A história do amor de Fernando e Isaura, de Ariano Suassuna

Por Pedro Fernandes

Ariano Suassuna. Foto: Arquivo O Globo.


 
Nos anos 1950, a versão de Tristão e Isolda reconstituída pelo filólogo francês Joseph Bédier circulou entre o grupo frequentado por Ariano Suassuna, o mesmo que cultivou o terreno fértil a partir do qual brotará o Movimento Armorial. Ao que parece, Francisco Brennand se sentiu motivado a compor uma série de ilustrações para o amor impossível de provável origem celta, interesse logo transferido para o amigo que naquela altura confessara o desejo de escrever um grande romance no porte da Pedra do reino, o livro de uma vida que o escritor paraibano não viu se cumprir inteiramente conforme foi sonhado.
 
Antes de se lançar ao esforço da grande obra, Brennand sugeriu que Suassuna se experimentasse com uma imitação de Tristão e Isolda, retrabalhando suas personagens e o motivo da narrativa, transpondo-os para o sertão nordestino. Em 1956, a proposta estava concretizada e seduzido com a conquista, o escritor pensou em considerar o material como parte do Romance da Pedra do Reino; isso terá consumido mesmo certo tempo no desenvolvimento criativo do autor. Basta dizer que o livro de 1971 se impôs, ganhou vida própria e o produto do romancista de primeira viagem permaneceu à espera de um destino. É possível até que Suassuna tenha flertado com o reino dos refugos e se concretizado teríamos a história de mais uma das tantas obras goradas; é possível que a publicação não tivesse acontecido se o seu autor não alcançasse o lugar de projeção que alcançou na literatura do seu tempo.
 
A história do amor de Fernando e Isaura não é, evidentemente, o ponto alto na obra de Ariano Suassuna, mas não é também uma peça a ser relegada ao gabinete de curiosidades, um livro restrito ao estatuto de documento de uma época de formação do escritor, uma aventura de criador imberbe. É um romance conduzido de maneira segura e mesmo se o autor tiver feito alguns retoques antes de publicá-lo (como Fernando e Isaura, simplesmente) em 1994, coisa que não sabemos, parece visível que desde a sua primeira estrutura era um livro de arquitetura sustentável. Obra ruim, por mais que o seu feitor alinhe aqui e ali, azeite esta e aquela engrenagem, funcionará sempre com defeito, e não é este o caso. O desfecho da narrativa, aliás, está perfeitamente integrado a certo interesse pelo trágico que Suassuna confessa ser uma recorrência entre os seus primeiros exercícios de ficção. Assim, talvez tenha sido a consciência de uma obra bem-acabada — mais que apego do criador pela sua primeira criatura — o imperativo na decisão de resgatá-la do plano das indecisões para as mãos do público e permanece como um desses livros sempre recomendados para os que se sintam temerosos de entrar de primeira no universo romanesco suassuniano, visto encontrarmos interesses e procedimentos narrativos importantes para a compreensão do funcionamento da literatura do paraibano.
 
O entrecho narrativo repete o que encontramos no enredo engendrado por Bédier, assim com as verificáveis diferenças em relação à versão de Béroul, quem primeiro elaborou um protótipo escrito da lenda de Tristão e Isolda e com o qual Ariano Suassuna entrou em contato indireto. É o que sublinha Carlos Newton Júnior no prefácio proposto para a edição mais recente do romance: “Para escrever Fernando e Isaura, Suassuna baseou-se na obra de Joseph Bédier, O Romance de Tristão e Isolda (1900) [...] e outras variantes da lenta, em verso ou prosa [como a versão de Afrânio Peixoto, Tristão & Iseu (1930)]. O escritor também expõe sua fonte no texto intitulado “Advertência do autor” escrito para a primeira edição do seu livro com o intuito de ressalvar os leitores da discrepância que encontrariam nas páginas seguintes entre os valores do seu tempo e os do tempo dos protagonistas do romance. É verdade que nem sempre os autores são honestos nessas e em outras circunstâncias, mas, nesse caso, é o material disponível ao nosso alcance pespontado por um dos seus estudiosos mais pertinentes.
 
