Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha, de Liudmila Petruchévskaia


Por Pedro Fernandes



Uma tarefa da literatura dentre as mais belas, e da qual escritores de variado tempo e escolas têm se afastado – o que não o fazem menores, de forma alguma, mesmo porque renovou faces diversas do literário –, é a criação do fabular. Esta, aliás, constitui a base de toda literatura. E, para que esta constatação faça sentido é suficiente citarmos os registros diversos que determinaram as bases criativas para toda ficção do Ocidente (e certamente do restante do mundo). No nosso caso, por que esquecer das epopeias gregas, a Ilíada e a Odisseia, se cada uma, alimentadas ora pelo mítico, ora pela história dos povos, não deixa de se constituir pelas filigranas próprias da imaginação? Ou dos vários livros bíblicos povoados, uns integralmente, pelo conteúdo fabular?

O que aqui se chama por criação fabular pode ser compreendida como a expressão de ordem exclusivamente imaginativa, ou, se preferir – até porque resulta impossível tratar de conteúdos literários integralmente dissociados dos chamados não-literários –, uma ordem na qual prevaleça o elemento imaginativo sobre o elemento fatual. É possível citar como exemplo as histórias de Era uma vez, os contos de fadas. Em tais casos, sabe-se, as situações evocadas pela ficção beiram à existência autenticamente autônomas da ordem do histórico ou mesmo da realidade exterior ao conteúdo narrativo.

Ao dizer isso alcança-se uma parte do que chamamos por conteúdo fabular: aquele cujo grau de invenção se sobrepõe ao grau de representação. Que o lobo tenha devorado a vovozinha é uma possibilidade verificável dentro e fora da ordem narrativa; que um caçador, depois de matar o lobo, tenha resgatado a vovozinha sã e salva, é um acontecimento que só se realiza no plano da imaginação. A partir daí pode-se também verificar que a fabulação é a forma definidora da literatura imaginativa.

Os raciocínios apresentados constituem algumas linhas para a leitura do livro de Liudmila Petruchévskaia, motivo destas notas. Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha está situado na lista dos livros de imaginação. Seu conteúdo fabular é, como em todo o caso do tipo, de extrema riqueza imagética e significativa. As histórias reunidas nas quatro seções do livro acentuam em tons variados as maneiras de revelação do imaginativo: da metáfora à alegoria, da insólito ao horror, do fabuloso ao maravilhoso, do contato com o inexplicável ao contato com a surpresa das aparências.

O subtítulo, vê-se pela variedade desse catálogo, Histórias e contos de fadas assustadores, é insuficiente para determinar o conteúdo narrativo desta antologia. Por isso, é preferível compreender que os designativos de cada uma das partes do livro – “Canções dos eslavos do leste”, “Alegorias”, “Réquiens” e “Contos de fadas” – sejam os melhores; determinam não gêneros da narrativa breve, mas, em alguns casos, formas de constituição do fabular, como “Alegorias e “Contos de fadas”. Quer dizer, todos os contos têm em comum este traço do assustador mas o limite de presença dos conteúdos imaginativos varia, bem como as funções da narrativa para com o leitor ao ponto de não considerarmos sua íntegra relação a este lugar. Porque são contos que, em sua forma, flertam com expressões diversas da narração.

Assim, os contos designados como canções, da primeira parte, alimentam-se, claramente, das narrativas orais, lendas urbanas ou histórias de assombração, cuja gênese assemelha-se à dos contos dos Irmãos Grimm, com a rara exceção de que em todas estas narrativas o tratamento ficcional as recria de forma autêntica, embora não percam a condição que as designam: são canções, histórias de passatempo. Em “A vingança”, história que de alguma maneira designa o título da antologia, pelo seu conteúdo e pela maneira como a narrativa é introduzida – “Era uma vez uma mulher que odiava sua vizinha de quarto...” – de um só fôlego se conta da amizade assumida entre duas vizinhas, Zina e Raia. Como numa canção, o refrão que a determina o andamento da narração é o do sentimento de posse que toma forma diversa e se apodera integralmente da relação das duas ao ponto de tudo resultar naquilo que o próprio título do conto enuncia: uma vingança. Entre a pretensão de uma em matar a filha da outra sob a ideia de preservação do ideal de posse única daquela sobre esta, somos seduzidos por um canto cujo o desfecho toma a proporção do inesperado (e neste caso, sacia, curiosamente, nosso próprio ideal de vingança que se alimenta na cadência da narrativa).



