Vida, de Paulo Leminski

Por Pedro Fernandes



Não queria datar essas notas sobre esse livro de Leminski, mas parece impossível estando numa época em que os humores andam alterados ante a confusão sobre as biografias não autorizadas. Evidente que os editores que puseram as mãos na massa para que estes livros do poeta curitibano, igualmente fora de circulação já algum tempo, voltassem à tona depois do sucesso merecido de Poesia Completa, editado também este ano, não tinham noção do que se gestava no interior dos envolvidos na polêmica. O fato é que tudo parece ter vindo no momento oportuno, embora Vida seja um conjunto de textos que não devem estar reduzidos aos polos envolvidos na questão. Na atual situação e mesmo antes quando Leminski redigiu as quatro biografias reunidas nesse livro, é possível que não houvesse familiares interessados em comprar um bate-boca gratuito; talvez reste alguns partidários das ideias dos biografados que divergissem/ divirjam sobre um ou outro aspecto, mas não teriam condições de acusá-lo de difamação ou mácula da imagem histórica – duas direções temidas pelos biografáveis.

Isto porque Vida trata dos nomes Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – quatro figuras históricas um tanto polêmicas, pode se dizer, e que, talvez justamente por isso, contribuíram para engendrar um modelo de existência, modelo esse, que parece ser a busca principal do próprio Leminski. Antes de entrarmos na construção dessa engrenagem leminskiana vale algumas informações contextuais da produção desses textos: Vida foi escrito ao longo da década de 1980 e formaram parte numa coleção chamada “Encontro radical”. Escrito em partes, mas pensado como uma obra integral: num depoimento em junho de 1985 e reproduzido na atual edição da Companhia das Letras, o próprio Leminski manifesta o que ele chama por “ciclo de biografias” – “São quatro modos de como a vida pode se manifestar: a vida de um grande poeta negro de Santa Catarina, simbolista, que se chamou Cruz e Sousa; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se dedicar apenas à poesia e é considerado o pai do haikai; Jesus, profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva dois mil anos depois; Trótski , o político, o militar, o ideólogo, que ao lado de Lênin realizou a grande Revolução Russa, a maior de todas as revoluções, porque transformou profundamente a sociedade dos homens. Transformou de tal maneira que a sociedade hoje está dividida em dois blocos: o ocidental e o oriental.”

Agora, mesmo sendo este um conjunto de biografias, uma vez diante delas o leitor não encontrará apenas com uma escrita que tenta desenhar a imagem de uma personagem histórica; descobrirá nos detalhes nuances do próprio biógrafo: “Perfeição só existe na integração/ dissolução do sujeito no objeto:/ Na tradução do eu no outro./ É por isso que você gostou tanto deste livro/ Você agora, sabe./ Você, eu sou Cruz e Sousa.”

Seríamos ingênuos, aliás, em acreditar que a necessidade de biografar esteja diretamente ligada ao sujeito pesquisado; o escritor da biografia é, de um modo ou outro confrontado consigo próprio, com suas inquietações, seus anjos e seus demônios, responsáveis por amalgamar essa imagem buscada pela palavra escrita. No caso do Leminski isso é coisa vista a olho nu se soubermos que: mesmo estando à margem, propôs romper com um modelo poético (Cruz e Souza); teve largo interesse pela grafia do poema curto, de natureza haikaísta (Bashô); se se interessou por romper com um modelo poético, buscou pela poesia algum modo de revolução profunda no coração da linguagem e no modo como o poema é incorporado socialmente pelos leitores (Trótski); e tentou, ainda pela via da poesia, parabolizar o costumeiro no intuito de reinventar o real (Jesus). Mas, Paulo Leminski não é Cruz e Sousa, nem Bashô, nem Trótski, nem Jesus, porque cada um, além de serem figuras únicas, produziram, à sua maneira, formas actanciais da grandeza da vida; todos eles são irmanados na crença de que, mesmo sendo a vida um instante tão insignificante diante do universo não deve ele ser gasto com pouca coisa, mas com uma obsessão capaz de não deixar que a engrenagem da própria história da humanidade caia fora de eixo.