O autor desse texto datado de 7 de outubro de 1994 que funciona como uma espécie de inscrição num pórtico de entrada se confunde integralmente com a voz que conduz a narrativa. O narrador conta como quem instrui, tece os contornos da consciência dos amantes com os quais se identifica desde sempre e não quer encontrá-los na boca dos difamadores e alguma vez porta-se como comentador exterior — herança do teatro — da própria narrativa. No caso da predileção dos amantes, isso se deve ao querer demonstrar o imperativo do Destino — grafado em maiúsculas como vários outros termos ao longo do romance — com a força motriz de algumas das circunstâncias da vida. Alguém já disse que na lenda incorporada ao Ciclo Arturiano todo o impasse que insta o enlace amoroso entre Tristão e Isolda se deve ao caso de dois beberem acidentalmente a poção mágica oferecida pela criada a pedido da mãe da noiva e destinada a ela e o noivo, o rei Marcos. O romance suassuniano deposita o caso à ação invisível dessa força que anima o funcionamento de toda existência.
 
A história do amor de Fernando e Isaura absorve os elementos do texto organizado por Bédier, mas se utiliza da longa tradição grega, ibérica, medieval e renascentista. A atuação Destino, por exemplo, da mesma maneira que nos impele para a tradição cristã católica, reinscrita diversamente no entrecho narrativo, reitera o conduto divino encontrado em dilemas de amor impossível como os de Quéreas e Calírroe, protorromance grego de Cáriton ou aos romances da longa safra romântica; toda a vida fluvial — a narrativa é a única que na obra de Suassuna se encontra situada fora da geografia sertaneja, entre as margens do São Francisco e o litoral de Alagoas — reitera a vida marítima ibérica; os códigos de conduta estão radicados nos moldes do medievo e da renascença, bem como os ideias de honra, amor e beleza, refiguradas no comportamento, atitudes e caracteres das personagens.
 
Depois da morte dos pais, Fernando foi amparado por Marcos e recebe deste, tempos adiante, a incumbência de fazer as vezes do tio no casamento com Isaura; a tarefa se afirma entre três necessidades, a de responder aos afazeres da dura vida na fazenda, as de uma promessa de se casar no dia da Anunciação do Anjo a Nossa Senhora e a de não desonrar a casa de Isaura se, devido a essas duas determinantes, trouxesse a jovem para se casar em São Joaquim. A situação assim disposta desperta no leitor o esperado: Isaura e Fernando se descobrirão apaixonados e isso relega a honra dos dois. E é quase isso. No passado, ela desenvolvera um sentimento pelo portador ao cuidá-lo de uma convalescença movida por um ferimento colhido num duelo de faca; o reencontro, sem que ele saiba que se trata disso, é apenas o elemento motivador para redespertar nela o interesse adormecido e instaurar o impasse amoroso que sustentará as ações da narrativa a partir daqui.
 
É importante reparar que as cores empregadas pelo romancista na composição do quadro amoroso são recolhidas da mesma paleta das histórias românticas, mas os usos são modernos, sem resvalar para as soluções esperadas em circunstâncias desse tipo. É Isaura que subverte a passividade de Isolda (pelo menos a engendrada por Bédier) e conduz todas as frentes do enlace amoroso; mesmo as decisões assumidas pelo amante são derivas das atitudes da mulher, invertendo-se propositalmente os polos comuns da narrativa antiga ou aproximando incidentalmente Isaura da Isolda (notem a semelhança estrutural e fonética dos nomes e também as correspondências semânticas — suave brisa e bela, formosa) de Béroul, menos romântica e mais guiada pelos códigos da astúcia. Os homens neste romance estão tomados de uma crise de seus próprios papéis sociais: a violência para reparo da honra vilipendiada, para citar uma situação marcante, só aflora se for essa a força do oponente. De alguma maneira, isso não é apenas o produto de uma reiteração dos modos modernos de se portar, mas o restauro de certo código de conduta da honra que se perdeu em nome dos instintos mais radicais, afinal, um duelo, no sentido estrito, é apenas honesto se as condições forem iguais para os envolvidos.



Dissemos que Ariano Suassuna recorre a diversas outras fontes na constituição da narrativa do amor de Fernando e Isaura e pontuamos a matéria do cristianismo católico; inclusive, ao Destino/ Deus podemos agregar outra qualidade, a do livre arbítrio. O narrador sugere uma força maior para a desdita do casal, os dois têm ciência de uma parte dessa força, mas o resto, o obscuro, é assumido como responsabilidade dos envolvidos no teorema amoroso: é de Marcos a atitude de enviar o sobrinho como seu procurador no casamento; é do sobrinho o aceite, é dele ainda o envolvimento com Isaura respeitando apenas as leis do desejo, sem considerar que na sede se oculta o mistério do reencontro; é dela, sobretudo, porque condutora das circunstâncias, a consumação do amor proibido. E quando todas as responsabilidades são as dos próprios atores, é deles também o enfrentamento das consequências pelas suas atitudes. Nesse caso, a narrativa não os poupa com subterfúgios, não resvala no melodrama, nem seus seres; estes estão mesmo decididos a enfrentar o que for necessário, ao menos enquanto durar a aura do encanto amoroso. Mas esta, como sabemos, passa. E quando acontece isso, a decisão dos amantes é prática, tão moderna quanto a da lenda antiga: ninguém deve sucumbir apenas porque resulta impossível administrar as forças do Destino; contra elas, é sempre necessário tentar —  é o princípio motriz da própria existência. Como quem ama, ama apenas na ausência, os amantes estão dispostos a cavar uma lacuna entre eles capaz de suster o enlace amoroso.
 
