Júlio Verne: uma viagem ao coração do mar

Por Juan José Rodríguez

O capitão Nemo observa um polvo gigante da cabine do Nautilus. Gravura de Alphonse de Neuville e Edouard Riou, 1870.



O quanto alguém tão peculiar como Júlio Verne ainda incendeia em nossas mentes? Ele não foi um Charles Dickens, um Balzac ou muito menos um Dostoiévski, mas toda a sua obra é uma coluna fundamental quando se trata de explicar o grande impacto da literatura nas sociedades modernas. Sem a sua presença não haveria marcos monumentais como a divulgação lúdica da ciência, a cultura do entretenimento, o gosto pelas viagens e o respeito sagrado pelas regiões desconhecidas da natureza.

Júlio Verne ainda nos cativa com seu ar de Art Nouveau os especialistas em cultura francesa diriam Segundo Império com sua voz antiga de antiquário e sua cenografia de espaços abertos em horizontes desconhecidos. Sua prosa de folhetim, planejada para manter em suspense um leitor muito mais cavalheiresco do que o atual, hoje padece de digressões doutorais, pois o desejo por um conhecimento deste tipo não sobrevive com igual força, apesar do fervor contemporâneo pela natureza e seus animais de estimação. Mesmo assim, sua capacidade poética de saber inaugurar um mundo, torná-lo sensorial e confirmar seu valor sobrevive em seus amantes e novos descobridores. Verne não foi apenas a National Geographic de sua época (a revista e o canal de televisão), mas o veículo ideal para que o desejo de aventura tivesse uma referência literária e, também, uma fonte alternativa de inspiração para a ciência.

Embora várias de suas previsões tenham sido inesperadamente precisas em Da terra à lua imaginou que a futura rivalidade entre a Flórida e o Texas seria a base para o projétil bizarro cientistas obstinados se gabam de que seu canhão, tal como concebido, não teria enviado a bala a uma distância digna de admiração. Há uma base de leitores ranzinzas que o veem como um personagem produto da mistura de Lumière, Barnum e Alexandre Dumas e preferem a ficção científica precisa de um H. G. Wells, de quem se fala que Verne o acusou de mentir, talvez por causa da simplista de suas ficções. Em todo caso, o francês sempre colocou em seus enredos uma troupee de personagens contrastantes, sem muitos conflitos melodramáticos, que conquistou nossa simpatia, tal como o cinema matinée. Verne foi o primeiro a acrescentar um afro-americano de grande visibilidade em um romance tão estadunidense como era A ilha misteriosa... embora exista quem lamenta que ele a tenha chamado apenas de “O negro Nab”, numa época em que apenas escravos e reis não tinham sobrenome, segundo Mark Twain.

Vinte mil léguas submarinas foram publicadas na Magasin d’Éducation et de Récréation entre 20 de março de 1869 e 20 de junho de 1870. Era uma publicação destinada a ensinar e entreter toda a família quinzenalmente e uma de suas principais publicações foi a série das “Viagens extraordinárias” de Verne. Geralmente, em dezembro, esta revista oferecia uma cópia com todo o livro compilado.

Medindo Verne

Cada livro deve ser visto em sua medida, tempo e circunstância. Os franceses depois de Verne nos legaram a análise estrutural e a obsessão de medir parágrafos e fazer gráficos cartesianos, capazes de retalhar Balzac da letra S a Z. Vamos reduzir esse livro a uma linha que é na verdade uma série de pontos organizados embaixo d’água.

Para começar, o que é uma légua? Por que nenhum tradutor desejoso por deixar sua marca num clássico atualizou o termo arcaico para gerações distraídas? Não sabemos que a lógica mercadológica ordena que qualquer produto cujo título remeta o leitor para um dicionário faz com que ele hesite e, finalmente, se afaste como costuma fazer diante do que parece criptografado?

Quando Júlio Verne cunhou este título literário, o sistema métrico decimal já estava em uso desde o 13 Brumário de 1800 e, embora Napoleão Bonaparte não gostasse, não ousou retirá-lo, segundo se conta em suas memórias em Santa Helena. Mas o leitor comum, a quem Verne se dirigia e que era seu principal objetivo e comprador, entendeu perfeitamente aquela ideia de dimensões e tempo que o autor lhe estava vendendo. Com tudo e suas variantes em diferentes países e regiões, uma légua é a distância percorrida aproximadamente a pé ou a cavalo por uma hora. Agora vamos imaginar todo esse tempo e distância no fundo do mar. Vinte vezes parece irrealizável, como ir à lua ou seguir uma caverna em direção ao centro da consciência.

Sigamos em campo: dizer a alguém que um povoado estava a uma distância de três ou cinco léguas, permitia ao viajante vislumbrar quanto tempo gastaria e calcular a luz do sol, energia ou os alimentos essenciais para manter a distância. A operação inversa também era possível: ao chegar a um lugar, seria possível saber a quantidade de horas de viagem investidas em uma época em que relógios eram um luxo. Dessa forma, Pancho Villa soube em 1919 o tempo e a distância que cavalgou com um bala atravessada no ventre a égua que lhe salvou a vida:  “Siete Leguas”, antes “La Muñeca”, e que mais tarde enviaria de trem ao presidente Adolfo de la Huerta uma grata oferta de paz. 

