“Pano de fundo variado para um destino comum”: Otto Maria Carpeaux e o romance brasileiro


Por Guilherme Mazzafera



A leitura dos inúmeros ensaios sobre literatura do austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978), bem como de sua História da literatura ocidental, configura, na oposição entre o recorte preciso e o percurso totalizante, uma espécie de imago mundi da literatura do Ocidente cuja apreensão mais ou menos sistematizada demanda um recorte rigoroso. Aos poucos, o leitor vai construindo copioso mosaico de análises quase sempre breves que mantêm um olho rente ao objeto em estudo, respeitando sua expressão individual, e outro no lastro histórico do qual ele deriva, sem, no entanto, a ele se limitar. No caso deste breve ensaio, proponho um exercício sintético, perseguindo o fio do romance brasileiro na crítica literária de Carpeaux¹.

Tendo chegado ao Brasil em 1939 e se estabelecido no Rio de Janeiro como colunista do Correio da Manhã em 1941, a entrada do elemento brasileiro em seu ofício crítico dá-se, nos livros, por meio da seção “No mundo novo” de Origens e fins (1943), sua segunda coletânea, que apresenta ensaios de poderosa condensação e fecundidade sobre Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos e Álvaro Lins Quase duas décadas depois, a presença brasileira (termo tão caro a Carpeaux) intensifica-se a ponto de ocupar a segunda metade de Livros na mesa (1960), subdividida nas seções “Crítica brasileira”, “Poesia brasileira” e “Romance brasileiro”. Nesta última, o grupo de oito ensaios é de grande interesse pela constatação de que finalmente se pode falar em um conjunto efetivo de obras nacionais que exigem do crítico a composição de critérios de autenticidade. Assim, é possível delinear um percurso entre a percepção, em 1943, de que o romance brasileiro ainda não constitui um mundo “definido e definitivo” (“Álvaro Lins e a literatura brasileira”, 1999, p. 461), mas no qual já despontam manifestações fundadoras como o romance psicológico, derivado de Machado de Assis e Raul Pompéia, e o romance regionalista corporificado em José Lins do Rego; e o momento em que o crítico afirma, em “Autenticidade do romance brasileiro” (1960), que “só em nossos dias pode-se falar do romance brasileiro como de um corpus, quase de uma enciclopédia da vida brasileira” (1999, p. 882-883).

Com a clara consciência de que “O verdadeiro problema crítico da literatura brasileira não pode ser colocado em termos franceses ou ingleses, mas só em termos brasileiros”, como aponta Carpeaux em “Crítica literária” (1999, p. 666), torna-se necessário perseguir de perto suas tentativas de compreender e pensar os meandros do processo literário nacional tal como se mostram, entre outros textos, em “Problemas da história literária brasileira”. Neste ensaio de 1959, discorrendo sobre as então recentes obras de Afrânio Coutinho (A literatura no Brasil) e Antonio Candido (Formação da literatura brasileira), Carpeaux não encampa plenamente o conceito de sistema literário, optando por pensar a literatura brasileira a partir da ideia de um equilíbrio entre o que é “especificamente literário” e o que é “especificamente brasileiro” (1999, p. 845). Diante da falência de uma estética dogmática, Carpeaux propõe a possibilidade de valorizar a literatura nacional pelo viés comparativo “como faria um estrangeiro suficientemente informado”, chegando a um entendimento dialético por meio da “sincronização das fases estilísticas da evolução da literatura universal e do espírito diferente das línguas.” (p. 847) As obras mais significativas nesse sentido seriam as que implicam uma contribuição brasileira à literatura universal e, se para Carpeaux elas parecem se avolumar a princípio na poesia, a prosa nacional também se impõe como problema crítico, vislumbrado na obra de Euclides da Cunha e na “contribuição originalíssima” do contemporâneo Guimarães Rosa, pela difícil distinção entre os valores estéticos e os propriamente brasileiros que acaba por exigir uma apurada conjuminação das instâncias crítica e historiográfica dos estudos literários (p. 848).

O aprofundamento de tais questões, que aqui apenas esboçamos, permitirá delinear um quadro mais preciso do que Álvaro Lins (1963, p.44) descreve como a peculiar capacidade de Carpeaux de “aplicar o aparelhamento da cultura europeia ao estudo das letras brasileiras” que, por sua vez, pode ampliar a compreensão do gesto mediador e sintético constitutivo da atividade crítica do austríaco-brasileiro e posicionar melhor o alcance efetivo de sua crítica entre seus pares brasileiros.

