Seis poemas de Rabindranath Tagore

Por Pedro Belo Clara

Rabindranath Tagore. Foto: Curatorial Assistance Inc. / E.O. Hoppé Estate Collection


 
O PRIMEIRO BEIJO
 
O céu ficou silencioso e de olhos baixos,
Os pássaros calaram todos os seus cantos;
O vento emudeceu; a música das águas acabou
De repente; o murmúrio da floresta
Morreu lentamente no coração da floresta.
Na margem deserta do rio tranquilo,
Nas sombras do anoitecer desceu silenciosamente
O horizonte sobre a terra muda.
Nesse momento no silencioso e solitário alpendre
Beijámo-nos pela primeira vez.
Nesse momento exacto, ao longe e perto
Repicaram os sinos e soaram os búzios
Nos templos dos deuses apelando ao culto.
Um estremecimento percorreu o infinito mundo das estrelas
E os nossos olhos encheram-se de lágrimas.
 
 
INTERMINÁVEL AMOR
 
Parece-me que te amei de inúmeras maneiras, inúmeras vezes,
Na vida após vida, em eras após eras eternamente.
O meu coração enfeitiçado fez e voltou a fazer o colar das canções
Que tomaste como uma prenda, usando-o à volta do pescoço de tantas e tantas
         [formas.
 
Na vida após vida, em eras após eras eternamente. 
Sempre que oiço as antigas crónicas do amor, a sua antiga dor,
O seu antigo conto de estar só ou acompanhado,
Quando contemplo o passado, no fim tu apareces
Vestida com a luz da Estrela Polar que trespassa a escuridão do tempo:
Tornas-te uma imagem do que é recordado sempre.
 
Tu e eu flutuámos aqui na corrente que traz da nascente
Para o coração do tempo o amor de um pelo outro.
Representámos lado a lado milhões de amantes, partilhando
A mesma tímida doçura do encontro, as mesmas amarguradas lágrimas do adeus –
Antigo amor, mas renovando-se e renovando-se sempre.
 
Hoje ele acumulou-se aos teus pés, encontrando o seu fim em ti,
O amor de todos os dias, de todos os homens, do passado e de sempre:
Universal Alegria, universal mágoa, universal vida,
As recordações de todos os amores surgindo com este nosso amor -
E as canções de todos os poetas do passado e de sempre.
 
 
JULGAMENTO
 
Não julgues...
Habitas num recanto mínimo desta terra.
Os teus olhos chegam
Até onde alcançam muito pouco...
Ao pouco que ouves
Acrescentas a tua própria voz.
Mantém o bem e o mal separados, o branco e o negro,
Cuidadosamente separados.
Em vão traças uma linha
Para estabelecer um limite.
 
Se houver uma melodia escondida no teu interior,
Desperta-a quando percorreres o caminho.
Na canção não há argumento,
Nem o apelo do trabalho...
A quem lhe agradar responderá,
A quem lhe agradar não ficará impassível.
Que importa que uns homens sejam bons
E outros não o sejam?
São viajantes do mesmo caminho.
Não julgues,
Ah, o tempo voa
E toda a discussão é inútil.
 
Olha, as flores florescem à beira do bosque,
Trazendo uma mensagem do céu,
Porque é um amigo da terra;
Com as chuvas de Julho
A erva inunda a terra de verde,
E enche a sua taça até à borda.
Esquecendo a identidade,
Enche o teu coração de simples alegria.
Viajante,
Disperso ao longo do caminho,
O tesouro amontoa-se à medida que caminhas.
 
 
UM QUADRO
 
Desenhei-te linha a linha com o meu pincel.
Das profundezas sem voz
Trouxe-te a este mundo,
Onde louvor e maldição estão repartidos.
Devido a esta minha arrogância,
Albergas alguma queixa
Contra o teu criador?
Enquanto permaneces sem te manifestares,
As miríades de formas do mundo dançam clamorosamente
Ao ritmo da criação e da destruição.
Esperavas no vazio
Por um artista que ouvisse o teu grito silencioso,
E te mantivesse
Dentro dos limites da luz e da sombra,
Branco e negro.
Passava muito perto
Quando o teu apelo despedaçou o espaço vazio do não-ser
E silenciosamente tocou a minha fronte…
Num sonho mal definido.
Do mar do informe
Trouxe-te ao mundo das formas;
Esta dor brilha
No coração da forma?
Devido a um defeito da beleza,
Deve a minha obra envergonhar-se,
Por não honrar o suficiente a verdadeira existência?
Que assim seja…
Porque um erro mortal da forma não se
Mantém para sempre,
E morre pelo seu próprio peso
Libertando-te de novo,
Emergindo do mar do informe, inexprimível!
 
 
O PÁSSARO MANSO E O PÁSSARO LIVRE
 
O pássaro manso vivia na gaiola,
e o pássaro livre no bosque.
Mas o destino de ambos
era encontrarem-se
e tinha chegado o momento.
 