Na seção seguinte, “Alegorias”, as histórias são puras representações que designam uma coisa para significar outra. Assim, “A nova família Robinson” se constitui, por exemplo, numa alegoria sobre o autoritarismo das sociedades excessivamente vigiadas por governos déspotas e tiranos. Narrado pelo ponto de vista infanto-juvenil que apenas compreende sobre o esforço diário da família pela sobrevivência num vilarejo no meio do nada e perto do fim onde são submetidos a um modelo que de alguma maneira recorda os algozes do Estado Soviético (embora, claro está, que tudo aí é propositalmente despersonalizado a fim de garantir a universalização das situações), este conto revela de que maneira humanos são transformados em animais instintivos em toda condição de barbárie. Este talvez seja a história em que mais prevaleça a presença de um contexto histórico tal como se apresenta designado no seu subtítulo, “Uma crônica do fim do século XX”, preservando inclusive este estado pelo tom de relato sobre um acontecimento histórico recorrente.

Um réquiem é uma celebração em memória dos mortos. As histórias reunidas nesta seção, “Réquiens”, constituem a parte do termo assustadores; recorrem ao temário das histórias de mortos vivos. No caso de “Eu te amo”, um conto sobre o amor e a impossibilidade da sua realização plena porque substrato contra a falta, a consideração amorosa só se inteira – e não plenamente porque manifestada no interstício da vida-morte – no trânsito das personagens, sobretudo as que se dedicam ao amor e não logram o preenchimento de si; aqui, se demonstra várias possibilidades ou sentidos do morrer. Desde o sentido comum, finitude, desaparecimento, como estarão submetidas todas as personagens da narrativa, ao sentido figurativo, morrer em vida. Depois da morte da sogra, um homem de vaidade extremada espera parcimoniosamente pela morte de sua mulher para enfim viver plenamente o amor que já exercita clandestinamente com uma amante, amiga de trabalho e igualmente casada. Por mais que se dedique à aparência e à saúde no intuito de prolongar sua vida sobre a vida da mulher, integralmente dedicada à ordem da família e sem fazer caso do marido, o esperado sonho parece se prolongar até a impossibilidade de vê-lo realizado. O estar morto-em-vida se designa mesmo para este homem que, embora pareça à primeira vista alguém mais vivo que sua mulher – ela, displicente para aparência e para saúde – ambos estão integrados à mesma ordem contínua das repetições, à vida nula. A única saída (aparente) se dá quando, enfim, a possibilidade do homem se mostra realizável não fosse a intervenção do além na sua existência.

As chamadas histórias de mortos-vivos não ocupam apenas esta parte do livro de Liudmila Petruchévskaia. É uma recorrente em toda antologia e muito se assemelha ora às narrativas insólitas clássicas de um E. T. Hoffmann, ou de fantasmas como um M. R. James, ou às histórias de assombro que seduziram escritores diversos, dos mais macabros como Edgar Allan Poe, aos mais sutis, como os conterrâneos da escritora, Nikolai Gógol e Leonid Andrêiev. Nesse território do assombroso, Liudmila não deixa de encontrar sua filiação entre os clássicos – espaçadamente nas referências a lugares da grande literatura ocidental, como Homero na clara referência de Ulisses ao mundo dos mortos – o do imaginário ocidental quando se volta para as narrativas da mitologia, como o intertexto com o mito de Cila e Caríbdis, ou do deus Posêidon.

Dos chamados contos de fadas, é que se compõe a parte final da antologia. É esta a ocasião quando a escritora mais aumenta o grau na escala da imaginação. Isto é, os mundos aqui estão mesmo encravados no tempo do Era uma vez e continuamente marcadas pela presença do insólito, do maravilhoso e do fabuloso. Num dos contos, o mais impressionante na seção “Contos de fadas”, “Mãe-repolho”, a narrativa é constituída pela história de uma mulher que descobre e adota uma minúscula criatura, a princípio humana, que vive refugiada nas dobras de um repolho. Impressionada porque, por mais que alimente a insólita não figura não muda de forma, vai buscar ajuda ao médico que, incapaz de compreender as causas de tamanho mistério, recomenda-lhe um ermitão, quem repreende a ambição da mulher e recomenda veemente a devolução de Gotinha, assim chama-se a criatura fantástica, para seu habitat natural. Se essa criatura do universo encantado lhe aparece repentinamente, seu fim se motivará pelo mesmo impulso. Mas, como o conto de Petruchévskaia não despreza o elemento surpresa nos desfechos, também aqui encontraremos uma saída inusitada para a narrativa e o drama desta mulher repleta da obsessão do amor materno.

As realidades alternativas construídas pela escritora russa são pérolas de rara safra. Esta antologia reúne toda maestria dos lugares diversos de um universo criativo capaz de engendrar não apenas aquilo capaz de compreensível pela imaginação. Liudmila busca integrar em grande parte das narrativas que compõem esses contos entre a situação do mundo corriqueiro e a da evocação imaginativa como se nos dissesse que há mais mistérios entre o captado pelos nossos sentidos e o não apreendido uma espessa camada de mistério que se descoberta nos revelaria outra realidade – possivelmente mais assustadora, é verdade, mas curiosamente indispensável para reabilitação do mundo.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A vegetariana, de Han Kang

Boletim Letras 360º #604

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore