Antonio Callado, cem anos depois


 
Há vários títulos da extensa obra de Antonio Callado que o faz um dos mais importantes escritores da literatura brasileira e da América Latina, segundo observou o crítico Raymond Williams. Sempre lembrado por Quarup, pela maneira como se filia à rede dos grandes pensadores sobre o seu país de origem, deixou-nos um registro sobre a face oculta da história desse país, como faz, por exemplo, de maneira leve em Memórias de Aldenham House, romance pastiche do policialesco inglês mas tomado pela denúncia dos tristes anos de chumbo – sua grande obsessão literária.

Essa carreira de romancista se construiu entre outra dedicação – talvez não sua grande paixão mas a maneira mais acertada de conviver com a escrita –, o jornalismo. Na profissão, dedicou mais de trinta e sete anos e, mesmo depois de aposentado, trabalhou para diversos jornais. O contrário, só se nascesse rico, para recuperar uma de suas convicções sobre ser escritor no Brasil. O jornal foi seu ganha-pão e lhe permitiu viver diversas experiências que resultaram nas obras citadas acima e em trabalhos de extenso fôlego, no âmbito do jornalismo, já não mais possíveis numa imprensa entregue ao descrédito e às conveniências políticas como a do tempo atual.

Um exemplo de seu feito no jornalismo é Esqueleto na lagoa verde; o título é considerado um dos relatos jornalísticos mais fascinantes feitos no Brasil. Em 1925, o coronel britânico Percy Harrison Fawcett tentou encontrar no interior do Brasil uma fabulosa cidade perdida no sertão. Não era a primeira vez que procurava a Atlântida tropical, mas foi a última – Fawcett e seus companheiros de expedição desapareceram na mata. Vinte e sete anos mais tarde, em 1952, o jornalista Antonio Callado foi à região do Xingu, numa viagem organizada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Graças ao sertanista Orlando Villas Boas e aos índios calapalos, chegaram ao local onde presumivelmente se encontrava a cova com os ossos do coronel desaparecido. Lançado em 1953, Esqueleto na lagoa verde não findou no título; foi dessa expedição que Callado construiu sua inspiração para escrever. Ao reconstituir os passos do explorador britânico, e de outros que procuraram decifrar o sentido de sua obsessão, Callado produziu uma reportagem incomum sobre o sonho de um vitoriano nos trópicos, sobre o encontro com os índios, sobre um país que ainda estava por se descobrir e sobre a própria arte de fazer jornalismo.

Quarup foi publicado em 1967, depois de anos de trabalho do escritor, muitos deles pelos cárceres da Ditadura; Callado esteve preso diversas vezes acusado de subversão ao regime. O romance é a história de Nando, um jovem padre que, perdido em conflitos existenciais ao ver-se diante dos pequenos prazeres da vida mundana, ganha uma nova percepção do mundo, dos seus semelhantes e de si mesmo numa tribo de índios do Xingu. A narrativa abarca uma extensa parte do conturbado contexto histórico do Brasil. O percurso da personagem entre os indígenas, a grande miséria e as doenças responsáveis pela dizimação dessa população, o reencontro com uma antiga paixão, os conflitos com a castidade, a queda pelo mundo profano, e as trajetórias pelo Brasil (Rio de Janeiro, Alto do Xingu, Pernambuco) são a maneira como Callado constrói esse extenso painel histórico e suas reflexões para com os desrumos do país. Não é à toa a escolha pelo termo que dá título a obra:  “quarup” é o nome de uma festa indígena dedicada aos mortos marcada por uma série de cerimônias ritualísticas. É entre estes festejos todos, por exemplo, que salta a notícia do suicídio de Getúlio Vargas; o ditador preparava-se para inauguração de um parque no Xingu, alguma esperança frente ao fim iminente do povo indígena. Sua morte aqui se configura uma derrocada da esperança de ver o Parque se tornar realidade e se torna metáfora sobre a possibilidade de maior acirramento das forças políticas dominantes no país.

Heloísa Buarque Holanda definiu Quarup como bíblia do “tumultuado sentimento da época [a década de 1960 e o período ditatorial]: a urgência em tomar pé através da compreensão do difícil Brasil daquela hora, o empenho revolucionário, a crise de uma ilusão política, a prioridade da ação imediata”. Trata-se uma imagem desesperada, no seus dizeres, sobre a extrema vitalidade da cultura brasileira “num de seus momentos mais críticos e mais estimulantes”.  