Como possíveis exemplos da mediação e síntese aludidas acima, podemos destacar, a princípio, três posições. No ensaio “Oblómov – documento, romance, epopeia”, de Origens e fins (1943), Carpeaux propõe como razão de sobrevivência dos grandes romances a incorporação de “elementos de epopeia”, explicando tal asserção a partir de diferentes modalidades de experiência, em que às “formas da atividade”, próprias do romance, opõem-se as formas estáticas, típicas da epopeia enquanto “pintura a fresco” (1999, p. 324).  A ideia de um mundo de “madureza estival”, chamado a desaparecer, marcado pela paralisia e pela decadência das quais o protagonista do romance de Ivan Gontcharóv emerge como símbolo – “um dos heróis típicos da humanidade”, ladeado por Faustos, Hamlets e Quixotes e cuja força épica residiria em sua recusa ao mundo da produtividade que se assentava na Rússia de então – é parte de uma leitura mais ampla de Carpeaux sobre o romance de 30, como se percebe na aproximação de Gontcharóv com Graciliano em “Visão de Graciliano Ramos” e com José Lins do Rego (que também aparece neste ensaio) em “O brasileiríssimo José Lins do Rego”, textos pertencentes a um mesmo período de produção. Ao longo do percurso interpretativo, Carpeaux articula sua argumentação pelo deslocamento de referenciais imediatamente estrangeiros (o romance russo e seu contexto crítico-social) para zonas de reconhecimento do leitor nacional pela sugestão de uma paridade de experiência presente na leitura de Oblómov por um russo de 1859 e de Casa-grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre, por “um brasileiro contemporâneo” (p. 322). Tal leitura instila sensações mistas de saudade de uma época patriarcal perdida com anseios de reforma radical contra a opressão do regime latifundiário, o que, em sua versão russa, corresponderia, brasileirissimamente, à passagem do “banguê” à “usina”, isto é, do mundo dos “bons velhos tempos” ao da “grande reforma” posta em prática pela abolição da servidão camponesa em 1861. A interpretação de Carpeaux aproveita ainda para discutir o estatuto das formas literárias e da técnica novelística para além de definições redutoras de manual, irmanando os três autores, Gontcharóv, Freyre e Lins do Rego, em sua capacidade de superação do substrato documental em obras de arte cuja realização as eleva à “dignidade da epopeia” (p. 326).

Em “Canudos como romance histórico”, de 1958, não incluído nas seletas do autor, Carpeaux revisita o percurso formativo do romance histórico europeu para interpretar o aspecto singular da obra João Abade (1958), de João Felício dos Santos, uma reescrita feita “de dentro” d’Os sertões.  Partindo de Walter Scott, autor que teria afetado as próprias concepções historiográficas ao gestar uma nova modalidade novelística atravessada “por um conceito de História” (2005, p. 448), Carpeaux sugere que, num primeiro momento, tal romance teria função nacional, como se deu com Alencar no Brasil, mas, a partir de 1870, ele passa a adquirir uma função mais importante e fundamental:  dar voz “aos que a História, essa fable convenue, silenciou” (p. 449). Findo o breve percurso, Carpeaux passa, ato contínuo, à análise do romance brasileiro: “Eis o motivo que inspirou o romance João Abade ao sr. João Felício dos Santos” (p. 449). Se a passagem pode parecer abrupta, ela tem a vantagem de filiar, sem demagogias ou desculpas, a obra nacional de autor pouco conhecido à linhagem europeia do romance histórico, subjazendo a tal gesto a premissa de que “A literatura é a via regia para a compreensão de uma nação” (1999, p. 458). Mais do que isso, Carpeaux encontra nessa modalidade de romance histórico, que João Abade ressignifica em termos nacionais, a revisão de valores, aspecto imanente à atuação do crítico literário no Brasil, como ele indica em “Álvaro Lins e a literatura brasileira”:

“Sentimos que há nas letras brasileiras uma crise de crescimento e de transição, reflexo de uma crise na consciência nacional. Chegou a hora de uma corajosa revisão dos valores. Esclarecer as confusões das crises, reestabelecer a ordem dos valores, constitui a responsabilidade e o dever dos intelectuais.” (1999, p.458)

O terceiro exemplo de mediação consiste na divulgação de importantes obras de crítica literária que ainda não haviam encontrado o devido respaldo no Brasil e que poderiam ser úteis para conceber de modo mais preciso e fecundo os problemas nacionais. Neste sentido, pode-se destacar o importante ensaio “A arte do romancista” (1956) – texto inédito em livro que pretendemos publicar em breve – no qual Carpeaux comenta o livro The Craft of Fiction (1921), de Percy Lubbock, destacando em sua leitura difícil  – que lhe parece o “trabalho fundamental sobre a arte do romance” – o detalhe atento ao aspecto artístico, ao métier técnico do romancista. Partindo das observações de Lubbock sobre romances de Tolstói, Flaubert, Balzac e Henry James, Carpeaux extrai lições sobre a função das descrições, os meios de manter a impassibilidade da voz narrativa bem como sobre as possibilidades de estruturação dessa mesma voz que, derivada de James, refrata-se, distintamente, em Thomas Mann, Joseph Conrad, Marcel Proust e James Joyce. No último parágrafo, Carpeaux espera que algum leitor possa tentar aplicar à literatura brasileira os critérios do livro de Lubbock, gesto proposto não como submissão, mas como modo de confrontar e “destruir a opinião tão divulgada de que o romancista precisa de linguagem correta e de força de imaginação e de indignação social ou de profundidade psicológica e de tudo, afinal, menos da arte de escrever romances.” (1956)  Aparece aqui a clara consciência de que o romance, mais do que “pesquisa de moralista”, precisa ser uma obra, “uma estrutura que resiste à aplicação de critérios estéticos” e que, em seus melhores momentos, logra se constituir como “expressão estética de uma crise moral” (“Autenticidade do romance brasileiro”, 1999, p. 882).

