Nas sombras do presente: resenha de “Deus não dirige o destino dos povos”, de Marcelo Labes

Por Wesley Sousa

Marcelo Labes. Foto: Arquivo do escritor.


 
O escritor alemão Alfred Döblin, no ensaio de 1938, “O romance histórico e nós”, afirma que uma das novas figurações do romance histórico tem característica central uma posição na ficcionalidade de caráter histórico, em que o escritor eleva ao material literário o domínio dos “fatos a semblância de uma realidade. E finalmente, ele [o escritor] trabalha com tensão, procura atrair nosso interesse, satisfazer-nos, abalar-nos, prender nossa atenção, desafiar-nos” (Döblin, 2006, p. 22).
 
No entanto, a relação complicada que o caráter do romance histórico se encontra hoje, com a prevalência dos romances autobiográficos, narrativas simplórias no ambiente da prosa, torna ainda mais difícil a proeminência de um romance que logre alcance e êxito na empreitada. Em nossa história literária, a tematização histórica particular de nossa terra não é um capítulo lisonjeiro. José de Alencar, com Guerra dos mascates (1873), Euclides da Cunha, com Os sertões (1902), Machado de Assis, com Esaú e Jacó (1904), Erico Verissimo, com O tempo e o vento (1949-1961), formam um conjunto exemplar da vida literária na qual a tematização da história é a porta de entrada.
 
Na atualidade, longe de ajuizamento literário a priori, pois a arte é potente em sua liberdade criativa, o que são características que se pode elencar é menos do que um fator normativo; aliás, paradoxalmente, a normatização destas características exatamente se encontra nos best-sellers e em premiações e feiras literárias. Sem dúvidas, basta olhar os prêmios nacionais e internacionais, nas livrarias comuns de todo lugar. É notável, então, algumas particularidades: 1) sedimentação do enredo; 2) autoconcentração do eu-lírico; 3) técnica narrativa que ambienta o cotidiano interior; 4) aplainamento dos conflitos para subjetividades justapostas etc. Todos esses caracteres não tornam, elas mesmas, um romance de pior qualidade por princípio. Mas, de algum modo, reverberam certo espírito do tempo na prosa narrativa.
 
Um exílio aqui, porém, se encontra em Marcelo Labes.1 É com Deus não dirige o destino dos povos (2023) que uma nova maneira de fazer romance histórico toma fôlego para um público mais amplo. O romance se desdobra em quatro capítulos, com datas específicas e significativas: 1945, 1964, 2018 e 1989 (greve de trabalhadores em Blumenau). Cada capítulo contém uma narrativa que, em cada “ano”, é narrada um fato, na verve ficcional, daquilo que enlaça o todo do romance, no desvelamento motriz das ideologias e de grupos e atores políticos no interior de Santa Catarina.
 
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O romance de Labes tem leitmotiv um entrelaçamento de uma narrativa que pavimenta duas formas de tempo: o presente e o passado. Os eventos históricos e a ficção servem para explorar as influências políticas e ideológicas no sul do Brasil, em especial no estado catarinense. No período da ditadura Vargas e culminante nas eleições de 2018, são três tempos entrelaçados na ficcionalidade que dão forma a uma historicidade marcante daquela região — e do Brasil, em grande medida: 1945, 1964 e 2018. A vida de um jovem jornalista catarinense. Labes elabora uma narrativa arejada e potente, cuja situação da personagem é aquela que reconta o passado e vive o presente, mas presenciando uma história que carrega o narrar e o desdobrar destes fatos passados.
 
Para o que interessa aqui, a narrativa do romance se concentra e acompanha Tomás pelas ruas, nos lugares, nos litorais e nos aspectos da Florianópolis recente. Ao encontrar uma misteriosa caixa em sua porta, a sua pacata vida precária começa a ser alterada; assim, ele é levado a desvendar aspectos desconhecidos de sua própria história familiar e da sua região. Essa jornada o conduz por períodos marcantes da história republicana, desde os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial até a perseguição aos “comunistas de Blumenau” durante o golpe de 1964, culminando na greve operária de 1989 na mesma cidade — à luz ou às vésperas das eleições presidenciais de 2018. A narrativa dá sequência aquilo que anteriormente ambientava outro romance autor, intitulado Paraízo-Paraguay (2019).
 
