O retorno, de Dulce Maria Cardoso



Por Pedro Fernandes



O retorno, de Dulce Maria Cardoso, chegou ao Brasil um ano depois da publicação em Portugal. Em 2012, o livro já estava marcado pela repercussão alcançada no país de origem – não só as várias resenhas elogiosas, os interesses acadêmicos, a obra havia sido premiada como o Livro do Ano / Prêmio Especial da Crítica. A história desse sucesso, apesar de o nosso país padecer de uma anomia quando o assunto é a recepção de uma obra literária (há casos escusos mas que não cabem na acepção do termo), se repetiu de alguma forma. Evidentemente, não com o mesmo vigor português, mas em nada podemos dizer que por aqui foi um acontecimento despercebido; basta citar o rápido tempo entre a primeira e a reedição da obra e então teremos um elemento corroborativo com o que vimos dizendo.

No caso de Portugal, parte da maneira como livro chegou àqueles leitores se deveu ao fato de ser O retorno uma narrativa, apesar de integralmente ficcional, que toca profundamente um passado que não foi de um todo esclarecido – ou ao menos os sentimentos em relação a ele traduzidos de maneira diversa e, portanto, não objetivamente clara. Essa claridade, entretanto, poderá sempre estar distante. É assim com toda a história, por muito que se revolva o solo dos acontecimentos. E mais ainda se esta história for atravessada por estratégias discursivas interessadas em dizer o acontecido com outras tintas, mais aveludadas; porque uma das formas de o poder escuso e dominante se manter bem retratado é a repetição do mesmo tema quase-sempre e o apaziguamento dos gestos por meio da apresentação de uma ordem cujos sentidos são difíceis de fazer crente os mais incrédulos.

Sim, e os escritores estão entre esses sujeitos em suspeita. De modo que, aquilo que contam, em muitos casos com o aval da experiência vivida, como é o caso de Dulce Maria Cardoso, logo se tornam à vista dos leitores, sobretudo os em-suspeita, numa matéria mais autêntica do que àquela registrada pelos livros de História. E de maneira óbvia, podemos dizer, porque o literário tem outra maneira de nos seduzir quando nos conduz a experimentar as situações do outro constituídas em narrativa. No caso do romance aqui em questão, a história que se retoma é a de milhões de pessoas que buscaram em países diversos – incluindo em grande parte Portugal – lugar de refúgio quando, depois da Revolução dos Cravos em abril de 1974, se desencadeou novos nichos de luta das colônias africanas pela independência. Estima-se que entre este ano e o próximo, mais de meio milhão de pessoas vindas dos países colonizados entraram em território português à procura de estabelecimento de suas vidas. Esse fluxo fez dos que migravam serem tratados no país de colonização por retornados.

Como nada no doloroso processo de ocupação colonial foi, às vistas de hoje, feito com algum senso, o designativo foi produto e produtor de outro desastre: primeiro, Portugal estabeleceu normas de acesso que visavam combater a entrada de migrantes – algo como plantei-o-problema-mas-ele-não-é-meu; depois, instituiu-se maneiras de só aceitar migrantes de origem ou descendência direta portuguesa – o que se ajusta em quase perfeito estado com o termo que passa a ser utilizado – e essa era função de um órgão de controle com o nome de Instituto de Apoio aos Retornos dos Nacionais. Mas, tudo isso serão estratégias fadadas ao fracasso: o número de migrações era maior que qualquer controle e incluía, além de portugueses e descendentes diretos, os indiretos e aqueles das colônias que não depositavam quaisquer expectativas no porvir dos seus países em independência dado o desarranjo total em que se encontravam, entregues à própria sorte e tomados por uma guerra civil impossível de uma trégua.

No romance, quem recupera o drama desse período difícil da história portuguesa é justamente um adolescente que escapa ao perfil ideal do retornado; filho de portugueses que migraram para Angola muito cedo no projeto de apropriação portuguesa – primeiro o pai, Mário, depois a mãe, D. Glória, esta que se assumirá definitivamente como a que nunca conseguiu deixar verdadeiramente o país natal – Rui, o narrador, é um nascido em África. Embora guarde algum interesse de visitar a metrópole, como é chamada Lisboa pelos colonizadores, esse interesse é despretensioso e se alimenta muito mais da fantasia daquilo que escuta, lê e vê, seja através da mãe ou da mídia. Portugal é, portanto, uma mera projeção; entretanto, uma fantasia talvez mais autêntica que a engendrada pelo discurso da mãe e o do Estado Novo, uma vez que sua constituição é dada ora por uma relação com seu lugar de origem, isto é, a colônia, e com as evidentes suspeitas em torno de discursos reiteradamente marcados pelas mesmas conveniências. Tanto que, ao chegar em Lisboa e perceber que suas suspeitas guardam algum fundamento, esta personagem tentará se esforçar em tornar o que vê a partir de suas fantasias naquilo que os discursos no recente passado diziam, mesmo estes e aquelas (como perceberá) sendo vãs.

