Historicidade como signo de autonomia e liberdade


Por Rafael Kafka

El Disco Negro, Carlos Mérida

“Somente quando a ontologia do marxismo for capaz de praticar coerentemente a historicidade como fundamento de qualquer conhecimento do ser no sentido do profético programa de Marx, só quando, reconhecendo determinados princípios últimos com prováveis e unitários de todo ser, passam a ser compreendias corretamente as diferenças entre as esferas ontológicas particulares e a 'dialética da natureza' já não mais se apresenta como uma equalização uniformizante de natureza e sociedade, que muitas vezes deforma o ser de ambas de várias maneiras, mas como pré-história em termos categorias do ser social”. 

Lukács,  Prolegômenos para uma ontologia do ser social, p. 189

Há uma preocupação constante de Lukács em seus Prolegômenos para uma ontologia do ser social em definir os rumos de uma ontologia da condição humana que foque nos elementos sociais e de singularidade presentes nela, algo muito deturpado por seguidores e críticos sectários do marxismo, os quais muitas vezes veem o sistema de ideias como um imenso determinismo econômico. Lukács explora a economia como campo de possíveis do ser, substrato de sua mundanidade, na qual possibilidades de escolhas são vividas e repelidas. Por este motivo, há uma profunda refutação aos defensores de posturas “atomistas” com suas analogias ligando o ser-para-si ao ser-em-si da natureza.

A historicidade revela o caráter tempo do ser, que sente como processo de constante projeção, tomada de decisões, ligadas a processos sociais entrelaçados de diversas formas. O ser-para-si é síntese de continuidade e descontinuidade, um projetar-se no mundo de uma individualidade que se desenvolve a partir do estar no mundo social. Importante aqui ressaltar uma distinção fundamental entre a ontologia no sentido defendido por Marx e Lukács e uma gnosiologia, a qual coloca no ser o poder absoluto sobre as determinações que o rodeiam. Estamos rodeados por determinações as quais nos afetam de todas as formas possíveis. Logo, o ser sem determinação é uma construção abstrata, idealista, incapaz de investigar a fundo problemas pertinentes para as questões sociais mais relevantes.

Por conta disso, Lukács rejeita de forma convicta leituras que defendem a necessidade como essência dos diversos fatos sociais, pois elas afirma que determinados eventos são algo fatalista, determinado, sem condições de mudança efetiva pelos seres humanos. A teoria do mais-valor, tão amplamente desenvolvida por Marx em seu Capital é um dos elementos que podem ser vistos como necessários, determinados, impostos pelo destino, sem possibilidade de mudança. Portanto, a necessidade gera alienação. Basta lembrarmos dos discursos derrotistas e pessimistas de pessoas ao nosso redor cotidianamente para vermos como essa análise se confirma rapidamente, por conta de sua insistência em reclamar sem lutar concretamente contra dado fato social incômodo e opressor.

Só em Marx a história adquire um significado objetivamente mais adequado à realidade. Como forma base fundante de todo ser. Apenas mediante o seu novo método ontológico é possível apreender o processo global do ser como uma história, bem como o passado em conformidade com seu caráter histórico objetivo. Mas, apesar de todos os avanços importantes para a apreensão de processos detalhados, tal visão de conjunto não pôde se desenvolver nem se impor (p. 279)

A história se mostra como ferramenta de superação do estranhamento, fenômeno que configura a alienação, com o sujeito vendo sua realidade como algo produzido por outrem. Em sociedades mais místicas, Deus é o responsável pelas leis que regem o universo. Já na sociedade burguesa, a ideologia produz a imagem em-si do meio social, com seus fenômenos contemplados pela supracitada ótica fatalista.

A consciência processual da história encaminha o sujeito para as determinações que afetam o para-si, mostrando a realidade como conjunto de ações humanas. Tal visão é o passo decisivo para o engajamento do ser em um processo ativo de construção social. Nosso cotidiano está repleto de pequenas revoluções ocorridas quando dadas situações limites ocorrem. Uma rua sem saneamento, por exemplo, pode servir de mote para dada comunidade se unir e protestar contra a classe política por melhorias urgentes. Porém, essa atitude geralmente se dá de forma pontual demais, imediatista, buscando uma mudança precisa e pontual. Algo mais substancioso, como a participação ativa da mesma comunidade nos debates da associação comunitária ou no conselho escolha da escola do bairro pode ser provocado pela amplitude de debates políticos que mexam com a consciência social das pessoas, provocando em seus âmagos a noção de serem elas responsáveis pelos rumos de suas vidas enquanto meio social.

Isso explica porque Marx vê o período pré-comunista como uma pré-história. Era uma era na qual o ser não vivia sob o signo da historicidade, vivendo com sua existência dominada por leis e vontades externas. O comunismo marca o fim dessa pré-história, sendo uma era na qual os seres para-si se transformam em donos de suas próprias existências e passam a reger diretamente os rumos de sua sociedade. O que muitos sectários de esquerda e de direita não entendem ou fingem não entender é justamente a ideia de fim da pré-história e não da história em si.

O advento de uma sociedade de classes não significa o final feliz no qual as coisas por si só estarão arrumadas e prontas. Tal acontecimento é um despertar para um processo de historicidade sem começo, nem fim. O desenvolvimento humano constante é uma lógica que deve ser levada adiante, pois em nossa sociedade poucas pessoas têm acesso a essa possibilidade de desenvolvimento. Por esse motivo, Antônio Candido escreveu “O Direito à Literatura”: por meio da leitura, sujeitos se desenvolvem e aprender a sentir e a pensar por conta própria. Isso desemboca nas obras de outro grande marxista, Paulo Freire, cujo foco é na autonomia do estudante no sentido de criticar e construir sua sociedade em comunhão de interesses com os demais.

Muitos veem o comunismo como fim da história no sentido de fim máximo a ser obtido. Kundera tece críticas interessantes nesse sentido em seus diversos romances, mostrando como mais do que o aparato repressor tão bem exposto por Orwell em 1984 o que mais deu forças a figuras como Stálin foi o dogmatismo dos que viam no comunismo o advento do paraíso cristão na Terra. Uma sociedade sem classes deveria garantir a todos os cidadãos participação ativa livre nos debates acerca de seus rumos e interesses como comunidade. Quando se cria um aparato burocrático que isola as lideranças das massas, temos a visão marxista deturpada e o comunismo real cai no mero totalitarismo, igualando-se na prática a práticas nazistas e fascistas.


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