A partir destes três textos, talvez se possa precisar melhor o conceito de síntese, fundamental para o pensamento dialético do crítico (“Carpeaux foi o nosso primeiro leitor dialético”, diz Bosi na orelha dos Ensaios reunidos I) em diversos níveis. Em primeiro lugar, na própria concisão da escrita, fruto das limitações de espaço dos periódicos, limitação que lhe é profícua, já que o obriga à expressão orquestrada da pluralidade bem como a uma espécie contínua de tomada de posição diante do que é lido. Em segundo lugar, síntese enquanto método interpretativo, que, como propõe Bosi (2013), mescla elementos do culturalismo alemão (sobretudo Dilthey) com o apuro estilístico de seus contemporâneos (Leo Spitzer, Erich Auerbach, Dámaso Alonso) de modo a produzir textos em que a apreensão precisa do particular encontra-se sempre alicerçada no caldo cultural formativo do autor em análise, o que, no nosso caso, dá-se pela gradual incorporação dos problemas da realidade brasileira, transfigurados por sua literatura, à vasta paideia da cultura ocidental:

“Os ensaios de Croce, Huizinga, Vossler, Curtius, Spitzer e Auerbach, estudiosos contemporâneos de Carpeaux, trabalharam com vistas a um projeto de compreender “por dentro” e abraçar as inter-relações entre as várias literaturas da Europa até pelo menos a irrupção da Segunda Guerra Mundial. Coube a Carpeaux ler o Brasil primeiro pelos olhos dessa tradição e logo depois fixando-se no que de novo e problemático a realidade brasileira trazia para aquela extensa paideia.” (BOSI, 2013, p.409)

Por fim, síntese enquanto marca distintiva do romance brasileiro, formulação que comparece na entrevista a Almeida Fischer (1947) em que Carpeaux vê na literatura de Graciliano Ramos o que parecia impossível, a síntese das correntes regionalista e intimista “em equilíbrio definitivo”, o que, se por um lado faz-se como superação, por outro torna evidente “que uma fase da evolução do romance brasileiro chegou ao fim”. Anos mais tarde, Carpeaux parece recompor os elementos dessa síntese na tensão intrínseca entre a veritas (a verdade profunda do eu, buscada pelo romance intimista) e a realitas (os dados da história e da realidade objetiva), cujo equilíbrio constitui o “problema do romance brasileiro” (“Autenticidade do romance brasileiro”, 1999, p. 883). Se a fórmula se presta ao entendimento geral do problema, seu limite localiza-se na própria determinação de cada uma das instâncias, já que “existem tantas espécies de romance quantos romances existem” (“Suma de época”, 1999, p. 905).

Assim, consciente de que toda síntese é provisória, o que cabe ao leitor buscar em Carpeaux, no seu contínuo confrontar-se com a individualidade das obras, é a passagem possível pela qual a literatura brasileira se alteia à mundial não por submissão ou condescendência, mas como “pano de fundo variado para um destino comum”, construído pela “fecundação recíproca de elementos diversos” (AUERBACH, 2007, p. 362 e 357). Boa leitura.

Referências:

AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. Organização de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr. Tradução de Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2007.
BOSI, Alfredo.  Orelha. In: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos (1942-1978). Organização, introdução e notas de Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999, vol. I.
BOSI, Alfredo. Sobre Otto Maria Carpeaux. In: Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 405-421.
CARPEAUX, Otto Maria. Entrevista a Almeida Fischer. Letras e Artes, Rio de Janeiro, 4 maio 1947.
CARPEAUX, Otto Maria. A arte do romancista. O Jornal, 2 set. 1956.
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos (1946-1971). Prefácio de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 2005, vo. II.
LINS, Álvaro. Bibliografia brasileira. In: Jornal de crítica. 7ª série. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1963.

Nota:

¹ Em linhas gerais, trata-se do tema de minha pesquisa de doutorado em andamento na FFLCH-USP, dedicada a compreender o olhar de Carpeaux sobre o romance brasileiro.



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