Entre a necessidade de partir e o desejo de ficar – assim podemos resumir em parte o espírito dominante de O retorno. Esse impasse se nota ainda na visão assumida por Rui; enquanto percebe a ruína de tudo (aliás, não é mera coincidência que o protagonista do romance tenha o mesmo nome do estado em que se vê envolvido), constrói sua leitura sobre o passado da família, sua relação com a colônia e depois sua relação com Portugal. Passam-se aqui temas como a identidade individual e coletiva (o ideal de nação), o desenraizamento dos sujeitos e sua compreensão mesmo que rasa, mas não simplista, da História. Cético e representante do indivíduo universal, para quem suas raízes estão onde estão – reiteradamente, por exemplo, vê o quarto de hotel para onde é enviado com a família (a mãe e a irmã Maria de Lourdes) como sua casa ou mesmo o afeto que desenvolve de alguma maneira com a nesga do terraço onde vai sempre para ficar consigo –, Rui não nutre nenhuma simpatia pelos dois lados da história. Tal como um cronista simplesmente se preocupa, por vezes, em relatar o que escuta dos que lhe são próximos e joga ao leitor enquanto reflete ele próprio sobre tais questões e sobre como as vivencia; deixa ao leitor a tarefa de, a partir da multiplicidade de fragmentos de ordem sensorial, construir uma compreensão do acontecido; este entendimento, claro está, diferirá da chamada História ou mesmo do que se repete como autobiografia devido a proximidade entre a ideia principal do romance e um dado biográfico da autora.  



Mas, a que se refere o título de Dulce Maria Cardoso, se a história se desenvolve justamente em torno de uma figura que não preenche a condição de autêntico retornado? Como toda importante criação artística, um dos valores que reveste O retorno é a problematização indireta do termo que o denomina. E neste romance se estabelece uma maneira de ler sobre o retornado, como este conceito serviu de pejorativo pelos nascidos na metrópole para com os que a ela voltavam ou sequer aí nasceram. Tal revisão se observa pela maneira como o enredo se realiza: apontando para uma saída ou a compreensão de um novo Portugal possível de se realizar pelas mãos dos que chegam de África, destituídos de tudo mas ainda capazes de transformar todo o cerco imposto por uns em matéria de impulso para um recomeço. Rui é uma figura situada em meio desse impasse que é encarado pela irmã como algo capaz de ser vencido a qualquer custo, até pela negação improvável de si, impossível de realizar porque todas as feições culturais nunca fazem-na uma integrada à cultura portuguesa.

O acontecimento principal do qual parece derivar o título do romance se passa com o pai de Rui. Capturado pelas forças pró-independência de Angola, toda narrativa se desenvolve em torno da expectativa sobre o retorno vivo ou não de Mário para junto dos seus. Às questões pós-coloniais, Dulce Maria Cardoso não deixa de sublinhar outras destituições ou revisões necessárias às mentalidades, como a revisão da cultura patriarcal. Embora não se opere nenhuma ruptura nessa ordem – e o leitor precisa ler o romance para entender porquê – ela não deixa de ser questionada e apresentada como sua estratégia de dominação se repete continuamente nas determinações dos núcleos familiares aos mandos mais gerais da sociedade.

Dos romances publicados em Portugal depois da Revolução, O retorno deve figurar, possivelmente, sempre que se pensar numa lista de obras essenciais desse período, como um exemplo de como se constrói boas histórias, a partir de pontos de vista diferentes dos usuais e como essas narrativas são sempre mais autênticas que a verdade que nos contam como História. Já sobre o fim das colônias e toda sorte de impasses daí decorrentes será sempre uma obra principal – pela maneira despretensiosa, e, logo, natural e autêntica, de tratar de um tema tão espinhoso e cujas sequelas ficaram em toda parte – se mais profundas nos territórios invadidos não menos profundas no país colonizador, sobretudo porque foi esta uma empreitada sustenta pela megalomania que obrigou o povo português a pagar um alto preço. Tais marcas, dirão um tanto de nós brasileiros; também estivemos em condição análoga a dos países africanos que só puderam sair dela em parte muito tardiamente. E nunca é demais lembrar disso, sobretudo agora que uma parcela dos nossos tem acreditado na vã imagem de que os males do Brasil são produtos apenas da última década.

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