Tudo sobre o golem

Por Juan Pablo Bertazza

O golem. Ilustração de Hugo Steiner-Prag para o livro de Gustav Meyrink.


 
Pensemos numa criatura feita de palavras — graças aos poderes místicos da Cabala Judaica e, principalmente, do Sêfer Yetzirá ou Livro da Criação — incapaz de falar, feita com o objetivo de proteger o gueto judeu, mas que acaba se tornando uma ameaça real.
 
Diferente de alguns parentes um pouco mais midiáticos como Frankenstein ou Drácula, o golem mantém na indústria e na história cultural um certo halo não tanto de mistério, mas de escabrosa raridade, inexpugnável e hermética. Antes do monstro de Mary Shelley, o golem estava à frente da ideia moderna do autômato; sua grande monstruosidade radica no mesmo princípio: ser um homem criado pelo homem.
 
A palavra golem, que vem do hebraico, aparece apenas uma vez na Bíblia, no versículo 16 do Salmo 139, e significa algo “inacabado” ou “em formação”. De acordo com uma tradição oral, o primeiro golem da história foi criado por ninguém menos que o neto de Adão, Enos, ao saber que seu avô não era filho de mãe e pai. Desde então, a história deste ser, sempre associada ao exótico reinado de Rodolfo II, teve inúmeras versões e lendas. Vamos ver algumas.
 
O golem de acordo com um dos irmãos Grimm
 
Os primeiros registros datam o nascimento da lenda do golem na cidade polonesa de Chelm e seu criador é Elijah, um rabino que nasceu em 1550 e morreu em 1583. Séculos depois, em 23 de abril de 1808, apareceu um texto do famoso autor Jakob Grimm num periódico literário alemão que, de acordo com várias fontes, constitui a menção mais antiga do golem na literatura alemã, embora a história pareça ser inspirada, por sua vez, noutro relato em latim de 1714 sobre o referido rabino polonês que, na cidade de Chelm, teria sido esmagado até a morte por sua própria criação.
 
O interessante é que Jakob Grimm, quem compôs essa história quatro anos antes de virem à tona as famosas histórias infantis escritas com seu irmão, omite completamente toda fonte e precisão, como se quisesse apenas apresentar um conto oral contemporâneo. Ao eliminar qualquer referência concreta tanto geográfica como histórica, liberta a lenda de qualquer especificidade e gera um impacto notável no imaginário dos escritores românticos do século XIX. Na verdade, o texto curto de Grimm levou E. T. A. Hoffmann a escrever “O homem de areia”, conto incluído em seus Contos noturnos e que, mais tarde, inspirou a famosa música “Enter Sandman”, do Metallica, em 1991.
 
Manuscrito encontrado numa biblioteca
 
A resposta judaica à secularização de Grimm foi religar a lenda a um rabino; neste caso, o Maharal Yehudah Loew, de Praga. Curiosamente, ele não foi um cabalista, mas um grande educador que, além disso, teve a virtude involuntária de ter sido contemporâneo do reinado de Rodolfo II, contexto extravagante e fértil para qualquer lenda.
 
Para o filósofo Gershom Scholem, a figura do golem está relacionada a um ritual de iniciação; o assunto dos trabalhos e obras corresponde a uma série de acréscimos posteriores. 1909 é um ano importante a esse respeito: é publicado um texto do rabino e escritor polonês Judel Rosenberg (1859-1935) que descreve exaustivamente a vida de Loew e oferece detalhes até então desconhecidos do golem. Ele o editou, segundo o próprio Rosenberg, depois de encontrar na biblioteca da cidade francesa de Metz um manuscrito do genro e discípulo de Loew, o também rabino Isaac Katz, que teria participado na criação do golem. O livro de Rosenberg, de cuja incrível autoria ninguém duvidou, teve algumas reescritas para o alemão e consolidou definitivamente o cenário da lenda em Praga.
 
Agora, o que diz aquela obra supostamente escrita pelo genro de Loew? Bem o oposto de Grimm: dá um contexto político e histórico à lenda. Durante séculos e em cidades tão diversas como Munique, Praga, Viena e Frankfurt, os judeus foram injustamente acusados ​​de matar cristãos pelo uso ritual de seu sangue na Páscoa. Aqueles que procuraram acusá-los plantaram o cadáver de um cristão no gueto e então se encarregaram de espalhar o boato. De acordo com Rosenberg, na primavera de 1580 o rabino Loew, junto com seus dois discípulos — seu genro Katz e Yaakov Sasson —, criou um homem da lama do Vltava. Este ser artificial deveria proteger os judeus de qualquer conspiração; também poderia obedecer a certas instruções, desde que fossem básicas e precisas. No entanto, numa sexta-feira, devido à falta de trabalho e empregos, o golem enlouquece e começa a destruir o gueto judeu. Alguns integrantes da comunidade vão procurar o Maharal na sinagoga onde ele está orando o Salmo 92 que antecede o Shabat e que proíbe qualquer atividade. O rabino pondera e decide que, como não terminou a oração, ainda não é o Shabat e pode desativar o golem. Desde então, o Salmo 92 é rezado duas vezes na Sinagoga Velha-Nova em Praga.
 
O Golem de Gustav Meyrink, um best-seller moderno
 
O romance que a princípio se chamaria A pedra das profundezas é um grande best-seller moderno e tornou o seu autor famoso mas não rico, pois havia assinado um contrato de dez mil marcos por uma única edição, sem receber um percentual de royalties das vendas.
 