O pássaro livre cantava:
— Amor, vem até ao bosque.
O pássaro preso dizia baixinho:
— Vem tu aqui,
vivamos os dois na gaiola.
E o pássaro livre dizia:
— As almas não podem expandir-se
entre grades.
— Ai — dizia o pássaro preso —
saberei eu pousar no céu?
 
O pássaro livre cantava:
— Meu amor,
canta a canção do campo.
O pássaro preso dizia:
— Fica a meu lado;
vou ensinar-te as canções dos sábios.
O pássaro livre cantava:
— Não, não, não;
ninguém pode ensinar as canções.
O pássaro preso dizia:
— Ai, eu não sei as canções do campo!
 
O amor deles é um desejo infinito,
mas não pode voar lado a lado.
Olham-se e tornam a olhar-se
através dos arames da gaiola,
mas é em vão o seu desejo.
 
Batem as asas, nostálgicos,
e cantam:
— Aproxima-te mais, aproxima-te mais.
O pássaro livre grita:
— Não posso.
Que medo me causa
a tua gaiola fechada!
O pássaro preso canta baixinho:
— Ai, não posso.
As minhas asas morreram!
 
 
*
 
Quando a morte chegar e me sussurrar:
“Os teus dias chegaram ao fim”,
vou dizer-lhe: “Vivi em amor
e não no tempo.”
Se ela perguntar: “E as tuas canções sobreviverão?”
Responderei: “Não sei, mas de uma coisa tenho a certeza,
é que quando canto, encontro a minha eternidade.”
 
 
______
 
 
Rabindranath Tagore é decerto um dos autores mais versáteis, ilustres e de fino calibre que a Índia ofereceu ao mundo, extrapolando facilmente as fronteiras do seu berço para afirmar-se com uma universalidade rara. Porém, antes de abrir caminho à imortalidade era já uma figura de relevo na sociedade da época — tanto na oriental como na ocidental.
 
Nasceu em Calcutá, em 1861, no seio duma família abastada da mais alta casta indiana, os brâmanes. Longe da influência paterna, devido à intensa actividade da sua vida profissional, o pequeno Rabindranath cresceu no meio dos irmãos mais velhos, de sua mãe e dos criados da casa. Nesse contexto de maior liberdade, onde a escola era raramente frequentada, começou a revelar precocemente o seu talento artístico: com apenas oito anos de idade já escrevia poesia.
 
Três anos depois, na companhia do seu pai, deixa a terra natal e empreende uma extensa viagem pelo país. Lia com frequência, especialmente biografias, e começava a receber as primeiras lições de disciplinas tão complexas como a astronomia e o sânscrito. Pouco depois, a sua mãe falece.
 
Aos dezasseis anos começou a escrever os primeiros contos, romances e canções, editando alguns trabalhos no jornal da família, o Bharati. É nesta época que publica o seu primeiro livro, sob pseudónimo. Devido a essa decisão, os críticos da época acreditaram que os trabalhos pertenciam a um poeta indiano do século XVII, de seu nome Bhanusimha (o mesmo que Tagore escolhera), na altura um autor recém-descoberto. O lapso haveria de ser corrigido e, como convém, concedido o seu a seu dono.
 
Entre 1878 e 1880, estudou Direito em Inglaterra, regressando depois às origens para administrar as propriedades da família. Por esta altura, casa-se, dedica-se ao desenvolvimento agrícola das suas terras e empreende diversos projectos de conteúdo educacional e de saúde pública. Em 1901, um ano antes da sua esposa falecer, funda uma instituição de ensino com orientação filosófica.
 
Vivendo de perto todos os tumultos que o seu país atravessou na luta pela independência do domínio britânico, acabaria por tomar partido em diversas iniciativas de teor nacionalista. Inclusive, em 1920, é considerado o líder incontestável do movimento de libertação indiano — após a morte de Tilak, o dirigente anterior.
 
Além duma permanente intervenção social e uma intensa actividade artística, a sua vida preencheu-se de imensas viagens em torno do mundo e de encontros com personalidade de proa, como Einstein ou Gandhi, de quem era amigo próximo. Apesar de discordarem muitas vezes sobre diversos assuntos, Tagore admirava-o. Foi precisamente o ilustre poeta que popularizou o nome que ficaria para a posteridade: Mahatma, ou seja, “Alma Grande”.
 
Mas se muito rapidamente foi um autor conhecido e amado no seu país, só nos primeiros anos do século XX o ocidente viria a tomar um contacto vívido com alguma da sua obra, especialmente a poesia. Primeiro, graças a várias traduções para inglês escritas pelo próprio Tagore; depois, em 1912, através da edição da obra Gitanjali, “Oferenda Lírica”, que recebeu um prefácio de W. B. Yeats, confesso admirador seu.
 