O romance em leitura aposta na ressimbolização dos motivos visíveis na cultura do medievo e em certas expressões do cristianismo católico. A própria Isaura, que poderia restituir certa imagem da mulher casta e passiva — que se quis impor às mulheres no ocidente —, instigando a expressão da musa romântica de cariz virginal, qual a Maria de quem Marcos e Isaura são devotos, não atende a esses modelos. Envolvida, ao acaso, num golpe de traição, sequer podemos associá-la a certo tipo da mulher arrependida, uma Madalena, porque à ciência dos acontecimentos não significa, conforme dissemos encontrar o peso da culpa ou o subterfúgio do escape ou ainda a atitude trágica que, notamos, é continuamente retardada ainda que visível no horizonte desses amantes.
 
Mas, não é apenas isso que se desprega do convívio entre a ficção nesse romance e o imaginário cristão católico. A narrativa reengendra mesmo vários dos episódios bíblicos, reinventando seus símbolos como dizíamos acima. Um acontecimento marcante se desenvolve no mesmo dia do reencontro de Fernando e Isaura, depois de os ventos arrasarem parte da Estrela da Manhã (eis outro traço nesse simbolismo aventado) e obrigarem a tripulação a uma parada imprevista no itinerário da viagem em que Fernando leva a incumbência de tomar Isaura como mulher de Marcos. A donzela se encontra em casa de parentes no vilarejo para uma despedida, quando o Destino rende os dois nas suas garras.
 
O gosto romântico do rapaz pelos lugares sombreados de árvores e de água correndo empurra-o para uma entrada no mato quando é capturado pelo brilho sedutor de um caju; ao comer do fruto, ele se descobre diante de uma Isaura nua no banho de rio e a cena inaugura algum fio de desejo até ali ignorado. É evidente que o acontecimento se banha das diversas aparições da mulher em banho ao ar livre reiterado no nosso imaginário literário a partir dos costumes de outro tempo, mas, o marco para a narrativa é, nesse caso, o episódio do Gênesis, quando o casal adâmico prova do fruto proibido e instaura a queda do paraíso e a eterna errância.
 
O acontecimento, aliás, é reabilitado com as mesmas primeiras impressões da cena bíblica, aqui, nordestinizada, pelo novo fruto do conhecimento, o caju. Cabe recortar a passagem: “Sentando-se à beira [do rio] para olhar as águas, Fernando num momento em que passeou os olhos pela vegetação, avistou, num dos Cajueiros mais copados, um grande fruto vermelho, que se destacava dos outros, enorme e a cair de maduro. Subiu, então, na árvore e colheu-o. // O gosto do Caju, travoso e refrescante, agradou-lhe — e ele se preparava para descer quando ouviu uma voz de mulher que se aproximava, cantando: // ‘Quem são os profetas daqui?/ Vocês sabem, mas não querem me dizer!/ Que a mulher Deus deixou foi para o homem,/ — oi tingo, tingo —/ sem mulher ninguém pode viver!’// Ouvindo o canto, o rapaz ficou imóvel, à espera; e, depois de alguns instantes, Isaura apareceu no barranco, saindo dentro os Cajueiros. Ela se acolheu à sombra das árvores e ficou olhando a água que corria, como ele mesmo fizera pouco antes. […]// Fernando ficou deslumbrado. Mesmo que não se tratasse daquela que o impressionara de modo tão vivo na praia, naqueles tempos austeros que então se viviam era aquela a primeira vez que via uma mulher jovem e bela inteiramente nua. A moça era de beleza perfeita e entregava=se ao prazer do banho de maneira graciosa e delicada. Por vezes, segurava-se a um galho pendente, erguia-se fora d’água e deixava-se cair de novo, num mergulho cheio de alegria. Vendo essas manifestações de sua natureza tão imensamente feminina, o rapaz estava convencido de que, ainda que vivesse muitos anos, nunca mais em sua vida veria coisa tão bela — beleza terrena e selvagem, tranquila e perturbadora ao mesmo tempo.”
 