O título Deus não dirige o destino dos povos faz referência direta e clara ao contraponto referente ao “Manifesto integralista”, de 1932, redigido por um dos principais ideólogos do integralismo brasileiro, Plínio Salgado, e que se inicia com a frase “Deus dirige o destino dos povos”. A narrativa de Labes, por outro lado, revisita que não é uma entidade divina, mas aquilo que os indivíduos e grupos específicos moldam o curso dos acontecimentos e da história de um país, de suas contradições sociais. O escritor, com criatividade no enredo, desloca temporalmente o curso dos fatos, trazendo o passado para o presente atuante e vice-versa. Ao descrever os antepassados da personagem central, o próprio Tomás é interpelado a dar continuidade de investigar os fatos e reconstruir aquelas cartas e documentos misteriosos. Interrogatórios e a preocupação de estar sendo vigiado, agora, marcam sua vida outrora tranquila em seu cotidiano.
 
A narrativas de Labes, ao mesmo tempo, constrói personagens que atuam, social e ideologicamente, como arquétipos vivos, e, assim, também destaca que o integralismo, movimento político de inspiração fascista surgido no Brasil nos anos 1930, não desapareceu por completo. O escritor aponta que, naquela região, ele continuou a influenciar o cenário político. Nacionalmente, o integralismo e suas variantes, se fez chegar até os desdobramentos das eleições de 2018. Nas sombras do presente, marca-se o período em que Tomás trabalha como jornalista na capital catarinense.



 
Entretanto, não cabe num curto escrito esmiuçar cada parte do romance. Apesar disso, o ponto que chama a atenção para quem o lê é de como Deus não dirige o destino dos povos pode oferecer uma reflexão sobre a persistência de ideologias no Brasil e as suas repercussões ao longo das décadas. Esta conexão entre o passado e o presente de maneira envolvente já se tornou uma marca do autor: narrar uma história é trazer das sombras do presente ao esclarecimento crítico do passado.
 
Na medida em que Tomás investiga os documentos, e a história passada vem sendo narrada, o jornalista protagonista toma por tarefa o esclarecimento de um material que também lhe diz respeito; tais documentos trazem novos contornos ao romance. A conturbação do presente e a permanência de um clima ideológico que encontra justificativa no passado, é o fio condutor que adquire certas feições de tensão entre o vivido e a ficção.

As disputas ideológicas, os grupos nazistas do interior de Santa Catarina, o período Vargas, o período da Ditadura Militar, o processo de redemocratização e o calor eleitoral de 2018 etc., tudo isso revela as sombras de nosso presente, nunca remediado. Labes oferece, sem dúvidas, um romance singular na prateleira da literatura catarinense pela maneira como repassa as opressões de grupos e as oscilações entre heranças familiares e os desconhecimentos de causalidades contextuais que se apresentam em ideologias.
 
Para dar um exemplo significativo, no curto capítulo “1989” (o último do livro), há um trecho representativo que mostra um panorama do momento de uma greve em Blumenau, onde a personagem Martha, que já aparecera no enredo de Paraízo-Paraguay, é levada a uma greve de trabalhadores; mesmo sem ter muita noção dos fatos, ele se deixa envolver pelo seu decurso:
 
“Ela soube, ali, o que estava acontecendo: o sindicato iria capitular. E soube porque ela própria desistiu de tudo, a vida inteira. Não estudou, não foi embora com o irmão, tem o mesmo emprego dos pais, vive uma vida mesquinha, sozinha, em silêncio. [...] Alguns riem, enquanto outros estão apenas muitos curiosos. E Martha, olhando para o mar de gente que tem diante de si – ela não pode fazer um discurso, ela não sabe fazer um discurso e, a bem da verdade, não tem tempo para isso – apenas grita uma única vez: É GREVE!” (Labes, 2023, p. 272-3).
 
