Marly de Oliveira, a suave pantera




Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece,
essa é a face necessária.

“O poema é uma estrutura de significantes que absorve e reconstitui os significados, na medida em que seus padrões formais têm efeitos sobre suas estruturas semânticas, assimilando os sentidos que as palavras têm em outros contextos e sujeitando-as a nova organização, alterando a ênfase e o foco, deslocando sentidos literários para sentidos figurados, colocando termos em alinhamento, de acordo com padrões de paralelismo”. A precisa, mas não esgotável, definição sobre o poema, sua ordem, natureza e comportamento, está num texto, certamente conhecido de muitos estudantes de Letras, do teórico estadunidense Jonathan Culler. E a retomada dele no início destas breves notas biográficas não é gratuita, tampouco cumprem um interesse de servir para uma discussão sobre a forma literária, mas porque guardam estreita aproximação com a obra poética de Marly de Oliveira.

Ela nos deixou uma vasta obra e grande parte dela é fruto do trabalho de uma vida, o que assinala uma radical consciência crítica sobre a poesia e, em especial, a sua própria. Esta é uma rara qualidade facultada apenas aos grandes poetas e que é preciso sublinhar por razão diversa: é que são poucos os criadores que carregam o zelo e depuração da linguagem (razão principal da poesia), que é, dentre tantas importâncias, uma maneira de respeito consigo e com o leitor. Sobram os medíocres que continuamente enterram nas nossas bibliotecas obras de qualidade alguma, como se nossas estantes fossem depósitos gratuitos de qualquer coisa. Quando a observação se volta para os muitos pretensos poetas da geração que Marly de Oliveira teve a felicidade de não os conhecer, eivados de um egocentrismo, vê-se que a situação, recorrente em todo tempo, só cresceu. De alguma maneira, o gesto da poeta, centrado numa das mais elevadas virtudes que pode distinguir um escritor, sua sinceridade e sério trabalho com a linguagem, oferece uma lição aos muitos pretensiosos. 

Nada sobra ou falta na poesia dessa poeta e muito se distingue dos criadores seus contemporâneos, o que, sublinhe, amplia-lhe em duas das muitas qualidades de sua obra. O credo de um poeta é a palavra, porque dela resulta sua salvação ou sua condenação; a solidão do poeta encontra na palavra seu lugar de repouso, mas não é substrato capaz de superar nenhum vazio, daí porque é sempre, para o poeta, contínua busca; a palavra constitui-lhe, portanto, entidade em múltipla, ou pelo menos dupla dimensão. Há um poema de Marly de Oliveira, que, parece ser um daqueles textos profissão-de-fé sempre recorrentes na bibliografia dos autores modernos e contemporâneos: “A palavra é meu rito, minha forma / de celebrar, investir, reivindicar: / a palavra é a minha verdade, / minha pena exposta sem humilhação / à leitura do outro / hypocrite lecteur, mon semblable.”

Num texto que escreveu para a edição de Aliança, um livro situado no meio de sua produção literária que começou em 1957 com a publicação de Cerco da primavera “graças ao apoio de Thiers Martins Moreira, Alceu Amoroso Lima, Aurélio Buarque de Holanda e Antonio Houaiss”, ela destaca o que podemos determinar como algumas de suas influências, na geração a qual pertence e nas gerações que a antecederam: “Sou filha de Cecília Meireles, Drummond, Bandeira, Augusto Meyer. Irmã de Clarice, Nélida Piñon, José Guilherme Merquior. Devo muito a João Cabral e, de uma forma que só agora começo a compreender, a Ruth Maria Chaves”. O nome desse texto é “Autorretrato” e nele, a poeta expõe um pouco sobre a criadora e a criatura, esboça seus gostos e aqueles por quem guarda o zelo austral de alguma ordem de influência. “Acho que o mundo seria diferente se não tivesse tido um Heráclito, um Platão, um Dante, um Cervantes, um Shakespeare, um Fernando Pessoa, um Freud. Sinto que a palavra modifica a realidade, mas não sei bem de que forma. Tenho, obviamente, entre meus livros essenciais, um dicionário e uma Bíblia.”