Essa invenção francesa do sistema métrico decimal ainda era pouco prático para as classes populares, mas não foi obstáculo para que o General Obregón intitulasse suas crônicas Oito mil quilômetros em campo em 1916. Ainda nos anos 60 continuava se chamando comediantes de légua os que participavam de caravanas ambulantes. O poeta Gerardo Diego tem uma décima onde narra como na loja da família mantinham o metro à vista caso o inspetor chegasse, mas ante às clientes, que só entendiam as medidas castelhanas para medir seus tecidos, acrescentavam “uma quarta e um corte”.

Nosso autor percebeu que “Léguas” ou seja, muito antes de chegar a ele, como se fosse uma cidade distante era um designativo simpático e acessível a quem se podia conversar sobre assuntos comuns. É aí que está o segredo do seu sucesso.

De cinco a vinte: um pouco de matemática

Voltemos a Verne e seu tempo. A légua náutica que o jovem Verne utilizou ao navegar no seu veleiro com os irmãos em Nantes equivalia a 5 mil 555 km. (5.555 m.) Mesmo para um francês nativo, pronunciar um número com tantos cincos era um verdadeiro trava-língua que requer habilidade matemática. Se você pegar a equivalência, multiplicando a liga náutica por vinte mil, terá um número muito estranho para colocar na capa de um livro.

Esta légua é equivalente a 1/20 de grau do meridiano terrestre, uma circunstância muito útil ao usar cartas marítimas. Hoje se utiliza a milha náutica de 1.852 metros e o nó equivale a uma milha náutica percorrida em uma hora. Para não confundir com a milha terrestre e não esquecer a equivalência, os marinheiros em língua espanhola chamam-lhe “un ocho sin codos”, trocadilho que soa semelhante ao pronunciar os quatro números que o representam: 1-8-5-2. Faça o teste você mesmo, ocupado leitor.

Outro detalhe é que a língua francesa ainda preserva vestígios da Idade Média, onde as pessoas preferiam contar em grupos de 20, à maneira dos maias e astecas. De 69 em diante, a numeração se torna mais complicada para quem nasceu em outras línguas já que se formam uma série de adições e multiplicações. Por exemplo, 70 é soixante-dix (60 + 10), 80 é quatre-vingts (4 x 20) e 90 é quatre-vingt-dix (4 x 20 + 10).

Esses 20 também ressoam em outro romance verniano chamado Le Tour du monde en quatre-vingts jours em francês: um adivinhador não francófono, acreditando-se astuto, pode inferir que se fala em uma viagem ao redor do mundo com quatro vintes por dia, mas esse título engenhoso não foi usado, embora o também francês Dominique Lapierre fizesse uma viagem nos anos 50 com um dólar por dia. Para este título, alguns outros autores o parafrasearam, desde Julio Cortázar com A volta ao dia em 80 mundos ou Marco A. Almazán, com La vuelta al mundo con ochenta tías.

O oráculo total: política, sociedades e ciência

A profecia é o gênero literário mais arriscado, mas Verne adivinhou nosso atual desconcerto não apenas na ciência. O Capitão Nemo é o puro guerreiro ambientalista que enfrenta os impérios macroeconômicos que mantêm sob suas botas as nações emergentes da Ásia, colonizadas em estado coloidal pela hegemonia britânica. Nemo significa “ninguém”, então somos todos Nemo ou Spartacus. O editor original estava preocupado com o exemplo de um hindu iluminista mais vingativo do que o Conde de Monte Cristo e em escala universal. Sua importância, ao investir contra os navios mercantes que poluem os oceanos com óleos e outros detritos, excede o ímpeto atual do Greenpeace e se aproxima daquele fundamentalismo capaz de lançar aviões contra arranha-céus ou de destruir novos impérios.

Naquela época, o monopólio inglês das rotas comerciais era um incômodo tanto para a França marítima quanto para alemães e estadunidenses, desejosos por acessar as reservas dominadas pela marinha imperial elizabetana. É surpreendente para nossos olhos ler, na tardia Carta do Atlântico assinada por Roosevelt e Churchill em 1941, que num ponto se negocia o direito de comércio e acesso às matérias-primas e no final da guerra, o Pacífico se tornou um lago gringo, das Filipinas às Aleutas, com dezenas de bases em atóis estratégicos. Churchill foi forçado a ceder boa parte de seu império externo para eles, transformando sua ilha num enorme porta-aviões para os Estados Unidos pousarem na Europa nazificada que poderia se tornar uma única União Soviética.

A idade de ouro dos cientistas loucos foi do século XVIII ao XIX, arranhando o século XX. Cada cidade do mundo que tinha uma universidade e uma grande biblioteca à mão tinha um ou mais professores obcecados por alguma panaceia eletromagnética, astronômica, fisiológica ou alquímica, como mostram as próprias anotações de Newton. Na Europa e em suas cidades mais cultas, eles passaram a formar legiões e competição mútua; dirigiam universidades que desenterravam corpos, colocavam uma perigosa chave na ponta de uma pipa ou convenciam condenados à morte a experimentar uma droga perigosa antes de ir para o cadafalso.