Anos antes da expedição ao Xingu, Antonio Callado participou de outra tão estimulante quanto: responsável pelo estreito diálogo mantido por sua obra com o lugar do estrangeiro, sobretudo, o britânico. O escritor foi em 1941 transferido para Londres, onde trabalhou para a BBC e onde, segundo relata, descobriu “sua tremenda fome de Brasil”, perfazendo o lugar de outros escritores itinerantes, como Guimarães Rosa ou João Cabral de Melo, para quem a experiência fora do país também serviu para a construção de um ideal sobre seu país natal e um diálogo intercultural entre a brasilidade e o estrangeiro. Num Especial da TVE,  Callado relata que, uma vez na Inglaterra, lia incansavelmente literatura brasileira e começou a se povoar de uma enorme sede de conhecer o interior do Brasil. “Desta permanência em Londres, nasceu meu casamento ferrado com o Brasil, um amor para o resto da vida”, diz.

Foi dessa experiência que nasceu Memórias de Aldenham House. Aqui, o romancista volta novamente e esse período da Ditadura de Getúlio Vargas, e aproxima-se de outros regimes igualmente caros para a história da América Latina, como a ditadura paraguaia de Morínigo Martínez, além de recorrer à Segunda Guerra Mundial. Os três contextos são representados no romance pelas figuras de Perseu Blake de Souza, Facundo Rodríguez e sua companheira Isobel, três fugidos do estado ditatorial para abrigar-se em Londres, onde vão trabalhar nos estúdios da BBC destinada a programação para os ouvintes de língua espanhola, num projeto de expansão da emissora depois do ataque sofrido por bombardeios alemães na ofensiva de setembro de 1940. E é aí que encontram Elvira, uma chilena apaixonada pela literatura de James Joyce e entretida na tradução sem fim do recém-publicado Finnegans Wake (romance que constrói relações muito próximas com a própria narrativa de Memórias) e os ingleses, responsáveis por essa equipe de latino-americanos ou os arquirrivais Moura Page e Herbet Baker.

“Se o crime e a investigação entram como estratégia formal na condução obra-mundo – afinal estamos em território inglês e todo o tempo uma das personagens zomba do gosto dos ingleses por encontrar um cadáver no tapete da sala – serve ao escritor para romper com a possível arquitetura para um romance histórico, como parece se assumir as duas metades de Memórias: o imbróglio policial encontra-se no centro do romance. Propositalmente o escritor funde, duas formas romanescas, a do romance de cunho histórico e a do romance policial e não se define nem por um tipo nem por outro, mas busca uma ficção que bebe na fonte de duas tradições, uma, latino-americana e outra de britânica, claro, com o forte intuito de universalização da primeira ou construir uma ponte entre a tão próxima geograficamente, mas tão distante na cultura literária os países do continente”, observa Pedro Fernandes na leitura desse romance.

E estas não foram as únicas obras de Antonio Callado. Entre Memórias, que foi o seu último romance, e antes de Quarup, escreveu: Assunção de Salviano (1954), sua estreia literária – a história de um revolucionário, místico e mártir que, em suas contradições filosóficas, antecipa os impasses de padre Nando no Xingu; A madona de cedro (1957) – narrativa sobre o furto, na cidade mineira de Congonhas do Campo, de uma imagem da Virgem esculpida por Aleijadinho; Bar Don Juan (1971) – retrato de um grupo de intelectuais revolucionários que fazem planos e mais planos para derrubar a ditadura mas deixam se sufocar pela incapacidade da ação, um claro devaneio marcadamente desencantado sobre um país em trevas; Reflexos do baile (1976) – livro que Glauber Rocha interessou-se por filmá-lo, que Nelson Rodrigues o definiu como “música verbal” e para muitos críticos, entre eles o próprio escritor, auge, de sua carreira como romancista; sua narrativa conta a história do sequestro de um embaixador durante a Ditadura Militar, tudo a partir de bilhetes e fragmentos de cartas escritos durante o período do sequestro construindo uma trama de segredos e mistérios.