Logo no ano seguinte, em 1913, recebeu o Prémio Nobel da Literatura, tornando-se no primeiro asiático a receber essa honra. A distinta academia justificou a escolha pelos “versos profundamente sensíveis, frescos e belos”. Pouco depois, é-lhe outorgado pela coroa britânica o título de “Sir”, honraria que viria a rejeitar em 1919 como protesto contra a violenta repressão, por parte do regime inglês, duma manifestação em prol da independência. (A população não estava armada, mas viu os seus intentos suprimidos pela implacável “lei da bala”. Estima-se que mil indivíduos tenham sido assassinados no célebre massacre de Amritsar, pelo qual o Reino Unido, oficialmente, nunca se desculpou.)
 
Mesmo que a sua vida familiar tenha registado diversos abalos, dado que poucos indivíduos terão assistido à morte de três filhos e do único neto, Tagore nunca cessou as suas viagens pelo mundo, a sua produção artística e uma intervenção activa em assuntos sobre os quais sentia o dever de exprimir a sua visão. Mais tarde, pelos sessenta anos, dedicou-se à pintura, chegando a expor em Paris. A estética de tais trabalhos poderá parecer estranha a muitos olhares, fruto também de algumas influências menos convencionais (arte tribal, por exemplo), mas provavelmente por Tagore sofrer dum certo tipo de daltonismo. Contudo, o seu trabalho foi aceite e aclamado. Crê-se que tenha produzido mais de cem gravuras.
 
Não se duvide que a nível artístico concretizou profundas reformas na arte bengali graças à sua visão e abordagem inovadoras, com as quais rompeu as rígidas estruturas clássicas então vigentes. É até considerado o pai do conto nesse dialecto da Índia. Curiosamente, tornar-se-ia na única pessoa a escrever o hino nacional de dois países: Índia e Bangladesh — inspirando também, ainda que vagamente, o hino dum outro, o Sri Lanka.
 
Colocando agora o nosso foco na sua produção literária, pela qual é universalmente reconhecido, dir-se-á que a sua prosa, ainda pouco acessível no mundo ocidental, inclina-se mais para assuntos de índole humanista, abordando questões políticas da época e as relações humanas no âmbito familiar, mas também no que ao intricado contexto social indiano diz respeito: o seu sistema de castas. Mantém uma grande elegância, uma concisão louvável e o lirismo tão característico da sua poesia. No fim, contam-se oito romances, cerca de cinquenta ensaios, diversos contos e algumas peças de teatro. Será a obra A Casa e o Mundo, editada em 1916, talvez a mais destacada nesta área de trabalho — exceptuando os diversos ensaios onde defendeu a independência indiana.  
 
Já a poesia de Tagore, decerto o seu grande ex-líbris, parte duma herança clássica, de vincado naturalismo, para anos depois quebrar formalidades e entrar nos meandros do simbolismo. Exala uma voz deveras original, marcada pela clareza da objectividade — mesmo quando metafórica, o discurso poético sabe ser limpo. Atravessando cenas do quotidiano, bem como sentimentos comuns, permite captar e transmitir uma extraordinária força vital, nascida essencialmente do brilho das pequenas coisas e do enorme génio do seu criador.

Não obstante, também se verifica uma busca pelo transcendente, uma ânsia profunda de comunhão com o divino, o que faz com que Tagore seja tomado, sem grande polémica, por um poeta místico, herdeiro de vozes tão marcantes como as de Rumi, Kabir (seu conterrâneo) ou Hafiz.  
 
Dotados duma musicalidade ímpar, não fosse Tagore também um músico (e autor de mais de duas mil canções!), os seus versos exalam amiúde uma aguçada sensibilidade e um constante apelo ao belo, sendo ao mesmo tempo quase sempre coloquiais e de inclinação meditativa. O lirismo dos mesmos e uma intensa noção contemplativa são, assim, dois inegáveis factos a eles inerentes. Além da obra já referida, que basicamente lhe valeu o Nobel, importa destacar O Jardineiro, de 1913, outro dos seus maiores trabalhos poéticos, assim como Aves Errantes, de 1916, um belíssimo exemplar de poesia de inclinação aforística.
 
Rabindranath Tagore, “O Bardo de Bengala”, faleceu em 1941, nove anos antes da sua amada Índia ser proclamada República, deixando para trás uma obra extensa em vários campos artísticos, ainda hoje capaz de influenciar e encantar novas gerações.
 
 
Nota
 
Os primeiros quatro poemas aqui publicados são fruto do trabalho de José Agostinho Baptista, editados em Rabindranath Tagore, Poesia (Assírio & Alvim, 2004). O quinto poema é uma tradução de Manuel Simões, presente na obra Coração da Primavera (Editorial A.O., 1981). Já o sexto e último poema apresentado foi traduzido por Joaquim M. Palma e compilado em A Asa e a Luz, editado pela Assírio & Alvim em 2016.
 

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