H. G. Welles preferia esses personagens solitários, presos em sua xícara de chá com um cachimbo e uma lareira inglesa: veja O homem invisível, A máquina do tempo ou O Ogilvy de A guerra dos mundos. Mas uma das obras mais duradouras de Arthur Conan Doyle (O mundo perdido) bebeu toda a influência de Verne ao enviar seus personagens para uma Venezuela amazônica onde o Professor Challenger explica tudo para nós. E esse foi seu único romance famoso sem o odiado Sherlock Holmes, outra versão policial do excêntrico sábio.

Muitos desses verdadeiros cientistas malucos acertaram o alvo de maneira aleatória, como Luigi Galvani, que descobriu o galvanismo enquanto dissecava uma rã e equivocadamente chamou o fenômeno de “eletricidade animal”, uma descoberta que gerou produtos tão díspares quanto a ideia de Frankenstein ou os sonhos sem fio do agora reabilitado Nicolas Tesla. O século das luzes não este isente de relâmpagos e faíscas.

O romancista e seus personagens

Felizmente, Verne não se meteu nas coisas metafísicas e preferiu imaginar artefatos mais cartesianos e pitagóricos, feitos em fundições e oficinas, que mais parecem concebidos por dois eminentes Gustavos franceses de sua época: Eiffel e Doré para melhor e para pior, e seguindo o jogo das coincidências, seus personagens não possuem os dramas internos que outro terceiro homônimo francês igualmente influente na arte do século XIX, um certo Gustave Flaubert, dotou suas criações.

Para seus contemporâneos os Goncourts, um romance é a história íntima das nações. A obra romanesca de Verne é a história íntima da imaginação enraizada na ciência, emergida de um positivismo, muito ao Segundo Império, mas sem a histeria de Victor Hugo, que moldou o século XX e ainda mantém seus estertores na idade das trevas das redes sociais.

Júlio Verne não era apenas um homem muito prático, mas sabia como acompanhar seus leitores, légua por légua, metro por metro, com um metrônomo hipnótico na linguagem. Há mais de 150 anos somos muitas gerações que navegamos com a música do órgão Nautilus junto com os ecos da nossa memória e esse gosto explica porque autores como Pérez-Reverte continuam a levantar alteres para o seu desejo cavalheiresco de aventura, embora a ficção científica não se dado ao garboso mestre de esgrima do Twitter. De vez em quando a indústria editorial exige ou cumpre a presença de um escritor capaz de fazer da popularização da ciência uma aventura e ainda não vemos um novo Asimov ou Bradbury capaz de repetir o milagre de Júlio Verne: por isso ainda continua vigente e vivente e, seu lugar, um pouco vago. Em vez de um grande Verne, temos muitos Salgaris.

E seus personagens? No início deste trajeto, mencionamos que eles sofrem de um grosseiro ar de Indiana Jones ou remetem aos descobridores da Ilha de King Kong. Ele não quis forjar com as mãos uma enorme tragicomédia humana como os outros grandes romancistas que foram Balzac, Dostoiévski ou Dickens. Stefan Zweig, fazendo um corte de caixa de três grandes romancistas do século XIX, afirmou isso em uma citação que vale a pena retomar:

“Os heróis de Balzac são ambiciosos e dominadores, ardem em desejos veementes de poder. Nada é suficiente para eles, são todos insaciáveis, são todos simultaneamente conquistadores do mundo, revolucionários, anarquistas e tiranos. […] Também os de Dostoiévski são impetuosos e arrebatadores, sua vontade rejeita o mundo e, com uma insatisfação orgulhosa, eles passam por cima da vida real para se apoderar do real; Eles não querem ser cidadãos ou homens, mas em todos eles o orgulho perigoso de querer ser um redentor brilha sob sua humildade. O herói de Balzac quer subjugar o mundo, o herói de Dostoiévski derrotá-lo. Ambos tendem a ir além do cotidiano, se dirigem como uma flecha ao infinito. Os personagens de Dickens, ao contrário, são contidos. Meu Deus, o que eles querem? Os ideais do mundo de Dickens foram contaminados pela palidez do mundo onde ele vive.”

Ele não tinha a intenção de dizer isso, mas Stefan Zweig inadvertidamente e resumindo os três tipos de personagens de Balzac, Dostoiévski e Dickens, descreve perfeitamente os ousados e às vezes muito atilados personagens de Verne. Eles queriam mudar o mundo, eram brilhantes e contraditórios, mas também estavam contagiados pela burguesia média de uma sociedade dominada pela ciência, pelo capitalismo industrial e pelos bons modos. Se fossem antagônicos a tudo isso, nunca hesitaram, como Nemo, em empreender uma jornada de desafios, embora a jornada durasse mais de Vinte mil léguas submarinas.

* Este texto é a tradução de “Julio Verne: un viaje al corazón del mar”, publicado aqui, em Confabulario.

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