No romance escreveu ainda Sempreviva (1981), cuja narrativa visita ao Pantanal para abordagem sobre o exílio e os porões de tortura da Ditadura, A expedição Montaigne (1982), uma tentativa de organizar no coração do Brasil um exército de índios para ir contra os brancos, e Concerto carioca (1985). Este, sempre definido como o mais machadiano dos romances de Callado, tem sua ação ancorada no Jardim Botânico a partir de uma cena de morte ao pé primeira estátua fundida no Brasil de autoria de Mestre Valentim, a da ninfa Eco. Somam-se aos romances, uma variada quantidade de peças de teatro; o escritor, sensibilizado pelo Teatro Experimental Negro, iniciado por Abdias do Nascimento em 1944, foi um dos primeiros no Brasil a escrever textos do gênero para protagonistas negros. E a partir dos anos 1950 escreveu peças com personagens e temas que problematizam o racismo no Brasil como Pedro Mico (1957), Uma rede para Iemanjá (1961) e e O tesouro de Chica da Silva (1962) e A revolta da cachaça (1983). Escreveu também O colar de coral (1957), Frankel (1955), A cidade assassinada (1954), e os contos reunidos na antologia O homem cordial (1993).



Os dois primeiros exemplos e grande parte das obras citadas são provas suficientes sobre a possibilidade de extrair do jornalismo – pelo trabalho acirrado com a construção estética – alguma peça de valor literário. Na mesma peça para TVE, Antonio Callado mostra que desde Reflexos do baile passou a escrever à mão, que trabalha diariamente numa rotina quase militar e sempre trata o conteúdo dos seus livros como realização técnica e tratamento estilístico com a linguagem na elaboração e estruturação do romance. Ou seja, se distancia de qualquer coisa que afirma o escritor enquanto entidade dotada de uma especialidade para compreendê-lo como profissional da palavra que se faz pela persistência no exercício escritural. É também uma posição que reclama o zelo e o respeito com o literário – desvinculando-o do fast-food conforme vê o mercado.

Outro elemento muito caro a Antonio Callado é sua visão sobre o lugar social do intelectual. Evidentemente que o seu contexto pedia indivíduos não acomodados no seu tempo, mas ainda assim, parece se manter, para além do lugar histórico uma compreensão de que o escritor não pode se desvincular de uma responsabilidade pública enquanto cidadão, que é, como lembra Heloísa Buarque de Holanda, “a obrigação de ser um legítimo participante”. A visão do escritor é que o papel do intelectual é sempre ambíguo – “o intelectual é aquele que age através do pensamento (e, portanto, nem sempre ‘se casa com suas causas’)”, mas tem o dever de expor da maneira incomum às apresentadas pelo poder e problematizá-las.   

Desta maneira, conclui Heloísa, “estamos, portanto, frente a frente com uma definição de escritor que, ao que tudo indica, ainda não se constitui como senso comum no nosso Olimpo Literário. Aqui, parece-me importante distinguir os dois aspectos a que Callado se refere: num primeiro momento, a valorização da competência profissional do escritor e a defesa da liberdade de criação (ou seja, a não exigência de uma temática explicitamente enjeitada) e, num segundo, a questão de sua responsabilidade pública. Assim postos, esses dois momentos se sugerem como dissociados em gestos e circunstâncias diversas. A composição aí proposta (a prática literária suplementada por uma prática política), se não chega a trazer um avanço efetivo no sentido de subverter com eficácia a alienante sacralização da imagem do escritor, tem a vantagem de apontar para problemas inadiáveis referentes à natureza dessa forma de representação, além de sugerir uma ‘correção possível’ para os impasses do alcance político da prática intelectual no Brasil de hoje”.

Tal engajamento justifica a preocupação dominante entre suas personagens: sempre motivadas ou impelidas a ação. Agir é existir. É não estar submisso às forças do mundo mas fazê-lo com suas próprias forças. Esta é certamente uma de suas lições mais caras e mais válidas para o mundo atual – que se deixa contaminar por outras formas que não aos dos anos de chumbo (mas também são muitas) de opressão. Numa ocasião em que tais forças se mostram vestida das mesmas práticas de quando o escritor produziu sua obra, voltar a ela é uma maneira atualíssima de compreender sua tectônica e fazer-se alerta.

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