A arte da brevidade ou tratado despoético sobre o haicai

Por Léo Prudêncio

Fotografia Nicholas Bell


vem bashô na trilha
estreita: olha acima e “eita”
um haicai lhe brilha

- o poeta de meia-tigela


tratado escrito de maneira descompromissada para abordar sem muita falácia a respeito do haicai e suas ramificações abrasileiradas. espero, por meio dessa desescrita, clarear nem que seja um pouco os anseios de quem planeja se arriscar a compor haicais. ou mesmo atrapalhar os estudos sobre o haicai. tratado sem fins lucrativos. isso é uma antipoética à la aristóteles & cia.


inicialmente: o haicai é uma poética oriental e bastante popular no japão. os versos de matsuó bashô, e sua vida como andarilho, popularizou esta escrita e pensamento filosófico, pois o haicai também envolve filosofia, ele não é um mero verso descritivo.


marcelo tápia comenta:

“...o haikai origina-se do tanka ou waka, forma de poema breve com 31 sílabas, que, em sua divisão clássica, é constituído de um terceto (com versos de 5,7 e 5 sílabas) e um dístico (tendo, ambos os versos, 7 sílabas). a maneira preferida de criação do tanka era fazer-se no dístico um comentário sobre o terceto que o antecedia. esse procedimento favoreceu que o poema passasse a ser composto em forma dialogada, ou seja, por duas pessoas, uma incumbindo-se da primeira estrofe, denominada hokku, e outra da segunda, chamada wakiku. acentuou-se, assim, a independência das partes da composição...”


hai: gracejo, brincadeira; kai: harmonia, realização.


pode-se grafar em português do brasil: haiku, haikai, haicai ou hai-kai.


citação de antonio carlos secchin:

“afrânio peixoto, em 1919, teria sido o primeiro escritor do país a referir-se ao haicai, no prólogo a Trovas populares brasileiras, chegando ao exagero de afirmar que, no japão, o haicai “é uma sensação lírica que todos sentem e podem exprimir”. no brasil, o tanca, por sua vez acendeu a título de livro em 1961, com Tankas e haikais, de lyad de almeida (a rigor, nem uma coisa, nem outra.)”


no tocante a teoria elaborada por guilherme de almeida para o haicai: particularmente não a uso e a considero desnecessária. pois o haicai é uma arte zen e descomplicada de teorias métricas e rimáticas. quem conhece o mínimo sobre literatura japonesa, principalmente a poesia, sabe que a rima é praticamente desusada na arte poética oriental. mas cada poeta é uma mente, mas, a meu ver, enquanto pesquisador do haicai, o método guilhermino não me é uma regra rígida e nem tampouco interessante chegando ao ponto de ser seguida. pois o rigor elaborado pelo poeta citado retira a simplicidade do haicai, esta sim, característica fundamental para a sua elaboração.


o haicai tradicional, do séc. xvi, não possuía título e nem usava letras maiúsculas.


a forma do haicai, para guilherme de almeida, além de conter título e letras maiúsculas, contem dezessete sílabas, divididas em três estrofes. a primeira e a terceira com cinco e a segunda com sete. sendo que a última sílaba da primeira estrofe deve rimar com a terceira e na segunda estrofe há uma rima “interna”. formando o seguinte esquema poético:

[Título]

- - - - a
- - b - - - b
- - - - a

exemplifico melhor fazendo uso de um dos seus haicais:

O pensamento

O ar. A bolha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.

parece que guilherme de almeida quis fazer do haicai um filho adotivo do soneto ao empregar-lhe o jogo de rimas com o título. guilherme é sempre visto como o introdutor desse gênero em nosso país. portanto ele é um pioneiro, mas nem por isso o melhor ou um dos melhores.


trecho colhido de um ensaio-apresentação-de-livro escrito por alice ruiz:

“no ocidente, buscamos a novidade, a originalidade ao fazer poemas. mas esse conceito muda na poesia nipônica, até por se inspirar apenas na natureza que sempre se repete, ainda que de formas distintas. o poema japonês nunca fala sobre os pensamentos ou sentimentos do poeta. embora eles possam aparecer na escolha das imagens”


ainda sobre ensaio de alice ruiz: não importa se as palavras e imagens se repitam em vários poemas, o que importa é que tais produções possuam sabor de haicai, pois de nada vale ter teoria se o poeta não estiver em contato, além-físico, com a natureza e suas representações.


o que sabemos hoje sobre os haicais de bashô, segundo paulo leminski, é graças aos seus diários. enquanto andarilho, e porquê não dizer: pregador das boas novas haicarianas, o poema anotava as suas impressões de viagem. anexava ou anotava junto em suas descrições os haicais que lhe ocorriam.


bashô não inventou o haicai, ele apenas o popularizou mais ainda e o descomplicou de regras rígidas.


o haicai está para a cultura oriental assim como o cordel está para a cultura nordestina brasileira.


o haicai é uma arte solitária, individual. também: breve e simplista.


sobre o conteúdo de cada verso contido no haicai paulo leminski em um ensaio biográfico sobre matsuó bashô, comenta:

“o primeiro verso expressa, em geral, uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não humana, normalmente uma alusão à estação do ano, presente em todo haicai.”

“o segundo exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual.”

“a terceira linha do haikai representa o resultado da interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento.”


logo, o começo do poema faz referência a um local ou a uma estação do ano. sobre os locais é recorrente o uso de lagoas, casas, jardins, mares, árvore. sobre a estação do ano, nem sempre é explícita, às vezes ela é supracitada com suas características. como por exemplo, se falo sobre flores, é claro que me refiro à primavera; se falo sobre um dia ensolarado, me refiro ao verão; e, por aí vai.

sol imenso lá fora
é dia – hoje não faço poesia
vivo o dia de sol

- nydia bonetti


a temática desses poemas não se restringe apenas a desenhar verbalmente uma paisagem. o haicai pode abordar outras temáticas, até mesmo bashô fez isso. há poemas que falam de forma humorística. há os que abordam temáticas filosóficas. os haicais lírico-amorosas. os descritivos. os religiosos, autobiográficos.

isto: solidão
do ser: mi(s)to do não-ser:
isto só lhe dão

- pedro xisto


o poema não deve ser uma vaga descrição verbal, mas sim, um olhar poético sobre determinado ponto. o olhar sem pressa e detalhado, retirando do que se vê: o lírico e o irreal.


alice ruiz comenta:

“quando se aprende outra língua, também se aprende outra forma de pensar e até de sentir. quando se aprende outra escrita, se aprende outra forma de estar no mundo. quando se aprende uma forma poética distinta da nossa, se aprende outra forma de ser. e, se isso não vale para todas as formas poéticas, com certeza vale para o haikai.”

...

o tempo é importante para a linguagem haicairiana. Há sempre citações sobre o tempo: dia, noite, chuva, dia nublado, estação do ano, mês do ano, dia e mês do ano...


aristóteles em sua arte poética cita que o poeta não deve ser apenas mero copiador da vida, isso lembrando o conceito de mimese, o poeta deve apenas contar o que de fato aconteceu, mas sim fazer uso desse acontecimento e o recontar como ele poderia ter acontecido. um bom haicaísta possuí visão aguçada, como o poeta manoel de barros:

uma rã me benzeu
com as mãos
na água


o haicai deve ser igual ao ataque de um samurai: simples, profundo e mortal.


interessante o comentário de roland barthes:

“o “referente” do haicai (aquilo que ele descreve) é sempre particular. nenhum haicai trata de uma generalidade, por conseguinte, o gênero haicai é absolutamente puro de todo processo de redução”


outra vez barthes: “o haicai é breve, mas não acabado, fechado.”


o haicai é a arte da espontaneidade. mas mesmo assim não há nada de errado em refazer seus poemas. o haicai aceita a reescrita. bashô dizia a seus discípulos que eles deviam reescrever seus poemas quantas vezes necessário. é a prática que leva ao aperfeiçoamento em qualquer ramo artístico. conforme r. h. blyth:

“bashô não era um grande gênio de nascença. durante os primeiros quarenta anos de sua vida, não produziu nenhum poema que pudesse ser chamado de notável, ou mesmo bom. bashô abriu caminho até os mais íntimos domínios da poesia por puro esforço e estudo, estudo aqui não querendo significar o mero aprendizado, mas a concentração do haikai do sentido espiritual da cultura que ele herdara.”
(tradução: paulo leminski)


haicai: impacto visual.


sobre a poesia japonesa atente-se ao comentário de haroldo de campos:

“o elenco visual na poesia japonesa é algo que lhe é intrínseco, que participa de sua própria natureza. não se trata, apenas, da metáfora visual, daquilo que ezra pound denominava “fanopeia” (“the throwing of an image on the mind's retina”), mas de alguma coisa ainda mais essencial, que radica na própria estrutura do kanji, o ideograma chinês que os japoneses importaram para sua escrita na segunda metade do século III de nossa era. o kanji que evoluiu de uma fase pictográfica (desenho do objeto) para uma notação extremamente sintética e estilizada, é, em si mesmo, uma verdadeira metáfora gráfica, tanto mais complexa quanto mais “abstratas” as ideias a veicular, pois com este sistema de escrita se podem, como é óbvio, representar não apenas coisas do mundo real, como também emoções, sentimentos, etc. (daí a pertinência do termo ideograma ou representação gráfica de ideias).”


priorizar um maior uso de substantivos que adjetivos. uso menor possível de conjunções.


o haicai segue as regras da arte do chá: harmonia; respeito; pureza e tranquilidade.


a linguagem utilizada nessa poética deve ser simples, a tal ponto que uma criança possa entender a gravidade lírica de um haicai. logo, um vocabulário bastante erudito invalida o poema.

O pássaro pousou no galho
- dançou três vezes -
e sumiu

- jack kerouac


o olhar para fora aguça o olhar para dentro.


mais uma vez barthes: “entre o haicai e a narrativa, uma forma intermediária, possível: a cena, a pequena cena.”

brevidade. síntese da paisagem debruçada. retorno a si. inventividade linguística.


mais uma vez pesco trecho de ensaio sobre o haicai que roland barthes fez:

“o haicai é desejado, isso significa que desejamos fazer um nós mesmos = prova decisiva (de amor): quando a gente mesmo quer fazer; do prazer do produto, infere-se um desejo de produção.”


o haicai segue contemporâneo devido a sua brevidade textual e intensa elaboração poética. ainda hoje ele é escrito e cultuado em nosso país, embora alguns se dediquem de mais e outros se dediquem de menos a sua elaboração.

Referências
BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.
BARTHES, Roland. A preparação do romance. São Paulo: Martins Fontes, 2005, vol. 1.
BONETTI, Nydia. Sumi-ê. São Paulo: Patuá, 2013.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do improvável e outros ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969.
KEROUAC, Jack. Livro de haicais. Porto Alegre: L&PM, 2013.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski. São Paulo: Companhia das letras, 2013.
MEIA-TIGELA, O Poeta de. Girândola. Fortaleza: Substânsia, 2015.
RUIZ, Alice; JABUR, Camila. Estação dos bichos. São Paulo: Iluminuras, 2011.
RUIZ, Alice. Outro silêncio. São Paulo: Boa companhia, 2015.
SECCHIN, Antonio Carlos. Papéis de poesia: Drummond & mais. Goiânia: Martelo, 2014.
TÁPIA, Marcelo. Súbitos de luz. In: XISTO, Pedro. Lumes: uma antologia de haikais. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2008.
XISTO, Pedro. Lumes: uma antologia de haikais. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2008.


Léo Prudêncio é poeta dos livros Baladas para violão de cinco cordas e Aquarelas: haicais, ambos editados pela Penalux.


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