Em 1911, Max Brod asessorou Meyrink sobre certas questões da Cabala judaica. A colaboração de Brod é crucial na redação do livro. A outra parte do sucesso se deve a Georg Heinrich Meyer, um verdadeiro gênio da publicidade que inundou as ruas e jornais com anúncios sobre O Golem. A recepção foi entusiástica desde o ano de sua publicação (1915): os críticos compararam Meyrink com autores canônicos como Edgar Allan Poe e E. T. A. Hoffmann. Em 1925, o romance vendia nada menos que 222 mil cópias.
 
O engraçado é que a famosa lenda quase não aparece no romance: o golem é mais uma figura ameaçadora que retorna a cada trinta e três anos. Um terrível presságio. Acima de tudo, o golem é um complemento ao narrador e protagonista que, embora não tenha nome, ao usar por engano um chapéu da Catedral de São Vito, acaba se tornando outra pessoa: o lapidador Athanasius Pernath. A fusão parece total e só é desativada quando o narrador consegue acessar a si mesmo, após viver encontros ameaçadores com o golem, caminhar por uma Praga coberta de neve e passar um tempo na prisão por uma acusação injusta. Depois de sair da prisão, o protagonista busca desesperadamente seus amigos em meio ao colapso do bairro judeu que, de fato, ocorreu no início do século XX.
 
Uma das grandes virtudes do romance é a descrição do gueto sem romantizá-lo; antes exibindo sua miséria, sua desordem e sua atmosfera misteriosa. As descrições abundam em passagens secretas, porões, corredores inesperados e quartos com entradas múltiplas. Romance de mistério, ou mesmo de terror, seu desfecho é cômico. Talvez tenha sido essa variação surpreendente que fez de O Golem de Meyrink uma das obras favoritas de Franz Kafka, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar.
 
Os golens de Paul Wegener
 
O ator e diretor alemão Paul Wegener ficou tão impressionado com a lenda do golem que dirigiu e estrelou três filmes sobre o assunto. Na primeira versão de O Golem (1914) a lenda não é retomada: em uma sinagoga abandonada, um velho estudioso descobre o cadáver do golem, leva-o para casa e o ressuscita. A partir desse momento, o golem se torna o guardião de sua bela filha, mas se apaixona por ela. Ao descobrir que seu amor não é correspondido, fica cego de fúria.
 
O segundo filme de Wegener, Golem and the Dancer (1917) é uma comédia curta muito estranha em que o protagonista se disfarça de golem para conquistar uma bailarina. Nenhum dos dois filmes teve qualquer repercussão e hoje apenas alguns fragmentos estão preservados.
 
Por outro lado, o terceiro — Golem, como veio ao mundo (1920) — despertou grande interesse não só na Alemanha, mas no exterior, principalmente em Nova York. Este terceiro filme é o que mais se assemelha à lenda do Rabino Loew de Praga. Nele, o golem, novamente, se apaixona por Miriam, a filha do rabino. O amor não correspondido o leva de volta a uma fúria assassina e incendeia o bairro judeu. Com as casas em chamas ao fundo, um golem incontrolável deixa o gueto e entra num jardim cheio de crianças. Todos fogem de terror, exceto uma garota que, com total ingenuidade, começa a brincar com o recém-chegado e, sem querer, tira o shem — nome sagrado que lhe dá vida. O golem desmorona. O amor, sentimento que humaniza o golem em seu momento mais cruel, é também a causa de sua própria morte.
 
O golem comunista
 
Jiří Voskovec e Jan Werich são dois lendários atores tchecos que lidaram com o tema do golem em uma peça estreada em 4 de novembro de 1931 em seu famoso Teatro Liberado. A Cabala se destaca por sua ausência. O que buscavam era, ao contrário, recuperar o clima renascentista de Praga para compor uma sátira sobre a corte imperial. Nesse contexto, a figura do golem, totalmente despida de misticismo, tornou-se uma espécie de Hulk tão bondoso quanto ridículo.
 
Os dois atores decidiram então adaptar a peça para o cinema e chamaram o diretor francês Jules Duvivier, que concordou com uma condição: que não fosse uma comédia. O tempo era de trevas: Hitler chegou ao poder e as leis raciais foram promulgadas em Nuremberg. Com isso, Duvivier queria que a personagem do golem fosse um símbolo de proteção dos judeus. Depois de muitos obstáculos, o filme acabou sendo rodado em 1936 em Praga numa coprodução tcheco-francesa. Voskovec e Werich processaram Duvivier pelas mudanças no roteiro e receberam indenização por demissão.
 
O ator Jan Werich teria sua revanche em 1951 com O imperador e o golem, outra comédia sobre o golem cujo enorme orçamento é um exemplo dos excessos a que pode chegar um estado socialista. Nele, Werich tem dois papéis: o imperador do Sacro Império Romano, que continua furioso porque seus colaboradores não conseguem encontrar o golem — uma espécie de estátua amorfa de três metros de altura — ou comer como um porco burguês. Ele também interpreta o padeiro, um homem gentil que acabam confundindo com nada menos do que o rei por causa de sua semelhança física. O que é interessante no filme, que ainda é exibido na República Tcheca e em outros países da Europa Central todos os finais do ano, é que, embora seja uma comédia divertida e de sucesso que respeita a ideia original de Jan Werich, também transpira de maneira notável ​​os supostos princípios do regime sobre o poder das pessoas comuns e a busca pela paz. 

* Este texto é a tradução de “Todo sobre el gólem”, publicado aqui, na revista Nexos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574