O companheiro de viagem, de Gyula Krúdy

Por Pedro Fernandes

Gyula Krúdy. Foto: Arquivo


 
Entre o início e o final da narrativa de O companheiro de viagem opera-se uma lacuna interessante. Primeiro, esta novela repete um modelo recorrente na ficção: o da história dentro da história. Mas, apenas em parte seu protocolo é respeitado. Sabemos que, nesses casos, o narrador-organizador do que lhe é relatado, sempre intervém no decurso da narração, estabelecendo conclusões, oferecendo suas conjecturas e não esquece de, uma vez concluído o relato alheio, reaparecer como a autoridade acerca do que se narrou.
 
Ora, no caso da obra de Gyula Krúdy, ainda que em pequena proporção, esse ordenador do que lhe é narrado durante uma viagem, oferece alguns esclarecimentos sobre o que registra, mas, depois que a narrativa adquire seu ritmo, ele se perde. Como um maquinista que nos dá às boas-vindas, oferece as instruções para a viagem, mas uma vez chegados ao nosso destino nada mais sabemos dele. Também pouco sabemos sobre seu companheiro de itinerário: é um homem de idade avançada que parece tornar ao mundo comum depois de um isolamento de quase toda uma vida. Quando muito, catando uma peça aqui e outra ali desconfiamos que o autor dessa história encaixada que finda por ser a história principal, chama-se André (Bandi) Péter. Nada mais.
 
É para a meia-idade, aos quarenta anos, numa condição bastante aprazível, feita em parte de uma posição burguesa ― essa que um terceiro de seu convívio chega a condenar veementemente, dizendo-se juntar matéria para escrever um romance capaz de denunciar todos os vícios da vida íntima dos figurões de sua pequena cidade ― que retorna a fim de apresentar ao ouvinte algum elemento que justifique seu afastamento do mundo trivial. O elemento é amoroso, mas quem e como tudo se finda é um segredo bem urdido pela narrativa e apenas revelado à meia-luz no seu desfecho. Isso porque o que se diz pode inteirar outros desfechos diferentes. Não é o caso dos finais abertos, mas dos finais possíveis em que futuro concorre entre alguns destinos factíveis.
 
Este companheiro de viagem refere-se a alguns dos dias de sua curta estadia na cidade X, no interior da Hungria, quando no papel de estrangeiro ou forasteiro se envolveu repentinamente com parte das mulheres do lugar, a começar pela proprietária da casa onde aluga um quarto. O segredo do nome da cidade, mas não sobre as personagens do relato, é um daqueles elementos que, juntamente com a estratégia da história ouvida de um terceiro, participa como estratégia de verossimilhança. No final, recuperando o nível final da obra, é possível compreender ainda como um estratagema do próprio escritor em oferecer à novela certo estamento alegórico.
 
Instalado em X, em modo de retiro, ele repassa a vida repleta de mulheres e depois do encontro com um senhor, o autor da negativa sobre o modo de vida burguês, volta a desenvolver interesse por uma jovem; em contraste com o silêncio tumular do lugarejo, a vida arredia das suas gentes, se confirma um bulício, uma vida dupla, que transforma a mais recatada das senhoras em amante de proibida lascívia. Dentre todas, apenas Esztena é descrita como a mais pura do lugar. As observações de Szikrai fazem eco na vivência do recém-chegado porque ele próprio experimentou da liberdade encoberta entre as mulheres: no ato de selar o aluguel do seu quarto, tem um repentino envolvimento com a senhora Hartvig, um desejo subsumido ao longo da narração.



 
É Esztena que se torna, assim, motivo de crescente curiosidade do forasteiro. E essa personagem oferece alguns motivos para tanto: além da preservada castidade numa cidade em silenciosa perdição. Gestada ainda fora do casamento, a jovem se torna em peça sacrificial pela redenção da mãe depois de escapar ilesa do destino determinado de abandono; iguais a ela, outras mulheres padeciam do fim trágico ainda que o seu amante fosse o próprio homem a quem estavam juradas de casamento.
 
Pelo livramento, a mãe e Esztena envolvem-se numa fervorosa vivência para o religioso e numa rigorosa abnegação do corpo; pelo breve convívio com essa personagem este novato em X descobre os estreitamentos religiosos das duas mulheres, como a dedicação das duas para com os mortos. É nesse instante que a novela de Gyula Krúdy se expande. O fabular, que antes participa na elaboração de uma poética da descrição, torna-se narração e envolve os acontecimentos da realidade possível; exemplo significativo é presença de Morte, um dos muitos vizinhos de Esztena (a família está sempre em busca do lugar mais puro para morar), que exerce às vistas comuns seu papel ante o destino de todos ele toca.
 
Quer dizer, a riqueza da novela do escritor húngaro está na maneira como se articulam o erudito e o popular, uma vez que à presença do literário se verifica (nesse caso específico de Morte mas também no mito sacrificial da virgem) o enraizamento do imaginário folclórico. E, por falar sobre essas articulações essenciais à literatura, não deixemos de registrar como convivem o factual, isto é, os acontecimentos observáveis na realidade figurada, e o inventivo. E não são sobreposições, mas estreitamentos dialéticos que ampliam as camadas semânticas da narrativa.
 
