uma leitura provocativa, em seja no sentido das reflexões sobre a guerra, os conceitos ali rascunhados ou essas questões implícita sobre o ato de escrever, além, é claro, dos elementos biográficos ali presentes.

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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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