Marly de Oliveira nasceu em 11 de junho de 1938, em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Começou a publicar, desde muito jovem, nos jornais da cidade fluminense de Campos, onde passou a infância e a adolescência. Quando se mudou para o Rio de Janeiro, cidade onde viveu até sua morte, com saídas para extensas estadias noutros lugares, foi para estudar Letras Neolatinas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ); recebeu bolsa de estudos para cursar História da Língua Italiana e Filologia Românica na Universidade de Roma e no retorno ao Brasil depois de dois anos passa a trabalhar como  assistente de Mário Camarinha na cadeira de Literatura Hispano-Americana na mesma casa onde foi aluna e na PUC-Petrópolis. Entre 1962 e 1967 trabalha como professora de Língua, Literatura Italiana e Literatura Hispano-Americana na Faculdade das Doroteias, em Friburgo.

Foi na estadia em Roma que conheceu o poeta Giuseppe Ungaretti, que se encantou com o talento poético de Marly de Oliveira depois do contato com alguns poemas que escrevera num “italiano luminoso”. Depois se casar com o diplomata Lauro Moreira, viveu alguns anos em Buenos Aires, Genebra e Brasília; um segundo casamento estaria marcado pela ordem do destino: João Cabral de Melo Neto; união que durou até a morte do poeta em 1999. O poeta pernambucano escreve no prefácio à antologia que organizou com uma recolha dos principais poemas da companheira que a conheceu pela sua poesia. “Mesmo sendo de outra geração eu a registrei, em primeiro lugar pela materialidade da linguagem, pela capacidade de objetivação.” E acrescenta que o primeiro livro dela que leu foi A suave pantera, quando foi galardoado com o Prêmio de Poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1963. Era um livro já marcado pelo rigor crítico da autora, visto que revisava os dois primeiros títulos apresentados: o referido Cerco da primavera e Explicação de Narciso.

João Cabral de Melo Neto ainda assinala “a capacidade de construir, tanto o poema longo como o poema curto, sempre mantendo alto nível intelectual. Por exemplo, ela usa o soneto-poema de forma bem diversa daquela usada pela minha geração ou até por outros poetas da sua geração, a chamada geração de 60. A preferência pela palavra concreta e pela imagem desde o seu primeiro livro me impressionou, vi nela uma grande influência espanhola que me chamou atenção”. Mas, antes que alguém levante o dedo para dizer que isso é um derramamento amoroso de homem apaixonado, o que, mesmo vindo de João Cabral, é muito possível, vale sublinhar outras vozes.

Marly de Oliveira e João Cabral de Melo Neto. Foto: Carla Rios


Mário Chamie, outro expoente poeta de nossa literatura, ressalta que “Na longa fala de sua importante obra, Marly vem tecendo e consagrando os seus próprios mitos fundamentais. Desde o primeiro livro de poemas, [...] ela trabalha e retrabalha uma só iluminação central, multiplicada e projetada sobre horizontes de significados que tanto mais se alargam quanto mais nítida, precisa e despojada se torna sua peculiar dicção”. 

“A extrema extrema economia da dicção de Marly (uma contensão que atinge o próprio número das poesias, bem reduzido) consegue apesar disso restaurar no soneto o seu diluído vigor. Apressemo-nos a acrescentar que esse triunfo individual não basta para a renascença dessa forma, hoje em dia uma das piores formas; apenas, Marly não tem nada a ver com a morte do soneto. Se dependesse de sua poesia, ele seria capaz de sobreviver...”, diz José Guilherme Merquior numa elogiosa leitura que fez no Jornal do Brasil aquando da publicação de Explicação de Narciso, um livro situado entre o soneto e outras formas poéticas.

No mesmo jornal, Pedro Lyra, comenta que Marly de Oliveira é “uma poeta contida, de elaboração meditada, com uma expressão que indica um rigoroso trabalho de reflexão, tanto ao nível da substância quanto ao nível da instrumentalidade. [...] ela se distingue de uma vertente não muito nobre da nossa poesia - e vertente dominante - qual seja: a do lirismo subjetivista que, não se autoconhecendo, não pode sequer proclamar ou atribuir-se uma função, e que se realiza intuitivamente como um simples externar de sensações, de desejos, de vagas impressões sob o mundo, sem aquele empenho cognitivo de sondá-lo para conhecê-lo.” E emenda: “O amor, a vida, a liberdade, a morte, o medo, a dor, o trabalho a sociedade, o eu , o mundo, o autoconhecimento, a erdade, a poesia - e o próprio interrogar-se sobre isso tudo - tudo isso se define ou se coloca em versos de uma rigorosa contenção verbal, numa poesia cerebral sem ser fria, expressa sobretudo na série de obras-primas que são os sonetos / poemas em blog, às vezes de um só período, com que ela esulpe o quadro perfeito de um teorema.” 

