Suave é a noite. O declínio de um roteirista chamado F. Scott Fitzgerald



Por Manuel de Lorenzo

F. Scott Fitzgerald. Arquivo Princeton University Library

Quando F. Scott Fitzgerald traçou em Suave é a noite a história de Dick River, sua glória e queda, a doença mental de sua companheira, a descida aos infernos do álcool, sua insegurança emocional e a falta de controle financeiro, estava deixando um testemunho por escrito de sua própria história. Uma jornada de vida que o coroou como a voz mais talentosa de uma geração extraordinária, a de John Dos Passos, Robert B. Parker, Ernest Hemingway e William Faulkner, e acabou jogando-o na lama, derrotado por seus próprios demônios. Em 1921, um ano depois de publicar Este lado do paraíso, seu primeiro romance, ele fez uma confissão profética no artigo “My Lost City” (Minha cidade perdida): “Lembro-me de viajar de táxi uma tarde entre edifícios altos e um céu cor de rosa e malva; Comecei a chorar muito, porque tinha tudo o que queria e sabia que nunca seria tão feliz novamente”. Treze anos depois, quando terminou de escrever Suave é a noite, seu quarto e último romance, estava lutando para impedir o inevitável colapso de um universo pessoal em ruínas.

Hollywood, a frivolidade de Los Angeles, o brilho falso da lucrativa indústria cinematográfica foi seu último refúgio em seu voo resignado de fuga para o futuro. Raymond Chandler, outro dos famosos protagonistas do êxodo da literatura para o celuloide no início dos anos 1940, descreveu com precisão esse sentimento de degradação intelectual em A dália azul, um romance inacabado que se tornou um roteiro: “O negócio do cinema é o único negócio em que você pode cometer todos os erros possíveis e continuar ganhando dinheiro... É o show business. Há algo barato em tudo isso”. O brilho vazio, mas lucrativo, do ouropel foi o que atraiu em 1937 um Fitzgerald encurralado pela falência, o alcoolismo, e a esquizofrenia de sua companheira Zelda, as caríssimas mensalidades do hospital psiquiátrico onde estava internada e os altos custos dos estudos de sua filha. Ele morreria três anos depois, deixando evidências de sua frustração em seus últimos escritos: os contos de Pat Hobby, uma série de histórias publicadas na Esquire sobre um roteirista alcoólatra e vindo de uma situação em que fora alguém, e O último magnata, um romance inacabado sobre a vida deslumbrante mas inacessível de um produtor de filmes de ficção chamado Monroe Stahr.

Ou não é tão fictício. Na realidade, a personagem de Stahr foi inspirada em Irving Thalberg, o jovem e bem-sucedido gerente de produção da recém-criada Metro Goldwyn Mayer e sobrinho de Carl Laemmle, fundador e proprietário da Universal Pictures. Se Pat Hobby representava o lado sórdido do mundo do cinema, esse onde Fitzgerald foi aterrissar, Stahr era a personificação de tudo o que fascinava ao escritor em Hollywood e nunca pode alcançar.

Fitzgerald havia trabalhado para Thalberg em 1927 e 1931, anos em que teve suas primeiras aventuras com o cinema. Anteriormente, em 1923, ele havia sido contratado para escrever o roteiro de seu primeiro romance, Este lado do paraíso, mas o resultado não convenceu os estúdios, e o filme nunca foi filmado. Infelizmente, a experiência de Thalberg durante o tempo em que ele começou a escrever Suave é a noite, também o levou ao fracasso. Embora a personagem de Barton Fink, o protagonista do filme homônimo dos irmãos Coen, seja baseado no dramaturgo Clifford Odets, seu isolamento em um hotel miserável e os encontros contínuos com seus produtores são um reflexo fiel das circunstâncias pessoais e profissionais de Fitzgerald sob a autoridade do infalível Thalberg, conhecido como “o menino de ouro”. Seu lema era: “Os filmes não são feitos, são refeitos”; uma filosofia de trabalho que deixava o autor de O Grande Gatsby um tanto desesperado, uma vez que viu como suas ideias eram continuamente reformadas e mutiladas por outros roteiristas. No magnífico ensaio The Crack-Up, Fitzgerald escreveria sobre cinema: “É uma arte na qual as palavras estão subordinadas às imagens, enquanto a personalidade se desgasta no inevitável mecanismo de colaboração”. Ao contrário dos escritores, os roteiristas estavam longe de estar no controle do roteiro. Sobre o texto final. Isso pertencia inteiramente aos produtores, a quem Fitzgerald, no mesmo ensaio, chama de “mercadores de Hollywood” em cujas mãos “uma arte mecânica e comunitária”.

Desencantado, farto de um meio que sujeitava o talento a esse espartilho, mas, sobretudo, demitido por Thalberg – que em sua biografia descreve Fitzgerald como um caso perdido, consumido por álcool e ressentido por não ter triunfado em Hollywood como alguns dos seus colegas – o autor tentou retornar ao mundo de onde veio, mas descobriu que havia sido cruelmente devastado pela Grande Depressão. Dos felizes anos vinte, que descansam para sempre nos primeiros romances de Fitzgerald, havia apenas algumas mesas de coquetel flutuando à deriva. O escritor e sua companheira foram os principais expoentes da próspera década do jazz, figuras proeminentes da sociedade de Nova York, famosas por suas festas, escândalos e extravagâncias. Ele fora Gatsby – como antes fora Amory Blaine e depois seria Dick River e Pat Hobby – e ela fora Daisy. Mas agora ele era um bêbado arruinado e Zelda uma mulher doente presa para sempre numa clínica. “Não há segundos atos nas vidas dos estadunidenses”, diz uma de suas citações mais famosas. Não há transição entre a ideia e o resultado. Entre esplendor e decadência. Entre ascensão e queda. Mais uma vez, como sempre, Fitzgerald volta a se referir a si mesmo.

Suave é a noite sobreviveu. Foram necessários oito longos anos para escrever o que ele considerava seu melhor romance. Ele começou a fazê-lo um ano depois de publicar O grande Gatsby, em 1926; continuou trabalhando depois de flertar pela primeira vez com Irving Thalberg em 1927; não o deixou de lado durante sua estadia em Hollywood em 1931; nem desistiu quando Zelda teve que ser internada no Hospital John Hopknis, em Baltimore, em 1932. Foi nessa época que ele decidiu alugar a propriedade La Paix em Towson, Maryland, para ficar perto de sua esposa e, ao mesmo tempo, poder terminar seu romance. No momento em que o publicou, no entanto, estava em total falência e profundamente preso ao álcool, o que, juntamente com a cautela dos críticos, que não esperavam que o escritor do charleston e do champanhe os devolvesse imediatamente ao dura realidade, obrigou-o a aceitar a oferta que, oportunamente, veio da Costa Oeste.

Scott Fitzgerald regressava a Hollywood em 1937, mas desta vez estava fazendo isso com um contrato com os estúdios Metro Goldwyn Mayer por mil dólares por semana, que em breve aumentaria para 1.250. Além disso, suas circunstâncias pessoais e profissionais em Los Angeles haviam mudado. Ele morava em um hotel no Sunset Boulevard, chamado Jardim de Allah, e ia todas as manhãs para o trabalho, um cubículo localizado em algum andar do chamado “prédio dos escritores”, onde batia o ponto e ficava oito horas por dia montando roteiros como alguém colocando parafusos numa linha de montagem. Porque, no fundo, era isso o que fazia. Fabricar um dos muitos elementos que, unidos e ordenados, davam forma a um filme.

Naquela época, os roteiristas eram considerados um mal necessário. Em O último magnata, o narrador explica que ele costumava confundir o andar dos roteiristas com o das secretárias, a única diferença entre as duas era que a segunda cheirava a verniz e a primeira a tequila. Em uma entrevista há alguns anos, Francis Ford Coppola fazia referência a esse cenário em que os magnatas do cinema, empresários dessa indústria, como poderiam ter sido de qualquer outra, subestimaram abertamente o talento de seus criadores: “Havia Parker e Fitzgerald, as duas pessoas mais cultas dessa geração, trabalhando para pessoas que eram... fabricantes de luvas? E sempre com o discurso de “Ei, eu não fui para a universidade, mas tenho esses escritores (...) trabalhando para mim”.

Talvez tenha sido essa a razão pela qual a máxima mais celebrada pelos escritores captados por Hollywood na época consistia naquelas três palavras com as quais Hemingway resumiu a relação ideal com os estúdios de cinema: “Receba e vá embora”. Embora, verdade seja dita, nem todos tenham se saído tão mal. John Steinbeck, por exemplo, cujo trabalho também foi adaptado com sucesso, como As vinhas da ira, Ratos e homens, ou A leste do Éden, teve um relacionamento frutífero e cordial com a indústria cinematográfica – embora seja verdade que ele pediu que seu nome fosse removido dos créditos de Náufragos devido ao tom racista que Hitchcock imprimiu à trama. Faulkner passou 22 anos trabalhando como roteirista em Hollywood; quando perguntado se seu trabalho havia sofrido algum prejuízo, ele respondeu: “Nada pode prejudicar o trabalho de um homem se ele for um escritor de primeira linha. Caso contrário, nada pode ajudá-lo muito. O problema não existe se o escritor não for de primeira linha, porque ele já terá vendido sua alma por uma piscina”.

Outros, no entanto, não se saíram tão bem. Ray Bradbury passou por isso com John Huston durante a adaptação do clássico Moby Dick de Herman Melville. Truman Capote também com o mesmo diretor quando lhe pediu para adaptar o romance O Diabo riu por último de Claud Cockborn como paródia de O falcão maltês, um filme dirigido pelo próprio John Huston e baseado no romance de Dashiell Hammet. Raymond Chandler foi considerado diretamente incapaz de criar um script. Sua única missão era melhorar o que os outros escreviam.

Mas, sem dúvida, um dos que pior se encaixaram no ramo cinematográfico foi Fitzgerald. Todo o seu salário foi instantaneamente absorvido pelas enormes despesas da hospitalização de Zelda e pelos estudos da filha, e a grande maioria de seu trabalho sempre terminava numa pilha de projetos fracassados. Por exemplo, a adaptação do trabalho de Clare Boothe Luce,  A mulher, que os estúdios consideraram inocente demais e acabou premiando Anita Loos. Ou os roteiros de Madame Curie e Um ianque em Oxfor, filmes que finalmente foram rodados sem incorporar suas ideias e, consequentemente, sem incluir seu nome nos créditos. Ele chegou a passou duas semanas trabalhando em estreita colaboração com o produtor David O. Selznick em um roteiro de E o vento levou que nunca viu a luz.

Na realidade, de uma maneira ou de outra, seja escrevendo, reescrevendo ou depurando diálogos, ele colaborou em dezenas de roteiros, embora o único filme em que ele aparece oficialmente como roteirista seja Três camaradas. E, mesmo neste caso, não foi um mar de rosas. Quando recebeu o roteiro final do filme, descobriu que o produtor, Joseph L. Mankiewicz, estava encarregado de reescrever algumas partes. Fitzgerald enviou a ele um bilhete carregado de sarcasmo: “Escrevi entretenimento de sucesso e meus diálogos se supõem que eram os melhores. Mas vi que no roteiro você repentinamente mudou os que não são bons e que você pode fazer muito melhor em poucas horas”. Treze anos mais jovem que Fitzgerald, Mankiewicz diria décadas depois: “Fui atacado como se tivesse cuspido na bandeira estadunidense porque certa vez reescrevi os diálogos de Scott Fitzgerald”.

Sheila Graham, colunista da sociedade com quem o autor morava na época, confessou que, em 1940, ano de sua morte, Fitzgerald havia recebido um total de treze dólares em royalties. A história continua sendo uma carta que o escritor enviou à sua filha Frances Scott, “Scottie”, explicando que ele havia feito tudo o possível para obter uma posição mais relevante na hierarquia dos estudos, maior liberdade para escrever, mas fora inútil.

Em 21 de dezembro de 1940, F. Scott Fitzgerald morreu em seu apartamento em Hollywood por um ataque cardíaco. Segundo seus biógrafos, o escritor, que nunca gozou de boa saúde, tinha tuberculose crônica desde 1919, uma doença que, somada aos sérios problemas com álcool e aos dois ataques cardíacos que sofreu no final dos anos trinta, danificou gravemente seu organismo. O dia antes de sua morte, ele e Sheila haviam assistido à estreia de Um sonho, dois amores no Pantages Theatre, onde o escritor estava tonto e indisposto. Percebendo a reação dos presentes, ele se dirigiu a Sheila e, muito irritado, exclamou: “Você acha que estou bêbado, não acha?”

Na manhã seguinte, ele estava fazendo anotações em um caderno enquanto folheava a revista semanal de sua universidade quando, de repente, levantou-se, apoiou-se na lareira e caiu no chão. No dia de seu funeral, Dorothy Parker, resgatando uma frase do próprio Scott em O grande Gatsby sobre a morte de Jay, murmurou em lágrimas: “O pobre filho da puta”. Talvez, como o infeliz James Gatz, Jay Gatsby fosse tudo o que Scott Fitzgerald sempre desejara ser. Um destino que, é claro, não estava em Hollywood.

Talvez tenha sido seu amigo Billy Wilder quem melhor definiu os anos de Fitzgerald como roteirista e quem melhor entendeu por que ele nunca encontrou um lugar na indústria cinematográfica. Ele resumiu em uma frase: “Era como contratar um grande escultor para fazer trabalhos de encanamento”. É difícil explicar melhor.

Um século e duas décadas antes da morte de Fitzgerald, o poeta britânico John Keats escreveu sua obra mais conhecida, “Ode a um rouxinol”. Aqui está sua quarta estrofe:

Adeus! Adeus! Eu sigo em breve a tua via,
Não em carro de Baco e guarda de leopardos,
Antes, nas asas invisíveis da Poesia,
Vencendo a hesitação da mente e os seus retardos;
Já estou contigo! suave é a noite linda,
Logo a Rainha-Lua sobe ao trono e luz
Com a legião de suas Fadas estelares,
 Mas aqui não há luz,
Salvo a que o céu por entre as brisas brinda
Em meio à sombra verde e ao musgo dos lugares.¹

Ligações a esta post:


¹ A tradução aqui apresentada é de a d Augusto de Campos (Linguaviagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1987).

** Este texto é a tradução de “Suave es la noche: el ocaso de un guinista llamado F. Scott Fitzgerald”, publicado aqui em Jot Down.

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