Se a ficção está liberada da comprovação da verdade factual à qual a história está sujeita, será na ficcionalidade romanesca que a história pode ser relida para além dos fatos brutos, dando a primazia inventiva e dinâmica por parte do romancista. Vale, por fim, outra afirmativa de Döblin: “O autor está conscientemente diante dos fatos, mesmo que não de uma forma muito nítida, e o que então ocorre é uma peculiar explicação, que não se divorcia dos fatos, mas que surge tanto nos personagens como no enredo” (Döblin, 2006, p. 32, grifos do autor). Esta função, dita pelo escritor alemão, se efetiva no romance de Labes.
 
Enfim, a título de desfecho desta breve resenha, há uma passagem sintética do historiador inglês Perry Anderson, no artigo intitulado “Trajetos de uma forma literária” (2007). O autor reavalia o romance histórico e suas facetas, bem suas realizações possíveis fora dos modelos clássicos — geograficamente europeu — nos seguintes termos: “Não a emergência da nação, mas as devastações do império; não o progresso como emancipação, mas a catástrofe iminente ou consumada. Em termos joycianos, a história como um pesadelo do qual ainda não conseguimos despertar” (Anderson, 2007, p. 219). É possível assegurar que essa afirmativa sintetiza o procedimento de uma forma de romance histórico elaborado por Labes: escrevendo na periferia do capitalismo e no rincão reacionário de Santa Catarina, ele consegue com êxito alçar uma compreensão de nossa história sombria e violenta, decerto nada idílica.
 
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Uma observação particular de desfecho: enquanto redigia minha dissertação de mestrado, no ano de 2023, citei Paraízo-Paraguay como uma das “saídas” atuais para o deslocamento do ideal do romance histórico clássico (Scott, Balzac, Tolstói etc.). Ao ler este livro, uma descoberta. O “achado” se deu em função da pesquisa realizada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cidade onde vive o escritor. Minha dissertação girava em torno do livro O romance histórico (1936), do filósofo húngaro György Lukács. À época, foi uma grata surpresa ter me deparado com a leitura e a obra de Marcelo Labes. Tivemos, entretanto, pouquíssimos encontros para conversar. Pouco tempo depois, com o mestrado concluído, e meu retorno para Minas Gerais, veio comigo, numa viagem posterior, Deus não dirige o destino dos povos (2023), presenteado e assinado por ele, entregue por um amigo em comum. Li o romance no frio de Curitiba; a resenha, redigida no outono de Belo Horizonte, é um gesto de agradecimento, ainda que demorado, e distante geograficamente.


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Deus não dirige o destino dos povos
Marcelo Labes
Caiaponte, 2023
286p.

Notas
1 Ele não é o único. Olhando um pouco anteriormente, romances dos anos 1990, como O retrato do rei (1991), de Ana Miranda, e A majestade do Xingu (1997), de Moacyr Scliar, entre outras obras, poderiam entrar nesse novo tipo de romance histórico no Brasil.


Referências
ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. São Paulo, Novos Estudos Cebrap, n. 77, mar., p. 205-220, 2007.
DÖBLIN, Alfred. O romance histórico e nós. Curitiba, História: questões&debates, n. 44, p. 13-36, 2006.
LABES, Marcelo. Deus não dirige o destino dos povos. Florianópolis: Caiaponte, 2023.
LABES, Marcelo. Paraízo-Paraguay. 2 ed. Florianópolis: Caiaponte, 2021.
 

*Wesley Sousa é doutorando em Filosofia pela UFMG. Membro da Associação Brasileira de Estética (ABRE), do grupo de pesquisa “Crítica & Dialética” (UFMG/CNPq) e do “Modos de presença nos fenômenos estéticos” (UFMG/CNPq).
 

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