O trabalho de Leminski no desenho dessas figuras é também um exercício de linguagem; é por ela, aliás, que o poeta vai buscar suas bases interpretativas para quem foi cada um dos sujeitos aí em questão. Isto é, não é o causo, nem a história pitoresca, ou o documento monumento os elementos que dão forma ao trabalho do biógrafo, mas a própria materialidade discursiva produzida por cada um deles ou a eles atribuída, no caso de Jesus. Por exemplo, quando busca falar sobre Cruz e Sousa, Leminski traz a obra do poeta, para o interior de sua escrita e ela ora serve-lhe de citação direta, como se quisesse dizer que o poema fala por si em se tratando de determinadas questões, ou seja, numa clara alusão de que a vida se manifesta na obra e a obra se manifesta na vida, destruindo as barreiras entre uma e outra; ora a obra de Sousa lhe serve de itinerário pelo qual o próprio biógrafo forja um modo de escritura, promovendo um encontro híbrido de linguagens. Se formos ao tom de cada um dos textos, encontraremos melhor isso que estou dizendo: Leminski é poeta quando é preciso sê-lo, é profeta quando é preciso sê-lo e é igualmente político. O gesto, não apenas é modo de exercício de escritura e de linguagens, mas de tradução da existência pela literatura. “Cada vida é regida pelo astro de uma figura de retórica. Certas vidas são hiperbólicas. Há vidas-pleonasmo. Elipses. Sarcasmos. Anacolutos. Paráfrases.”

E das expressões buscadas por Leminski em seu Vida, numa opinião muito própria, o encontro do poeta com a literatura do poeta de Santa Catarina parece ser o gesto mais significativo do livro. Por uma razão muito simples: expor aos olhos comuns uma figura marginal e soterrada pela produção de uma violência que remonta ao descobrimento do Brasil, fazendo da sua marginalidade não objeto, mas meio pelo qual o poeta construiu sua renovação da poesia brasileira. Cruz e Sousa não fará disso, ao contrário do que se poderia pensar, um motivo para estar reduzido ou colocado sobre os escombros ou ainda elemento pelo qual sua obra possa ser lida; Sousa vai além e é este além que Leminski capta para o interior da escrita da biografia do poeta de Broqueis. Para o biógrafo, o simbolismo se constitui no Brasil numa estética ausente – ao menos nos moldes como foi fora do país; Cruz Sousa, o apontado pela crítica como sendo o representante maior do movimento, foi, aos olhos de Leminski, um expressionista e o simbolismo uma revolução contra o parnasianismo: “fosse um negro norte-americano, Cruz e Sousa tinha inventado o blues. Brasileiro, só lhe restou o verso, o soneto e a literatura para  construir a expressão de sua pena.”

Revolução talvez seja a palavra-chave ou a palavra motivadora de todo o Vida. A figura de Bashô em “Bashô – a lágrima do peixe” (também de 1983) é outro exemplo desse sentido no qual estão irmanadas as personagens leminskianas. No desenvolvimento desse retrato, por exemplo, o poeta aflora e vai por entre a estrutura da linguagem para apresentar ao público a natureza do haikai; do mesmo modo que, em certo momento, a filosofia do judô e as lições do zen – note-se mais duas vivências do próprio Leminski. Isto é, Matsuó Bashô é o elemento motivador para uma apreciação da cultura oriental, compreendida aqui, não como um ente isolado, ou por oposição ao modelo ocidental de vida, mas como uma conjunção de diversas nuances, que juntas, compõe uma imagem leminskiana do haikaísta japonês. Além de servir ao biógrafo para uma compreensão das raízes do haikai no Brasil, função atribuída a nomes – como Cruz e Sousa – igualmente postos à margem da crítica ou da historiografia literária nacional: Afrânio Peixoto, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida.