E o próprio Giuseppe Ungaretti. “Quem conhece os seus versos em português, aqueles de seu livro Cerco da Primavera, publicado em 1957, e aqueles que compõem a sua nova coletânea Explicação de Narciso sabe que neles ela dá prova de raros dotes de profundidade e de graça. Mais como terá feito esta jovem para apoderar-se de nossa língua, de sua secreta musicalidade ao ponto de poder oferecer o dom da poesia que agora ouvireis? É um milagre: a ingenuidade e a profundidade aqui se mesclam com uma novidade talvez superior aquela que surpreende quando se exprime na sua língua materna.” 

O poeta Ricardo Domeneck, em artigo apresentado na revista Modo de Usar & co, chama atenção para, o profundo silêncio em torno da obra de Marly de Oliveira decretado a partir de sua morte e até agora. Para ele, mesmo que não exista uma resposta possível, afinal não se pode controlar com se determinam determinadas escolhas propostas muitas vezes mais pelo acaso do que pela boa vontade dos leitores, isso se deve, possivelmente, ao “feitio clássico e erudito de Marly de Oliveira”. “Talvez seja um fenômeno algo parecido com o que ocorre com Maria Ângela Alvim. Por que nós ignoramos um livro como A suave pantera? Nos achamos melhores que ela em quê? É um longo poema, belamente escrito, sensual, teso”. O argumento fará sentido se repararmos para o desinteresse, em tempos imposto pelos poderes dominantes, num país cindido entre valores de memória cultural profundos e total vilipendio desses valores. Talvez, um poema da própria poeta sirva-nos de consolo:

Quando um dia estiver morta
e sobre mim caírem os adjetivos mais ternos,
não vou mover um dedo
de dentro do meu silêncio:
vou desdenhar do eterno
o que sempre chegou tarde,
demais, quando já nem era preciso.

A última edição com algo da obra de Marly de Oliveira publicou-se por aqui em 1999, o seu último livro, Uma vez sempre, pela Massao Ohno, que havia dedicado, uma década antes, uma reunião da obra poética. A poeta morreu em  1º de junho de 2007. Além de sua obra,  teve papel fundamental na organização da obra completa de João Cabral de Melo Neto, trabalho realizado em parceria com Margaret George. 

E, deixou-nos ainda, contando os títulos não citados até aqui: A vida natural. O sangue na veia, “ensaio, tentativa de definir o amor, em quarenta e seis poemas, em que há a vontade de desligar o conceito de amor do de paixão”; Contato, “o meu fracasso diante do outro ou da minha vontade de transparência”; Invocação de Orpheu (Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal em 1980), em que “experimenta a iminência do encontro, vislumbra uma conjunção que não se realiza”; A força da paixão e a incerteza das coisas “aprofundam a perda pressentida”; Retrato “faz uma revisão dos livros anteriores”, Vertigem “acentua um certo desencanto” e Viagem a Portugal (Prêmio UBE, 1987) “recupera uma certa alegria de viver”; O banquete “acha que o deserto pode ser cultivado”; O deserto jardim e O mar de permeio (Prêmio Jabuti em 1997 e Prêmio Carlos Drummond de Andrade em 1999), que saiu no ano que recebeu o galardão da Câmara Brasileira do Livro, mas estava pronto desde 1994.

Ainda em “Autorretrato”, o texto que escreveu para a edição de Aliança, dizia: “Não pretendo que creiam em mim; além de inútil, dá muito trabalho, mas acho bom que cada um creia em si mesmo. Sei que o discurso assertivo pode não ser verdadeiro e acho que o mundo é absurdo, como Camus.” Tamanha humildade com que se mostrou, dita no discurso, mas reafirmada na sua obra, nos leva a um gesto (brusco aos olhos da poeta), mas fundamental em tempos de desordem. Para voltar ao excerto de Explicação de Narciso, que introduz este texto: voltemos logo a re-descobrir a obra de Marly de Oliveira, essa face necessária de nossa desconhecida face. Aqui está um começo.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574