O poeta inquieto

Por Pedro Fernandes

Ferreira Gullar. Foto: Guillermo Giansanti.


 
No texto utilizado como posfácio para a edição de Toda poesia (Companhia das Letras, 2021), “A fala ao revés da fala”, o também poeta Antonio Cicero passa em revista o projeto literário de Ferreira Gullar, livro a livro, apontando as peculiaridades de cada uma dessas obras e o papel que desempenham na formação de uma poética das mais interessantes na literatura brasileira do século XX. Nesse itinerário, uma característica, especificamente, chama atenção e esta é derivada da própria fala do autor de A luta corporal, de algumas passagens situadas em momentos diversos da sua carreira: como a cada novo trabalho, à medida que reiterava expressões criativas em vigor se mostrava o poeta em tentativa de desfiliação, abrindo-se a outros interesses, ao ponto de, muitas vezes, significar a obra presente uma negativa da obra anterior.
 
Esse movimento de afirmação e negação morreu com Ferreira Gullar. Seu último livro de poesia, dos dez que publicou desde a estreia em 1953, se constitui uma prova disso desde o título — Em alguma parte alguma. Eis o poeta em voltas com / por toda parte e talvez entregue ao alheamento que sempre é o fim de toda busca. Se os indícios estão dispersos por este pequeno e robusto universo engendrado em mais de seis décadas dedicadas ao fazer literário, pouco conseguimos capturar quais foram os impasses que resultaram numa condição que chamaríamos ensimesmada. Por mais notável que sejam as irregularidades interiores, o todo da sua poética se oferece em plano repouso, como se um sistema que encontrou, por conta própria, seu eixo no vasto campo onde opera.
 
Das aproximações e afastamentos — é importante pelo menos um exemplo para evitarmos cair na mais frequentada das regiões do senso comum —, poderíamos tratar do que se formou um epicentro na biografia e na obra de Ferreira Gullar: sua rápida passagem, em 1957, pela poesia concreta e a tentativa no ano seguinte de compor um movimento feito do mesmo amálgama dos impasses do poeta em curso. O neoconcretismo, ao passo que se inscreve como questionamento dos protocolos concretistas se estabelece como sua expansão continuadora, colocando o seu proponente na região das interseções, talvez o lugar ideal para pensarmos a sua poética. O ponto-limite do que também poderíamos designar como crise da formação resultou no Poema enterrado.
 
Mas, fiquemos com outro exemplo — e já terão dois e não apenas um. Esse impasse funciona como uma aproximação do poeta em descida aos modelos da literatura popular e que resultarão em algumas das obras que chamaríamos mais bem conseguidas: Dentro da noite veloz (1974), Poema sujo (1975) e Na vertigem do dia (1980). Novamente, não é um poeta ingênuo e sentimental que começa com versos parnasianos num livro que ele próprio ainda cedo riscou da biblioteca pessoal; é o poeta à procura, motivado pela mesma inquietação daquele de matriz concretista dos anos 1950 e poderíamos mesmo situá-lo como em vias de passagem, para continuar no mesmo círculo semântico utilizado nessas observações acerca do projeto poético claramente avistado nesta Toda poesia.
 
Trata-se dos Romances de cordel. Escritos nos anos 1960 quando esteve engajado com o Centro Popular de Cultura (CPC)¹, estes quatro poemas aparecem em livro na primeira organização da sua obra completa; depois, ganhou uma edição à parte ilustrada pelo xilogravurista Ciro Fernandes, fechando uma experiência criativa que, muito embora não repita os moldes da tradição popular do folheto, a reaviva de maneira expansiva. Este é um livro-estigma. Ninguém se refere a esse trabalho — nem deve — quando se fala sobre a poesia de Ferreira Gullar; ele mesmo disse que eram poemas “escritos muito mais com o propósito de contribuir para a luta política do que para fazer poesia.” O que resulta curioso é o fato de, ao contrário do suposto livro de estreia gorado, aparecer na obra completa, e permanecer, não à revelia do autor visto que Toda poesia foi organizada e revista por ele.



Embora tenha negado Um pouco acima do chão (o livro de estreia), esses romances, alcançam algum sentido no funcionamento do seu projeto literário: são, como dissemos, parte das muitas zonas de passagem na sua obra. Numa entrevista para a revista Poesia Sempre (em março de 1998), recuperada aqui pelo texto de Antonio Cicero, Ferreira Gullar reafirma que estes textos não são literatura, mas “foi uma atitude de rejeição da poesia num momento em que passei a julgar que a sociedade brasileira e, sobretudo, a literatura brasileira eram coisas desligadas do povo, e que seria necessário transformar o país”; e acrescenta que “não queria mais fazer literatura, e sim mobilizar minha capacidade de escrever, de usar o verso, para fazer a revolução” — idealismos, quem não os viveu, sobretudo num país tão adverso como o Brasil?
 
Essa consciência não esclarece a presença desses quatro poemas em Toda poesia e funda um problema: o da impossibilidade de, a essa altura, encontrarmos os motivos para tanto — a menos que exista (e sempre pode existir) outras explicações do poeta —, mas ao leitor não é dispensada a possibilidade especulativa. Antonio Cicero trata de filiar estes textos numa quarta fase da poesia de Ferreira Gullar: as outras três anteriores seriam a estreia negada, a aproximação com os protocolos criativos do modernismo de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade e os momentos do concretismo e do neoconcretismo. Ganha forma, assim, nossa tese de que os Romances seriam ponto de passagem.
 
Os sentidos para tanto são diversos. Primeiro, os textos são produtos de um criador em crise, na restrita e ampla compreensão do termo, seja com a condição do ser poeta num país anômalo, seja com encontrar uma voz, uma forma e uma poética autênticas, capazes de afirmação quando esses lugares pareciam integralmente ocupados por outros de seu ofício. Depois, o que se observa como um experimentalismo casual finda por oferecer alguns dos elementos com os quais a obra posterior se constituirá: a questão política, por exemplo, que aqui se faz ponto de partida (e por isso reduz o texto ao panfletário) torna-se meio ou ponto de chegada e dela, progressivamente, o poeta se afasta, deixando isso para outras expressões textuais cultivadas de permeio com o ofício do poema — da mesma maneira que o flerte com o concretismo e o neoconcretismo se canaliza para as artes plásticas.
 
Da fase dos romances preserva-se ainda o convívio com o questionamento da forma, o que se estabelece como uma força perene na sua literatura, o ponto nevrálgico que se impõe desde a negação dos poemas de 1949. Além disso, devemos notar que estes textos do período comunista ofereceram ao poeta o restabelecimento de um eixo essencial para o fazer poético: nenhuma arte consegue se estabelecer como unidade apartada do mundo, tal como o Poema enterrado; é do autor de Toda poesia a afirmação no ensaio “Uma luz do chão”, de que a partir da experiência com Poema sujo (1975) — derivada, sublinhe-se, desse convívio com o popular — compreendeu que “a poesia devia captar a força e a vibração da vida ou não teria sentido escrever. Nem viver.”
 
Ora, isso significa que estes quatro poemas vermelhos muito acrescentam à bibliografia de Ferreira Gullar; se oferecem como vias de acesso para compreendermos o funcionamento do seu projeto literário, incluindo as escolhas que o afirmam como figura incontornável na poesia brasileira. Muitas vezes — e este é um caso —, a obra menor é mais útil ao leitor de um grande poeta. Se é mesmo um grande poeta, é conveniente encontrarmos uma grande obra. Agora, se a expectativa é desfeita, isto é, se ao invés disso, a obra é questionável, significa que precisamos continuar com a procura e nesse curso podemos descobrir o que fez determinado autor se destacar como criador de uma grande obra. De alguma maneira, as evidências levantadas neste comentário se guiaram com esse propósito. Talvez devêssemos começar a leitura de Toda poesia pelos Romances de cordel. É uma provocação.


Notas:

1 Sobre este período, recomendo a leitura do texto “Umas palavras sobre uma breve fase de uma grande poeta: Ferreira Gullar e o CPC (Centro Popular de Cultura”, de Fábio Roberto Ferreira Barreto, publicado aqui no Letras.
 

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