A dor do homem, a identidade da terra. Leitura crítica do poema “Sísifo”, de Manuel Lopes

Por André Cupone Gatti

Jacob Lawrence.





I.
Dois fatores singularizam a história de Cabo Verde: a ausência de povos autóctones quando a ilha foi colonizada no século XV, e o desenvolvimento populacional calcado na mestiçagem. A identidade cabo-verdiana buscaria, portanto, nas raízes dos colonos ou na topografia do espaço insular a base da sua construção. As expressões culturais, tomando consciência da insularidade, procurariam nos aspectos interinos, na terra, na geografia das ilhas, a personalidade do povo de Cabo Verde. No que se refere à literatura, em específico à produção poética cabo-verdiana no século XIX, Simone Caputo Gomes, Professora Doutora na FFLCH-USP e pesquisadora em Literatura e Cultura de Cabo Verde, cita Elsa Rodrigues dos Santos (1989, p. 84) para mostrar que, no início do caminho literário cabo-verdiano, a fusão homem-terra constitui “o percurso iniciático do Homem no encontro com a sua Identidade, através da introspecção e do conhecimento real do espaço e dos agentes físicos e humanos que o rodeiam. Descobre-se a terra, como processo cognitivo do próprio homem.” (apud GOMES, 2008, p. 129). O espaço, assim, imbuído de personalidade, torna-se uma via fértil de exploração da identidade cabo-verdiana.

No decorrer do século XX, parte significativa da produção literária de Cabo Verde continuaria interpretando o homem à luz da sua terra, do seu chão, e vice-versa, entretanto, com o despontar de uma nova profundidade trágica: a experiência traumática da seca. Agora, não simplesmente os aspectos geográficos em si, mas a hostilidade dessa geografia determinaria a fatal identidade do indivíduo. Tal qual Graciliano Ramos em Vidas secas ou José Lins do Rego em Menino de engenho, importantes escritores cabo-verdianos expressariam, em versos ou prosa, o lado mordaz da relação homem-terra. Famintos, de Luís Romano, Chiquinho, de Baltasar Lopes, e Flagelados do vento leste, de Manuel Lopes, são romances paradigmáticos dessa vertente. Na poesia, ela é matéria-prima de composições de Eugénio Tavares, Jorge Barbosa, entre outros. A estética literária, assim como o cabo-verdiano açoitado pela estiagem, tomaria do sol inclemente, da fome, o seu princípio motriz, tornando a literatura em forma retorcida e testemunhal, apontando a dor como a característica mais sincera e profunda da identidade de um povo.

Um dos fundadores da revista Claridade, nome incontornável da literatura moderna cabo-verdiana, o já citado Manuel Lopes (1907-2005), além de Flagelados do vento leste e de mais outras poucas produções de ficção em prosa, escreveu poemas nos quais aborda a inexorável dor de ser cabo-verdiano frente à severidade da natureza local. “Sísifo” é um exemplo desses poemas e será, a seguir, objeto de leitura crítica guiada pela relação intrínseca entre os aspectos do espaço e as dores que este forja na existência daqueles que o habitam.
 
II.
Mesmo tendo se fixado em Lisboa em 1959, não abandonaram Manuel Lopes os signos mais vivos da sua terra natal, antes, foram reforçados pela distância. A insularidade, a esperança projetada em outras terras, a seca fatal: verdades eleitas da sua poesia, construída à imagem dos homens simples de cultura vívida e mestiça. “Sísifo” irá falar desses homens, ilhados não somente em uma porção geográfica de terra, mas especialmente em um destino cruel. A condição trágica de Sísifo, na mitologia grega, depois da punição que recebe no tártaro, encontra seu duplo nos cabo-verdianos dependentes da terra. Sísifo empurra uma pedra montanha acima, mas a pedra, antes que chegue ao topo, rola montanha abaixo. Ele retoma a obrigação a cada fracasso, e esses são eternos como eterno e vão é o seu esforço. Veremos como o mito grego é amoldado à realidade de Cabo Verde por Manuel Lopes.

Sísifo
 
Em seu redor o mar e os vastos silêncios
são caminhos fechados, fechados...
 
O céu deserto, céu de milagres e de fogo
pano de jogo
onde o Destino lança os dados...
 
– Olhando as montanhas tamanhas
nuas como ossos
mas belas e estranhas
nas suas sedes milenárias
nas suas raivas humanas
em cujas entranhas
gritam ânsias, e a disputa
é entre promessas e destroços,
 
o Homem disse:
           “ó ilhas de esperança e pesadelos medonhos,
            Terra minha de sísifos e sonhos
            dá-me uma enxada e um sorriso
            com que eu possa vencer minhas derrotas!”
 
... disse – e depois
rodaram trinta sóis mais trinta sóis...
 
Veio Julho, veio Agosto
e logo após, Setembro
e veio Outubro – Santo Deus! – Outubro...
O mar fez-se bom e amigo
mas o Sol, enorme e rubro,
era só, no vazio cérulo e inconsútil...
 
E quando, enfim, chegou Novembro,
o Homem soluçou e se humilhou
curvado sobre a enxada inútil...

A imagem da ilha como cerco de impossível fuga, abre o poema, em voz melancólica que diz “Em seu redor o mar e os vastos silêncios / são caminhos fechados, fechados…”. O aspecto básico da geografia de Cabo Verde, a insularidade, é o primeiro dos jugos a condicionar a vida dos seus habitantes que, sendo ilhéus, são também prisioneiros. Os caminhos fechados de água salgada levam o olhar do poeta para o céu, mas aí também há opressão e indiferença: “O céu deserto, céu de milagres e de fogo / pano de jogo / onde o Destino lança os dados…”. Assim como da ilha não se foge, do Destino não se escapa, com a diferença de que este último está sempre oculto na sua imprevisibilidade. É no céu que o Destino joga, porque é dele que depende a vida ou a morte dos lavradores. Decide-se no céu factual, no céu meteorológico, e não no metafísico céu da Providência, a Fortuna dos que estão na terra; a natureza, mais que um Deus atento a preces, traz milagres e fogo. Volta-se, então, ao solo, onde a natureza temperamental parece reagir ambígua à severidade dos “caminhos fechados” e do céu: “montanhas tamanhas / nuas como ossos / mas belas e estranhas / nas suas sedes milenárias / nas suas raivas humanas / em cujas entranhas / gritam ânsias, e a disputa / é entre promessas e destroços”. A nudez óssea não elimina a beleza. Rude e áspera, ainda assim a montanha, tal qual um calejado faminto à espera das chuvas, é imponente e bela na sua resistência de pedra. Uma montanha com “raivas humanas” confirma a união dolorosa do homem com a terra. Oscilantes entre “promessas e destroços”, as montanhas, para além da aparência, também são ambíguas no sentimento.

Na segunda metade do poema, depois de uma sequência de imagens do mundo natural, surge o homem, a voz humana: “o Homem disse: / ‘ó ilhas de esperança e pesadelos medonhos, / Terra minha de sísifos e sonhos / dá-me uma enxada e um sorriso / com que eu possa vencer minhas derrotas!’” Os sísifos e os sonhos existem lado a lado, sem se contraporem, habitam a mesma terra, Cabo Verde; são, respectivamente, resignação e resistência, conformismo e esperança, porquanto dure o jogo sem regra da natureza. Arruinando o sonho do homem, segue-se uma sentença vertiginosa: “rodaram trinta sóis mais trinta sóis”, e passam os meses e chega-se a um Outubro árido. A repetição dos dias sem chuva, espelha o eterno fracasso de Sísifo e o ciclo inconstante do Destino. O mar, antes começo dos “caminhos fechados”, agora, ironicamente, é “bom e amigo” à luz do sol “enorme e rubro”, só no “vazio cérulo e inconsútil”. Esse vazio sem costuras, um único e enorme “pano de jogo” onde o Destino lançou os dados e o resultado foi o pior, é a imagem mais pungente antes que o poema volte à figura do homem. Reencontramos, então, o homem, sob o céu limpo do derradeiro mês de esperança: “E quando, enfim, chegou Novembro, / o Homem soluçou e se humilhou / curvado sobre a enxada inútil…”. Essa última cena, como a evocar a gravura de um flagelado de Portinari, concentra as imagens anteriores, a turbulência sem rumo da natureza, o Destino sempre trágico porque avesso à razão. O sísifo ilhéu, estático e faminto, nos parece, assim, superar em tristeza a condição do seu exemplo grego, hercúleo e atlético.

Sendo quase um díptico, do qual a primeira parte mostra o caráter áspero da natureza, e a segunda, o sonho e a dor que o homem colhe dela, o poema de Manuel Lopes é um canto, para além de trágico, humanista. Sobressai do sofrimento, a voz testemunhal do eu-lírico que, fazendo da literatura um transmissor de memórias e resistência, encontra nas dores do homem e na austeridade do ecossistema insular, um traço duplo e pungente de identidade nacional. Essa identidade traduz o sísifo para o contexto da falta, para a realidade da seca. Homem e terra, na eterna tensão entre sonhos e pesadelos, se explicam, numa dialética passional e decisiva: o Destino - signo essencial da tragédia clássica - cai sobre uma parte, mas são as duas que fruem das suas consequências.
 
III.
“Sísifo”, embora não questione frontalmente o abandono colonial, faz do trauma da seca, uma via para se pensar a verdade de um povo e, fazendo isso, singulariza a terra de Cabo Verde, de voz independente e dor particular, mesmo que essa dor espelhe a universalidade da condição humana. As fissuras da terra são gêmeas das fissuras do ser humano; no poema em questão, a identidade cabo-verdiana parece se mostrar naquilo que traz de mais íntimo, pois o que pode ser mais essencial do que uma ferida que começa na carne (a fome do flagelado) e deságua no espírito (a consciência trágica e testemunhal do fazer poético)? Simone Caputo Gomes, em um ensaio que compara a literatura e a experiência traumática em Cabo Verde e no Brasil, sublinha a empatia que a literatura pode suscitar em relação à identidade sócio-cultural de uma gente, de uma nação; “[...] a literatura, como ressalta Edgar Barbosa no prefácio a Famintos (de Luís Romano), pinta cenas e criaturas com dignidade e comovente solidariedade tal que, participando da identificação endocríptica, nós, os leitores, ‘sentimos que estamos a abraçar um povo’.”

A terra de “sísifos e sonhos”, Cabo Verde, sobrevive nas suas ambiguidades, seja na voz testemunhal do texto, seja na dor do homem a refletir as características do ambiente. Tal como o ser humano assimila na sua persona a aridez do espaço, a linguagem poética assimila o que há de mais regional e universal na calamidade da ocasião. O apelo telúrico só se justifica enquanto continuação do apelo humano, ou vice-versa, assim como a resistência talvez seja menos humana e mais utópica se não conviver com a resignação. O sísifo cabo-verdiano seria uma figura menos real, mais mitológica, se não sonhasse, se não acreditasse na esperança. Por fim, a dor seria inútil, se não revelasse a verdade do corpo ferido, ou seja, se não nos levasse ao caráter principal da identidade desse corpo. Manuel Lopes, ao trabalhar com esses signos duplos que se elucidam, além de nos mostrar seu refinamento literário, singulariza Cabo Verde como um lugar mais labiríntico e profundo que um mero porto de confluência colonial.

A literatura, enfim, dentre inúmeras características, muitas vezes carrega a propriedade da aproximação humanista entre duas (ou mais) realidades. Aquele que lê, aquele que escreve, aquele que é descrito, aquele que narra, todos partilham do mesmo universo verbal. O poema de Manuel Lopes se inicia com o isolamento da ilha na sua condição geográfica, e termina com o isolamento do homem na sua relação com a terra. Entre esses signos que se imitam, cabe a vez da esperança e do seu gradual declínio. Mais que tudo, porém, cabe justamente a experiência poética, que refaz o mundo, ou antes, resiste ao mundo, às suas mazelas.

BIBLIOGRAFIA
 
GOMES, Simone Caputo. 6 - A Poesia de Cabo Verde: um Trajeto Identitário. In: GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. p. 127-144.
 
GOMES, Simone Caputo. Impactos e afinidades do conceito de “ambiente” em textos literários cabo-verdianos e brasileiros: uma reflexão sobre a literatura na relação com a experiência traumática. Via Atlântica, São Paulo, n. 22, p.139-156, dez. 2012.
 
LOPES, Manuel. Sísifo. In: PEREIRA, Érica Antunes; FERNANDES, Maria de Fátima; GOMES, Simone Caputo (Org.). Cabo-Verde - 100 Poemas Escolhidos. Praia: Pedro Cardoso Livraria, 2016. p. 49.
 
 

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