Que a árvore não é apenas uma qualquer, o leitor observa na maneira como se grafa o termo cajueiro; da mesma maneira, o caju. O uso de maiúsculas, sabemos, distingue o nomeado, particulariza-o e Ariano Suassuna utiliza-se disso reiteradamente. Num primeiro instante, a expressão acaba por reunir os seres numa mesma ordem, implicando, nesse caso, sua participação para o desenvolvimento das circunstâncias por um e não por outro rumo. Mas, é ainda, ao que parece, uma alternativa (à maneira do método Paulo Freire das palavras geradoras) de convidar o leitor para os sentidos propostos com o que se narra. A simbologia do mito bíblico está implicada no próprio acontecimento, mas evidenciar visualmente os elementos norteadores favorece outro despertar: a justificação da simbologia aí implicada. Há uma direção para a qual o narrador favorece o olhar do leitor. No restante do romance, esses usos colaboram para outra função cardeal: a proposição de um imaginário sui generis, brasileiro e nordestino, em relação aos modelos clássicos, que se valeram do mesmo artifício, um gesto bem ao gosto de Suassuna de reconhecimento de nossa rica cultura. Ora, isso se nota em expressões como a já referida Destino, e ainda em usos como Barcaça, Mestre (para designar o navegador), Céu, Mar, Sol ou Ridimunho.  
 
Do Renascimento, é notável a interferência do modelo trágico shakespeareano. O destino é o mesmo encontrado na refacção de Bédier, incluindo o que é o ponto semifinal dos amantes, o distanciamento motivado pelo regresso de Isaura para Marcos e o casamento de Fernando com uma Isaura, “a de mão alva e delicada”. O romance suassuniano, aliás, inverte, a ordem original — a primeira Isaura é de tez tropical e não a segunda, subvertendo ainda certa implicação do moreno ao signo do mal. Mas, a decisão (trágica) e o impasse que a acentua é outra vez de mulheres — visto que o fim do amante é determinado às custas de um acidente por esfaqueamento noutro duelo inopinado e sua atual Isaura falseia o acordo do reencontro entre ele a primeira Isaura, esta, sã, decide-se pelo martírio sacrificial. Trata-se de um desfecho visivelmente teatral, à maneira de Romeu e Julieta. E este fim poderia ser mais bem elaborado. Se Ariano Suassuna falhou nos eventuais ajustes antes de entregar o manuscrito para publicação quase quatro décadas depois de concluído o livro foi ter se distanciado do capricho com que desenvolveu a narrativa até aqui e cair na pressa de oferecer logo o desenlace.
 
Até aqui, pontuamos vários índices das manifestações eruditas na feitura da História do amor de Fernando e Isaura. Entretanto, é necessário evidenciar que essa cultura se estabelece no contato perene com as manifestações populares; é o fluxo natural das criações tal como observa Mikhail Bakhtin a partir da cultura medieval na Europa. O percurso de Ariano Suassuna com o Movimento Armorial foi o de ressaltar esses convívios enriquecedores, destinados agora ao esquecimento uma vez a maioria dos nossos criadores ignorarem a longa tradição que nos formou ou acreditarem que elas são ultrapassadas por não corresponder com as visões ideológicas vigentes ou ainda, o que é pior, acreditarem numa espontaneidade criativa que só produz obras estéreis, de significação imediata; o último capítulo do romance agora comentado é singular, parece coisa de um acréscimo final. É a mais explícita manifestação daquele que seguiu de fora os passos da narrativa como se denota no dubitativo “Talvez conhecesse”, um tom que não condiz com a voz assertiva que nos trouxe até aqui. Esse é o instante da revelação de um tal “Romance da Peregrina”, um desses folhetos que retrabalha o mesmo tema do desencontro, da desdita amorosa e o fim trágico que resvala a realização plena apenas na eternidade. Este, e não Tristão e Isolda, bem poderia ser o mote para o romance de Suassuna. E não o será? Se os vínculos do imaginário reinam pelos mesmos caminhos desconhecidos do Destino, admitiremos que sim. Mas daí começaríamos outra leitura e preferimos deixá-la para o leitor suspeitoso.


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A história do amor de Fernando e Isaura
Ariano Suassuna
Editora Nova Fronteira, 2019
256 p.

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