Esztena é por vezes descrita como um anjo de X. Aos nossos olhos sua inocência pode se confundir com uma ingenuidade, mas ela encarna muito coerentemente certa denúncia das imposições religiosas e seu papel no tratamento alienante dos indivíduos. Isso fica melhor notável, além dos vários instantes de convívio com Esztena (como sua mãe felicita aos céus por um pequeno acidente em que filha perde um dos dentes ativando a feiura e o impedimento de aproximações masculinas ou a decisão da jovem, depois de saber pelas cartas da mãe, que um forasteiro a desvirginaria antes que se entregue para a vida religiosa como freira), como a cidade é invadida pelo alvoroço incomum ao descobrir que sua única filha pura debandou-se para o antro de perdições e claramente numa ida de Péter à igreja de X.
 
Colocando-se como um espírito negativo, pequeno demônio, seu olhar abre-se para uma variedade de sentimentos castradores despertados pelo ambiente religioso. Enquanto este mundo é apresentado pela senhora Hartvig como salvação, para ele é sua condena: “Não encontrei em lugar nenhum um rosto amigável que me acolhesse, acalmasse. Semblantes de olhar gélido, do além, observavam das paredes. Cristos insensíveis havia séculos, Marias indiferentes às queixas terrenas das mulheres, órbitas vazias, desesperançadas, acabaram por me tirar de vez a vontade de conhecer o outro mundo. Nesses santuários frios não se podia orar por outra coisa senão pela duração mais longa possível da vida desarrumada e sincera do lado de fora. O outro mundo ali representado só convencia o visitante de que os santificados continuavam a carregar as dores, e os mártires, a coroa de espinhos. Nada mudava; a cada dia, apenas o choro esfriava e pedra pesava mais.”
 
A vida folgazã do estrangeiro ― inebriado de amores repentinos em certa expressão hedonista segundo a qual “felizes são os homens de coração largo que sempre sentam à mesa do almoço com apetite, atiram a cabeça para trás e abrem a garganta para a bebida, fazem amor como os cães e na primeira esquina já esquecem do que lhes aconteceu na véspera” ―, em plena manifestação desde que estabeleceu sua condição de viandante, se notará tomada por uma repentina crise dos apetites diante desse anjo que a ele se oferece em imolação. Descobre-se desautorizado a seguir com o rito pelo contraste entre o reconhecimento de seu papel de libertino e a inocência educada pelas determinantes ideológicas de Esztena.
 
A impotência favorável à negação do previsto pelo destino de Esztena envolve ― mais que o aspecto consciencioso do forasteiro ― aquele máximo limite do amor: a morte. Ela ronda-o, espreita-o através do espírito perturbado e enciumado de Szikrai ou mesmo de todos os habitantes de X que depositam na virgem toda sua cota de boas expectativas na salvação. A realização amorosa nesse sentido é a ruptura definitiva com o idealismo e esta significa a morte. Parte de tudo isso se revela no encontro entre os amantes possíveis antes do encontro sexual, quando visitam o jazigo da família de Esztena, uma simbólica descida dessa personagem aos infernos.
 
As certezas sobre a obra de Gyula Krúdy entre nós são muito pequenas, mas podemos tirar algumas nesse movimento da tessitura textual. Por exemplo, desconhecemos se o escritor húngaro sabia sobre o mito do Don Juan (o que é improvável não saber), mas resultam inegáveis os enlaces entre a história do libertino espanhol e o relato em O companheiro de viagem. É verdade que nenhuma referência explícita salta na superfície da narrativa. Mas, todo imbróglio é um convite para o diálogo possível: diz o mito que Don Juan seduziu uma moça de família e para fazer cumprir seu ímpeto libertino assassinou o pai da jovem que, mais tarde, se mostrará como o espírito que o arrastará para o inferno.
 
Nosso forasteiro também promete casamentos às “serviçais robustas” e é responsável pelo desfazimento da paz de todas as que com ele cruzam. As semelhanças se ampliam quando sabemos que este sedutor não guarda remorsos do passado: “Tive casos com muitas centenas de moças que encontrei nas aldeias húngaras onde passava um ou dois dias. meus olhos se perdiam nos sapatos cheios de laços das escolares, e na igreja encarava a noive com tanta intensidade que a fazia enrubescer. Contava mentiras inesquecíveis a proprietárias de terras, embora soubesse que a estação se aproximava, que enfim desceriam do trem e desapareceriam para sempre.” E, claro, seu destino de isolado do mundo é, de alguma maneira sua condena, o que fará mais sentido, quando descobrimos o motivo para tanto.
 
“É preciso repensar os acontecimentos, atentar ao que nos cerca, examinar a intimidade das pessoas que encontramos pelo caminho, e isso tudo se resolve deitado. Porém, de vez em quando é preciso levantar, caso contrário a vida se torna vazia” ― a observação desse Don Juan pode bem servir como uma síntese de O companheiro de viagem: uma novela que se apura pelo exame de algumas intimidades e alcança o instante quando o examinador torna a levantar. Ou seja, esta é uma personagem que se recusa ao inferno como lugar definitivo. O mito, afinal, é uroboro.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #596

Boletim Letras 360º #604

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Bambino a Roma, de Chico Buarque

Boletim Letras 360º #603

Seis poemas de Rabindranath Tagore