Gonçalo M. Tavares





“A literatura pode ter a função de diminuir a ingenuidade e eu tento aumentar a lucidez das pessoas.”
(Gonçalo M. Tavares)


A literatura de Gonçalo M. Tavares é para leitores interessados abandonar sua condição de entregues à roldana do mundo e descobrir aquilo que não conseguimos alcançar pelo olho comum, porque padecemos, muito ou pouco, dos engessamentos propostos, clara ou sutilmente, pelas ideologias de domínio. Sua escrita também é abandono, deambulação, procura por entre as trivialidades do mundo e da história do sopro capaz de produzir as desestabilizações necessárias à constituição dos sentidos de ser e estar no mundo e na história.

Tudo isso significa dizer que, o escritor se preocupa em interrogar não apenas a realidade e seus contornos, como o elemento que enforma: a linguagem. Em diferentes registros, em diferentes fronteiras, em diferentes formas, sua obra elege a certeza da impossibilidade do total como ponto de interesse. Assim se observa, por exemplo, os vários exercícios de criação que simulam o real, uma totalidade do mundo, mas realça o seu inacabamento e descontinuidade, verificada em produções como O Bairro, trabalho que, entre outras inquietações, interroga-se sobre o lugar de vários e importantes nomes da literatura universal.

“O fragmento é um lugar pequeno onde o espanto tem espaço. A totalidade é um lugar grande, onde o espanto não entra porque já lá está, sobretudo por mais assuntos que uma administração aborrecida. A totalidade é burocrática e monótona, e só o corte provoca alegria entre o sítio da ferida e o sítio onde algo novo recomeça.”, diz o escritor.

Gonçalo M. Tavares nasceu em Luanda, Angola, em 1970. Integra, assim, o grande fluxo de imigrantes portugueses obrigados a deixar as colônias tão logo o estopim das revoltas pró-independência. Estabelecido em Aveiro, onde concluiu seus estudos básicos, passou a se dedicar às ciências humanas depois de apostar na Educação Física com área de atuação. Depois de se formar em Filosofia e enveredar pela construção de uma carreira acadêmica passa a desempenhar funções como professor.

Até alcançar esse lugar mais ou menos estabelecido - estabelecido, se olharmos para as direções criativas e para a compreensão de mundo singular - transitou por alguns lugares recorrentes entre outros escritores: o interesse de obter uma resposta do mundo a partir da escrita. É assim que, já em 1992, a aparece na revista estadunidense Salamander seis poemas seus retirados de uma antologia que se publicará uma década depois com o título de Investigações Novalis, com o qual recebeu o Prêmio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Já aqui é notável um interesse que se amplia nas obras seguintes: entre o poema e o aforismo, os caminhos da escrita se fazem dos procedimentos da retórica clássica fragilizando-se assim, propositalmente, no contato com uma poética, as rígidas fronteiras não só criativas, como também estético-formais.

Um ano antes, publicou Livro da dança, efetivamente seu trabalho de estreia e que chegou ao Brasil pela Editora da Casa em 2008. À maneira das Investigações este livro também escolhe o poema como forma, mas abdica da corriqueira lírica. Centra-se num tema específico, o corpo, e explora dimensões das mais diversas, dentro e fora desse lugar. Quer dizer, todo bailado decorrente dos movimentos aqui estabelecidos são os do próprio poeta que atua como se o ordenador físico ou biológico que desestabiliza seus usos ativos e vocabulares ao trazê-los para outros campos de linguagem.

Em mais de uma década de publicações, a obra de Gonçalo M. Tavares se multiplicou em várias direções. No mesmo ano das Investigações publicou “O senhor Valéry”, o primeiro de uma sequência de seis textos work in progress enformados pelo título de O Bairro. Publicou ainda Um homem: Klaus Klump A máquina de Joseph WalserJerusalém Apender a rezar na era da técnica, títulos que formam a chamada série “O Reino”; se na série anterior marca-se a brevidade e concisão da prosa para refigurar nomes como Valéry, Michaux, Brecht, Juarroz, Kraus, Calvino Walser, nesta segunda, a prosa ergue-se magistral para discorrer sobre o indivíduo e sua crise ante a coletividade; os temas que circulam se conformam em conceitos como os de Angústia e Mal. 

Outros títulos também se organizam em séries, como se nichos de uma biblioteca, sempre aberta e infinita, à maneira do ideário borgiano. Breves notas sobre ciência, Breves notas sobre o medo, Investigações geométricas, por exemplo, formam a seção “Enciclopédia”; os citados Livro da dança e Investigações. Novalis - “Investigações”; Biblioteca - “Arquivo” etc. Nada disso é inusual. Talvez Tavares amplie seções de outros projetos literários de autores do seu território; entre os que logo lembramos está a literatura de Maria Gabriela Llansol. Mas, podemos pensar em autores, como Jorge Luis Borges, ou seus contemporâneos, fora de Portugal: Enrique Vila-Matas e Alejandro Zambra.

Alguma vez a crítica terá dito que Gonçalo M. Tavares vale por uma literatura inteira. E certo disse José Saramago quando com Jerusalém recebeu o prêmio que leva o nome do escritor Prêmio Nobel de Literatura: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!” Com esse vasto canteiro de experimentações, sem fazer da literatura arte pela arte, tem trabalhado por reiterar o lugar da literatura como espaço onde se é possível pensar o sujeito e sua relação com o mundo. E isso não é tarefa dada a escritores comuns interessados tão somente no entretenimento gratuito, nos experimentalismos sem fundamentação, na repetição dos fadados exercícios de linguagem.




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