La Fontaine, quatrocentos anos de “Era uma vez...”

Por Marta Ailouti

Ilustração: Henri Galeron


 
“Muitas vezes encontramos nosso destino nos caminhos que tomamos para evitá-lo”, dizia Jean de La Fontaine. Pai da fábula moderna, o francês reescreveu muitas das histórias de Esopo e Horácio, mas também das tradições orientais, adaptando-as ao seu tempo, com um estilo mais refinado em forma de poesia. São dele as versões de “A cigarra e a formiga”, “O gato e o rato” ou “A raposa e o busto” que todos conhecemos hoje, contos de moral, máximas de sobrevivência e instrumentos pedagógicos de primeira ordem nos anos em que a cultura popular ainda era plenamente oral.
 
Escritor fundamental da literatura francesa, Flaubert disse que ele era o único capaz de compreender e dominar as texturas da língua gaulesa. Quando se cumprem 400 anos após o nascimento do escritor, um dos mais traduzidos e lidos do mundo, a editora Libros del Zorro Rojo publica uma edição comemorativa de suas fábulas, ilustradas por outro artista virtuoso, Marc Chagall, que inclui 43 gouaches do pintor, em sua maioria inédito, apresentados pela primeira vez em Paris em 1930.
 
Vindo de uma família abastada ligada ao serviço público de Luís XIII, La Fontaine nasceu a 8 de julho de 1621 em uma mansão em Château-Thierry, onde passou sua juventude. Depois de uma breve estada de um ano e meio em um seminário parisiense, o fabulista retomou seus estudos de direito na capital francesa. Lá ele frequentou o mundo cortês e poético da época com outros jovens poetas como Pellisson, François Charpentier, Tallemant des Réaux ou Antoine de Rambouillet de La Sablière.
 
Em 1652, adquiriu o cargo de professor particular trienal de águas e florestas e herdou de seu pai as funções de manejo florestal, o que lhe permitiu, por um lado, dedicar grande parte do seu tempo à escrita e, por outro, entrar em contato pela primeira vez com aquela natureza viva que logo povoaria suas fábulas. Após a publicação de sua primeira obra, uma adaptação de “O Eunuco” do romano Terence, La Fontaine sempre conviveu com o poder, que sutilmente ridicularizou e satirizou em suas fábulas, e manteve personagens ilustres e influentes como o todo-poderoso ministro de finanças, Nicolas Fouquet, ou vários nobres da corte de Luís XIV, como a duquesa de Bouillon e a duquesa de Orleans.
 
Uma referência secular
 
Membro do chamado Quarteto da Rue du Vieux Colombier junto com autores da estatura de Molière, Racine e Boileau, em 1684 ingressou na Academia Francesa e participou ativamente do mundo intelectual da época. Culturalmente inquieto, inspirou-se em Ariosto, Boccaccio, François Rabelais e Margarita de Navarra para as suas histórias e romances e também cultivou a poesia, a ópera, o teatro e algumas comédias.
 
Autor de um total de 243 fábulas, que publicou em vários volumes — entre 1668 e 1679 —, com um tom didático e moral, La Fontaine renovou este gênero, considerado na época inferior, graças a uma linguagem poética e sua poderosa engenhosidade. Caracterizadas por sua brevidade, aparente simplicidade e estrelados por animais antropomórficos, a primeira publicação dessas fábulas, que incluiu os livros I a VI, foi em 1668. Inspiradas nos modelos do mundo greco-latino como Esopo e Horácio, uma das suas mais importantes e conhecidas histórias, A cigarra e a formiga, foi o ponto de partida desses contos que continuaram com sucesso em 1679 e que bebiam das narrativas tradicionais, orientais e ocidentais e das tradições orais.
 
Consideradas desde a sua publicação a obra-prima da literatura francesa, devido ao seu caráter didático e universal, estas fábulas foram publicadas em várias edições ilustradas ao longo dos séculos com gravuras de Jean-Baptiste Oudry em meados do século XVIII, por J. J. Grandville em 1883, Gustave Doré em 1867 e Benjamin Rabier, já no início do século XX. Essas ilustrações, no entanto, não satisfizeram o galerista francês Ambroise Vollard que, em 1926, encomendou a Marc Chagall, por sua estética “densa e sutil, realista e fantástica”, uma nova interpretação pictórica.
 
Lutar contra a estupidez
 
“Aqueles que ilustraram as Fábulas até agora refletiram apenas alguns de seus méritos”, escreveu ele em um artigo. Alguns viram um contador de histórias em La Fontaine; outros, o observador cruel da comédia humana; estes últimos, a um espírito rebelde com os dons de um caricaturista, um diletante, com fundo de moral burguesa; aqueles a um autor do pitoresco, a natureza e os episódios da vida rural, um satírico, um descritivo, um animalista. Todos eles o circunscreveram a um ponto de vista ou outro, como se não entendessem que abrangia tudo isso e mais.
 
Apresentadas pela primeira vez em Paris em 1930, as ilustrações de Chagall, no entanto, provocaram diferentes reações na imprensa, muitas com conotações antissemitas, quando alguns críticos chegaram a perguntar: “Como um judeu eslavo ousou se aproximar da alma latina?” ou “encomendar a ilustração de La Fontaine, um poeta tão essencialmente francês, a um russo, e ninguém menos que Chagall?” Curioso, lembrava o próprio Villard, em um autor tão internacional como La Fontaine, que bebia de fontes persas, hindus, árabes e até chinesas, “das quais tirava não só temas, mas às vezes até o quadro e a atmosfera de suas recreações”.
 
Autor de frases tão universais e atemporais como “todos os cérebros do mundo são impotentes contra qualquer estupidez que esteja na moda”, “nada é mais perigoso do que um amigo ignorante; um inimigo sábio valeria mais” ou “a excessiva atenção dada ao perigo nos faz incorrer nele com frequência”, La Fontaine, com saúde deteriorada desde 1692 e sofrendo de tuberculose, negou parte de sua obra em 1693, admoestado pela censura de algumas de suas histórias, e prometeu se dedicar a textos mais “piedosos”.
 
Em 13 de abril de 1695 morreria um escritor que não só renovou e popularizou o gênero das fábulas, mas também influenciou o grande despertar do conto folclórico europeu, que, após o testemunho dado por seus conterrâneos Charles Perrault ou Madame Leprince de Beaumont, viveria seu apogeu definitivo durante o Romantismo, das mãos de autores como o dinamarquês Hans Christian Andersen ou os irmãos Grimm, que incluíram todo o corpus de lendas germânicas e nórdicas no folclore europeu.

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* Este texto é a tradução de “Jean de la Fontaine, 400 años de ‘Érase una vez...’” publicado aqui, em El Cultural.

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