No texto seguinte, “Jesus a.C.” (de 1984), Leminski faz o que a arte, em grande parte tem feito: considerar a figura histórica e não a entidade santificada como foi sendo desenhada pelos primeiros arremedos das religiões cristãs e a elevação politicamente construída pela Igreja Católica. O biógrafo abre seu texto com o que seria um texto jornalístico sobre a atuação de Jesus no templo. A cena bíblica reescrita por outro gênero textual tem já o caráter de trazer a personagem para o território comum, numa tentativa de buscar uma face mais próxima do lugar real dos homens; a visita que faz aos evangelhos, por vezes detalhando a gênese e os contextos dos textos, por exemplo, não se reduz aos do cânone comum, Leminski volta também aos apócrifos e ao antigo testamento, propondo assim uma releitura da tradição e do canonizado, abrindo possibilidades, vias mais lúcidas através das quais se possa compreender o lugar de Jesus na sociedade e sua importância no curso da história humana. A personagem perde, assim, o trejeito santo, para adquirir a imagem dos tantos profetas que fizeram sua inserção noutras situações comuns. Nessa revisão proposta não é apenas uma nova visão de Jesus que se ergue, é também uma compreensão sobre outros elementos da sociedade ocidental: a crença no demônio, o surgimento do capital financeiro e sua relação com as “religiosidades primitivas”, o lugar subalterno da mulher e seu papel no culto religioso e na vida de Jesus, o nascimento do cristianismo, uma seita tornada ortodoxia.

Muitas são as imagens de Jesus: o poeta, o revolucionário, o marginal, o responsável pela interiorização dos ritos e a invenção da alma e de uma vida interior tal qual temos mais ou menos familiaridade desde as teorias da Psicanálise. E, no fim de contas, é o biógrafo quem alfineta com seu olhar o lugar desviado com que se erguem as religiões de base cristã: a doutrina apesar de se alimentar dos discursos atribuídos a Jesus não alcançou em nenhum momento de sua história a base defendida pelo próprio Jesus: “Nenhuma das Igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou. Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons, e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensanguentaram a Europa nos séculos XVI e XVII.”

Na última biografia proposta por Leminski, “Trótski – a paixão segundo a revolução” (de 1986), a base para composição da figura histórica novamente se apropria da literatura. O molde aqui escolhido é o livro de Dostoiévski Os irmãos Karamázov lido pelo biógrafo como uma metonímia da construção histórico-social da Rússia e da formação das bases da Revolução levada a cabo por Trótski. Novamente o leitor estará sendo levado pela mão de uma narrativa cujo motivo principal é elemento referencial para apreensão de outras situações, nesse caso, da história da humanidade: sobre os motivos das revoluções e os avanços que elas trouxeram na consolidação de uma série de elementos emancipatórios do sujeito e dos modos de vida comum; Leminski veste-se da pele de analista da conjuntura da história para compreender a princípio a importância da revolução sobre os limites sedimentados entre determinadas situações da história, isto é, recobra a revolução, a “revolução verdadeira”, como necessária à revisão de determinados lugares-comuns.

Tudo apresentado, assim, de modo muito didático. Ao lugar do biógrafo, do poeta, do historiador, intervém o lugar do professor, aquele que diante das leituras mais complexas (ou tornadas assim) têm o mérito de nos colocar diante da sua não complexidade. Dificilmente o leitor de Vida sairá dessa leitura sem que tenha incorporado ao seu saber uma elevada dose de conhecimento significativo para a sua própria vida. Porque Vida é além de uma homenagem à grandeza da vida em todos os momentos – parafraseando o próprio escritor –  um conjunto de lições, se não fundamentais, importantes sobre nós próprios, no que fomos, somos e podemos nos tornar.


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